...continuação
No vilarejo de Myinkaba, presenciei intrigante cerimônia
de iniciação de dezenas de crianças, prestes a se recolherem por anos dentro
dos mosteiros budistas. Desfilavam pintadas, montadas em cavalos, vestindo
coroas, usando guarda-chuvas dourados. As expressões não eram de felicidade e
várias choravam. Mais tarde raspariam os cabelos, se reuniriam para comer e
dançar músicas típicas ao som de xilofones, gongos, tambores e harpas. E não
faltavam as cores vivas, muitas cores vivas, em tudo.
O guia mais calado e atrapalhado somente abria a boca para
dizer inutilidades e chavões. E não sabia responder às minhas perguntas. O guia
principal, budista dogmático, não se livrava dos fedidos charutos. Alegava que
no budismo nada é permanente e que, por isso, não se importava com danos aos
pulmões. Ambos se esquivavam de qualquer pergunta que saísse do dogmatismo.
Abusavam de frases decoradas do budismo até ao discutir horários da programação.
Escarravam e assoavam o nariz sem lenço ou papel, com direito a muito barulho,
inclusive durante as refeições. A maioria da população se comportava assim, até
as atraentes birmanesas, para meu desgosto.
Mesmo fechado, o país vomitava lixo ocidental dos alto-falantes.
E importava também refrigerantes, uísques, cigarros. Placas com marcas das
famigeradas transnacionais se espalhavam nas cidades. As imagens de Buda eram
onipresentes, em estátuas, grandes ou pequenas, pedra ou ouro, pinturas nas
paredes e tetos. Apelavam até para as imagens nos televisores nos templos mais
modernos.
Ainda nos arredores de Bagan, o centro de treinamento de
fabricação de produtos em laca. Usavam tiras de bambu ou crina de cavalo como
matérias primas. Em seguida, vários banhos de laca, pinturas, desenhos com
estilete e polimento. Trabalho cuidadoso, bem feito, primitivo.
O guia mais jovem e atrapalhado seria meu único guia pelos
demais interiores do país. E sem saber quase nada de inglês ou dos locais a
serem visitados. Partimos pela manhã, percorrendo estradas tão estreitas que
precisava parar quando vinham veículos em sentido contrário. Vários trechos nem
eram pavimentados. Iniciamos a subida da serra e logo atingimos os 1.300 metros
de altitude. Pequenos ajuntamentos de barracos de bambu nas margens da estrada,
invariavelmente suspensos e precários, muitos nem sequer com móveis, abrigavam
famílias sobrevivendo aos trancos e barrancos. Os pedágios de religiosos
budistas abundavam nas estradas, interrompendo o tráfego, coagindo os passantes
a doarem dinheiro para a construção de mais templos. Diversas caminhonetes
lotações e ônibus velhos cruzavam pelo caminho. Chamá-los de lotados seria
eufemismo. Além dos esmagados da parte interna, havia gente até nos tetos dos
veículos. Muita gente misturada com muita bagagem.
Entramos no ramal para Pindaya. Nas margens da estrada,
pertencentes ao estado de Shan, circulavam habitantes com trajes típicos da
região, predominando os tons avermelhados, com panos nas cabeças. Seguimos
direto para as grutas, na verdade templo budista, aproveitando as reentrâncias
calcárias para instalar milhares de estátuas de Buda nas paredes, tetos, pisos.
Cada ponto servia para determinados temas. Havia estátuas que atendiam até os
interessados em ganhar na loteria. Outras eram para pedir sorte. Mas apenas na
próxima vida, claro. A despeito da beleza natural, o local se reservava a
romaria de budistas fanáticos e alienados. Estávamos no alto da montanha e a
vista dali era estupenda. A cidade e o lago se estendiam abaixo.
Pernoite em Pindaya onde jantamos sopa e lamem
reforçado com galinha. Comi muito e bem. Os moradores da região dormiam cedo,
pois tinham medo de serem recrutados pelas patrulhas do exército como
voluntários para obras civis em estradas e demais trabalhos pesados. Esfriou
durante a noite e os cobertores não foram suficientes.
Despertar ainda no escuro e descida por estradas estreitas
e fascinantes até a margem do lago Inle. O nascer do sol veio em meio à intensa
neblina. Na margem do lago fretamos barco para quase todo o dia.
Pescadores e barqueiros remavam com apenas uma perna, se
sustentando na outra, as mãos livres para pescar. A cerração na parte mais
larga do lago e as montanhas ao redor davam encanto especial à paisagem.
