...continuação
As tailandesas estavam proibidas de frequentar os quartos
das pousadas durante a noite. Prevenção hipócrita contra o turismo sexual que
se tornou praga na Tailândia. A maioria dos sinais e placas nas ruas estava
apenas em tailandês. A fluência na língua inglesa não era comum entre a
população. Os tailandeses não se aproximavam para conversar ou mesmo para
vender. Eram mais sérios e retraídos que os indianos ou nepaleses.
Passeei pelo mercado de fim de semana na
zona norte da cidade. Tailandeses e turistas circulavam pelas barracas.
Caminhei sob o sol quente, percorri grandes avenidas, minhocões, vielas, becos
estreitos. O aspecto de tudo era moderno e ocidental. Favelas apareciam na
margem dos canais fluviais e das ferrovias. Mangas, jacas, melancias eram
vendidas nas ruas, cortadas em pedacinhos dentro de sacos plásticos.
A fome bateu. Valia a pena experimentar
as comidas tailandesas nas barracas de rua. Quanto mais afastadas de Khao San,
mais autênticas. Não havia problemas se os cardápios estavam somente em
tailandês. Logo eu decorava os nomes locais. Calculadas para os miúdos
tailandeses, as porções pequenas não enchiam a barriga e eu pedia duas para matar
a fome. Os principais pratos tinham como base o arroz frito, acompanhado de
carnes diversas e legumes, os ensopados de frutos do mar, as frituras de
macarrão com legumes e carne. Tudo apimentado na medida certa.
Subi em barco pelo rio Chao Phraia em direção ao centro
nervoso da cidade. A região lembrava a avenida Paulista, com vias
congestionadas, edifícios altos, executivos apressados, restaurantes com comida
rápida ocidental, carrões, lojas chiques.
Não conseguia definir o tipo físico predominante entre os
tailandeses. Variavam bastante. Tinha até mulatos e sem olhos amendoados. Os
turistas de mais idade, sobretudo oriundos de pacotes, representavam o lado do
turismo assumidamente convencional, muitas vezes também sexual.
Passeio sem rumos ao redor de templos budistas e do Grand
Palace. Bem distinto dos nepaleses e tibetanos, o complexo expunha torres
cobertas de ouro que brilhavam sob a luz do sol. Nos arredores da universidade,
próxima das principais atrações da cidade, havia infinidade de ônibus de turismo.
Vendedores, nem tão insistentes como na Índia, se aproximavam com conversas
sobre vendas, compras, negócios, sociedades, entre outros golpes. Não eram nada
simpáticos ou naturais.
Tailandeses e turistas frequentavam os barcos de linha
pelo rio. Quando as tailandesas eram bonitas, charmosas, de pele morena,
deixavam as turistas loiras ainda mais feias. Não por acaso, estrangeiros
acompanhavam putas tailandesas, invariavelmente estereotipadas, vestindo roupas
pretas de couro, justas e curtas. Ela morena e com tamanho de bolso, ele loiro
e com quase dois metros de altura. A cena patética chamava a atenção de
todos.
O avião decolou de Bancoc rumo ao aeroporto de Yangon,
Mianmar. O atendimento na chegada foi simpático e eficiente, apesar da
precariedade e simplicidade das instalações. A maioria dos jovens birmaneses
vestia sarongues, inclusive o guia que me aguardava no saguão.
Fomos a restaurante dançante e com comidas típicas. Houve
apresentação de danças folclóricas birmanesas. Belas mulheres cantavam músicas
horríveis, acompanhadas por músicos desafinados. As mulheres, realmente
estonteantes, pareciam notar o próprio amadorismo e não escondiam o embaraço no
palco. As exibições de mágica beiravam o ridículo e recebiam aplausos frios.
Mas a vista dos templos budistas era o brinde especial. Enormes e imponentes
cones dourados dos pagodes brilhavam sob a noite estrelada.
Depois do café da manhã, visitei o pagode Shwedagon, o
extraordinário templo budista visível de quase toda a cidade. Imenso, cônico,
todo dourado, cercado por inúmeros templos menores, dourados, prateados, de
madeira, de pedra. A religiosidade era grande e os fiéis lotavam os interiores,
rezando, pedindo, agradecendo, trazendo dinheiro, presentes, oferendas.
No lago de Yangon havia festival e corrida de barcos
antigos. Circulamos pelas imediações do centro da cidade e ao redor de outro
templo de cone dourado. Poucos e velhos veículos ocupavam as ruas largas e
arborizadas do centro. Não havia poluição. Nem parecia que a cidade abrigava
quatro milhões de habitantes. Nas ruas estreitas abundavam cortiços em prédios
de cinco andares com sacada nos apartamentos. O estado de conservação deixava a
desejar. Os moradores penduravam roupas e objetos nas sacadas e janelas.
Pedintes, sobretudo crianças, imploravam esmolas. Quase não se viam turistas.
Então eu virava a atração nas ruas, mercados, praças. Os mais ousados
arriscavam saudações curtas.