Atingimos o trecho onde ocorria o mercado flutuante, nas proximidades de
vilarejo lacustre, ao longo do canal e entre fileiras de palafitas. Os barcos,
transportando produtos agrícolas, entre outros, negociavam quando se tocavam,
vendiam, compravam, trocavam em vaivéns agitados. Apesar da pobreza, as
palafitas desenhavam conjuntos harmônicos e vistosos sobre as águas. As
construções se adaptavam perfeitamente às condições climáticas. Adiante pelo
lago, pelos canais que formavam o vilarejo, cruzados por caprichosas pontes de
madeira. Os moradores fabricavam e vendiam artesanato dentro e foras das
cabanas. Na extremidade do vilarejo, o pagode com torre parcialmente dourada.
Mais adiante, o mosteiro budista em madeira sobre as águas, construído há mais
de dois mil anos, guardava diversas estátuas e imagens douradas de Buda. No
centro se destacava a cadeira de madeira finamente trabalhada e reservada às
pregações. Mesmo depois de visitar dezenas de templos e pagodes, aquele chamou
bastante atenção.
Almoço na simpática pousada em Nyaung Shwe, sob o sol
agradável, com vista relaxante das águas do lago Inle, bem ao lado.
Subida do relevo em direção a Taunggyi, em cujo alto da
serra, outro pagode com vista panorâmica do vale e da cidade. A 1.450 metros de
altitude, Taunggyi era moderna e sem atrativos especiais. Os moradores não
vestiam sarongues. Dentro de casacos de couro com símbolos ocidentais, os
rapazes imitavam atores do cinema estadunidense.
O guia bobão e atrapalhado nada articulava além de
estúpidas frases decoradas, tais como:
“este é o hospital da cidade”,
“ali é o exército”,
“os soldados se vestem de verde em Mianmar”,
“esta cidade se chama Taunggyi”,
“Taunggyi é o nome desta cidade”.
E ao entardecer, me levou a lugar vazio e abandonado, com
mato alto, lixo, onde o pôr-do-sol foi emoldurado por fios de eletricidade,
construções em obras, estradas asfaltadas. Ainda bem que o país era fascinante
e me fazia ignorar o sujeito.
Pela manhã, voltas pelo mercado ao ar livre de Taunggyi.
Tipos diferentes e coloridos vendiam de tudo, nas barracas, calçadas, ruas.
Descida da serra por estrada sinuosa e estreita. Os
motoristas, porém, não dirigiam perigosamente, havendo sempre respeito e
solidariedade. A mão de direção em Mianmar fora recentemente transferida para a
direita. Mas os volantes dos carros continuavam também do lado direito. Nas
ultrapassagens, o motorista precisava avançar bastante na pista contrária para
conseguir ver os veículos no outro sentido. Tentava não prestar atenção, mas
sentia calafrios nessas tentativas. No toca-fitas do carro rolava a tal de Miss
Sweet que, segundo o bobalhão, cantava músicas birmanesas. Apenas a língua era
local. As melodias, arranjos, estilos de voz eram cópias ruins do lixo
estadunidense.
Durante a espera do trem em Thazi, me instalei em pousada
precária. As instalações davam pena. Não havia banheiro nos quartos. Os
chuveiros não contavam com vasos sanitários ou latrinas. Senti dor de barriga
durante o banho. Descarreguei ali mesmo com o chuveiro aberto. Tentei empurrar
o barro até o ralo. Não era ralo e toda a massa marrom escura tomou o caminho
de volta. Encontrei finalmente o ralo, arrastei tudo novamente e a coisa se
foi. Mas antes disso o banheiro alagou. Fechei o chuveiro até a água suja
baixar. Reabri então o registro e voltei ao banho normalmente.
E lá fui eu e o bobão do guia em direção a Yangon. O trem
era bem melhor que o da ida. Corredor central, dois bancos largos e espaçados.
Apenas um banco do outro lado do corredor. Reclinavam o suficiente e envolviam
pelo conforto. Os garçons serviram arroz frito com galinha e ovo. O vagão
oferecia música ambiente de mau gosto, do tipo da tal Miss Sweet. Depois
ligaram o vídeo, com filme local dramático e triste. A programação seguiu com
musicais horrorosos e ocidentalizados. O mais interessante veio com as apresentações
folclóricas birmanesas. Comediantes e improvisadores se revezavam. Duplas
interpretavam canções típicas. Curiosíssimo.