Os homens usavam camisa social de mangas curtas, sarongue
de estampas escuras, chinelos de dedo. Ficavam de cócoras para urinar. Eram
mais simpáticos e prestativos que os tailandeses. As mulheres vestiam blusa e sarongues
coloridos, normalmente sem estampas. Lembravam as indianas na beleza do rosto e
gestos insinuantes. Não deixavam de sorrir quando notadas. Passavam cremes
esbranquiçados nas faces, que as protegiam do sol e as deixavam perfumadas.
Andamos pelos mercados e atravessamos o rio Yangon de
balsa. Na outra margem apenas barracas de comida, pontos de ônibus, caminhões,
trixás para transportar os moradores para vilas mais distantes. Os trixás
eram ciclo-riquixás ou riquixás de bicicleta. Levavam dois passageiros, um de
costas para outro, ao lado do condutor.
Mianmar era governada com mãos de ferro pelo mesmo militar
desde o golpe de Estado em 1989. Mudou o nome do país de Birmânia para Mianmar,
em respeito às outras etnias diferentes da birmanesa. Isolou o país do resto do
mundo e fechou todas as fronteiras terrestres. A única porta de entrada oficial
era a capital, Yangon, somente por avião. O turismo se restringia a menos de um
terço da área do país. Entre tantas lendas a respeito do ditador, dizia-se que
era muito supersticioso e tinha obsessão pelos números 5 e 9. Daí o kiat,
a moeda nacional, possuir notas nos inusitados valores de 9, 15, 45, 90.
Excelente ideia para colecionadores. As escolas e a assistência médica eram
gratuitas no país. A população pagava apenas os livros e remédios.
Partimos com as bagagens para a estação ferroviária. Sem
vagão restaurante no trem noturno, tivemos que comprar bolachas para enganar o
estômago. Passava da meia noite quando embarcamos rumo a Mandalay. Confortável
e mais lento que os indianos, o trem balançava nas linhas mal conservadas. Não
estava lotado e a viagem seguiu tranquila. Ambulantes vendiam comida, frutas,
bebidas e doces pelos corredores.
Amanheceu com o trem percorrendo áreas planas. Montanhas
se elevavam ao fundo do horizonte. Havia plantações de arroz, girassol, milho.
Templos ou pagodes brancos se acumulavam por toda parte. Os vilarejos agrícolas
eram pequenos e pobres. As moradias muito simples, com paredes e teto de palha,
suspendiam-nas do chão para se protegerem das cobras e enchentes.
Em Mandalay, almoço típico e saboroso que encheu o bucho e
levantou o moral.
O parque do Forte e Palácio abundavam de verde, espaço
livre, tranquilidade, onde mostraram réplicas do local antes da destruição
pelos bombardeios japoneses durante a segunda guerra mundial. Seguimos até o
centro da cidade através de avenidas longas, amplas e arborizadas, tudo plano,
com centenas de bicicletas pelas ruas. A gostosa confusão se compunha de
mercados, feiras, ônibus velhos, trixás.
Vestindo bermudas, em contraste com os sarongues
masculinos dos birmaneses, eu me tornei sensação das ruas. Riam de mim, esculachavam,
ou apenas se espantavam pela novidade. De traços mais orientais e olhos
amendoados, as mulheres sorriam mais que em Yangon, correspondendo abertamente
aos olhares, mas somente à distância.
Seguimos de riquixá motorizado, com a carroceria coberta,
aos pés da colina de Mandalay. Foram centenas de degraus até o topo da colina,
em meio a diversas imagens de Buda. Infinidade de templos na parte alta e
baixa. Do alto a visão privilegiada da cidade e arredores. Tempo para
contemplar a imensidão e o pôr-do-sol de tonalidades variadas.
Jantar em restaurante de comida simples e saborosa. A
maioria das ruas do centro estava sem iluminação pública. Dezenas de barracas
espalhadas pelas calçadas, de mesas, bancos, cozinhas singelas, serviam chá e
davam toque especial às cenas.
Ao redor de Mandalay, cidadezinhas, antigas capitais que
se transformaram em vilarejos pitorescos. Após cruzar a ponte sobre o rio
Ayeyarwady, a vila de Sagaing, com a colina ao lado e centenas de templos em
cima e nos arredores da montanha. Do alto, vista maravilhosa do rio e
vilarejos. Não faltavam as caixas para doações aos templos budistas. Homens,
mulheres e pequenos monges pediam dinheiro por toda parte. Parecia que os
habitantes trabalhavam e entregavam o dinheiro suado para o comércio da
religião. Famílias produziam manualmente potes de barro ou bronze, copos
esculpidos de prata, tecidos coloridos para sarongues. Nos atendiam
sorridentes, nos ofereciam casa e comida. As moças atacavam com sorrisos
insinuantes. Almoçamos comida chinesa, picante e saborosa.
O vilarejo de Amarapura se situava na beira do lago,
acolhedor, com casas de bambu e muito verde. Atravessamos o lago pela antiga
ponte de madeira até o pitoresco vilarejo de Taungthaman. Não havia
eletricidade, apenas cabanas suspensas de bambu cercadas de palmeiras,
coqueiros, sombras refrescantes. Os sorridentes e simpáticos moradores teciam
artesanato primitivo. Os pagodes brancos não poderiam faltar, inúmeros deles
espalhados pela mata. Era delicioso caminhar sob as palmeiras e sorrir para os
moradores, que sempre retribuíam. As mulheres, mesmo com o ridículo creme nas
bochechas, exibiam muito charme. O guia não passava creme na pele, mas cobria a
cabeça e os braços para se proteger do sol. A tez clara era bem-vinda no país,
ao contrário da mais escura, provavelmente discriminada.
O local de artesanato em madeira e mármore produzia
imagens de Buda. Templos e casas não faltariam para colocá-las. Centenas de
imagens de Buda se espalhavam pelo interior dos templos. Desde as minúsculas,
com menos de cinco centímetros, até as maiores com mais de trinta metros de
altura, geralmente cobertas de outro. Os fiéis se postavam na frente delas,
rezando por horas e horas.
As comidas típicas de Mianmar eram galinha, carne de boi,
porco ou peixe, mas com o curry separado, para não vir tudo apimentado
demais. Também saborosos, a sopa de verduras, espécie de couve ou agrião, os
legumes com curry e muito, mas muito mesmo, arroz para acompanhar. Na
verdade, o arroz era o principal e os demais itens os acompanhamentos. As
sobremesas vinham de doce de tamarindo ou amendoim, frutas da estação.
Exceto a pobre decoração na portaria do hotel, não havia
sinais do dia de natal na cidade. Ainda bem.
Fui sozinho à cidade de Bagan, onde dois novos guias me
acompanhariam. O caminho até o hotel cruzou extenso sitio arqueológico, com
templos e ruínas. A dupla me levou para almoçar em ótimo restaurante.
Bagan era um museu a céu aberto quase a perder de vista.
Centenas de pagodes impressionavam pela idade, beleza, imponência, a maioria
construída entre os anos 900 e 1200 depois de cristo. Exploramos a área entre
inúmeras antiguidades, templos dourados, outros pequenos de madeira ao redor, o
com diversas imagens de Buda em arenito, o Ananda, talvez o mais interessante
deles, e muitos outros pagodes, mosteiros, ruínas, quase sem pinturas nas
paredes e tetos. O terremoto de 1975 e a falta de restaurações comprometiam o
estado de conservação da maioria deles. As raras pinturas visíveis mostravam
invasores mongóis durante a destruição quase completa da cidade.
Duro de aguentar eram os guias, sobretudo o chefe
tagarela. E como falava! Até pedi que fosse mais sucinto. Não teve jeito.
Vomitou infinitas estórias de Buda. Discursou um por um os dogmatismos
religiosos. Em cada imagem de Buda era meia hora no mínimo de preleções.
Repetia, à exaustão, que, segundo o budismo, a vida é um sofrimento, que
estamos nessa vida para sofrer. O outro guia era jovem, atrapalhado e
inexperiente. Quase não falava.
Mianmar não contava com grande infraestrutura turística e
se fechava para o exterior, preservando a pureza cultural, impedindo relações
estritamente comerciais com os visitantes. Como em Mandalay, os táxis em Bagan
utilizavam charretes puxadas a cavalo.
O pôr-do-sol na margem do rio Ayeyarwady nos presenteou
com cores divinamente carregadas. Jantar no mesmo e ótimo restaurante do
almoço, com os donos sentados à mesa.
E o sítio arqueológico de Bagan continuava a
maravilhar. Diversos e suspeitos buracos no chão apareciam nas redondezas dos
templos. O país era tristemente famoso pelas cobras venenosas, figurando entre
os primeiros do mundo em acidentes fatais. Os guias batiam os pés antes de
entrarmos nos templos para espantá-las. Não vi nenhuma viva, apenas peles
ressecadas e rastros recentes. O uso de sandálias, facilitando a retirada para
entrar nos templos, aumentava o risco de eventuais acidentes.
continua...
Tirando as cobras venenosas, aproveitei cada momento lido. A grande religiosidade me leva a acreditar que o correto realmente é crer para ver. O pôr-do-sol com seus vários matizes, a beleza tailandesa em contraste com as estrangeiras, enfim tudo é tão ricamente narrado que fico cada vez mais entusiasmada para ler seu diário de viagem.
ResponderExcluirseguindo viagem, não posso me dar o luxo de atraso. Abraços.
Obrigado pelos comentários, Ivete!
ResponderExcluirPuxa, que saudades de Myanmar, das cidades, da história, dos birmaneses de várias etnias, da culinária, da bagunça rsss.
Até tentei retornar ao país na minha segunda viagem à Ásia, mas os contratempos tailandeses me impediram. Pena...
Mas sempre me lembro de como me deslumbrei por lá.
Abraços!