Despedi-me do guia atrapalhado na chegada em Yangon. Ainda
o adverti sobre os incontáveis erros cometidos, aconselhando-o a estudar mais
para se tornar guia de verdade. Fez cara de paisagem e não sei se entendeu o
recado. Reencontrei o primeiro guia e passeamos mais pela capital. Fomos ao
parque, extenso e refrescante, ao mercado local, ao centro da cidade. Depois
almoçamos em restaurante típico birmanês na beira do lago. Entre infinidades de
assuntos, ele citou que nas universidades estavam proibidas as conversas sobre
política e assuntos afins.
Comecei a sentir saudades de Mianmar antes mesmo de
partir. As birmanesas substanciosas, bonitas, sorridentes, charmosas,
insinuantes. A hospitalidade, o jeito antigo e calmo do povo. As belezas
naturais, arquitetônicas, históricas. A comida picante e saborosa.
O avião decolou rumo à Tailândia. Mas eu queria ficar.
Na feia Bancoc tomei táxi até a pousada através de
trânsito infernal.
Na manhã seguinte, peguei o trem com destino a Ayutaya, a
antiga capital da Tailândia. Localizado no centro da cidade, o sítio histórico
cobrava ingresso caro para ver restos de antigos templos e palácios, ruínas
abandonadas em meio a favelas e oficinas mecânicas. Não havia qualquer
preocupação arqueológica, apenas comercial.
Virada de ano em país chato como a Tailândia, em meio a
turistas desinteressantes. Bebi muito do uísque tailandês e o efeito tenebroso veio
a seguir. Após acordar tarde e com bruta ressaca, andei aos templos nas margens
do rio Chao Phraya, lotados de turistas, exibindo gigantescas imagens de Buda.
Bancoc não animava. Cidade feia, sem charme, sem opções sedutoras de passeios.
Depois da Índia e Mianmar, tudo parecia sem graça.
Perambulei com novos colegas pelos becos e palafitas até o
local onde atracavam os barcos reais, usados apenas em datas comemorativas.
Nesses dias o rei e a rainha, dezenas de remadores, mais os barcos da comitiva,
desfilavam pelo rio diante dos moradores. À tarde, nova visita ao Grand Palace,
o conjunto de templos, palácios, museus, jardins, com muita foliação a ouro,
brilho e imponência nas construções diversificadas. Havia mais turistas que
formigas. Nas dependências internas, aonde não podia entrar de roupa esporte,
bermuda ou sandálias, havia uma estátua de Buda em jade. Circulamos de barco pelos
canais do rio Chao Phraya, onde as construções possuíam somente acesso fluvial.
Barcos lotações buscavam e entregavam os moradores em horários
pré-determinados. Casas simples, favelas, habitações de classe média, de
madeira ou alvenaria, templos, lojas, se misturavam nas margens dos canais.
À noite fui arrastado à deprimente região de Patpong, a
zona de prostituição da cidade. Tailândia figurava entre os paraísos do turismo
sexual, da produção e comercialização de tóxicos, dos crimes organizados. As
putas serviam como escravas brancas aos turistas do assim chamado primeiro
mundo. Patpong compunha-se de dois quarteirões entupidos de ambulantes que
vendiam mercadorias falsificadas. Os puteiros e salas de striptease,
geralmente com as portas abertas, exibiam cenas previsíveis de seminuas se
balançando ao lado de roliças barras de ferro. Nada diferente dos congêneres
pelo mundo afora. De pé, nas portas dos estabelecimentos, os funcionários
chamavam trouxas afirmando que aquela casa era a melhor e que não aplicava
golpes. Nenhum cliente tailandês. Apenas os espertos cidadãos de evoluídos países
tais como Estados Unidos, Canadá, Europa, Japão, Austrália, Nova Zelândia.
Apressei o passo e dormi cedo.
Em espera dos trâmites burocráticos para entrar no Vietnã,
mais espetáculos da Bancoc voltada ao turismo estúpido. A fazenda de orquídeas
e borboletas não passava de imenso ponto comercial com raras orquídeas e
borboletas. Mas o pior ainda estava por vir, o mercado flutuante, mais
conhecido por floating market. A expressão em inglês combinava com o
lugar. Milhares de lojas, milhares de turistas. Barcos vendiam produtos
industrializados para os gringos, como falso artesanato, ou apenas em exibição
para fotos. Era a Tailândia ocidentalizada voltada para os turistas ocidentais.
Retornamos de tuc-tuc, as motos com carroceria para quatro pessoas. O
piloto efetuava manobras arriscadas em alta velocidade. Ziguezagueava por entre
os demais veículos e motos. Tirava finas incríveis, cantava pneus. Mas chegamos
vivos e inteiros.
Embarcamos com destino ao Vietnã. Ficaria livre, pelo
menos até a volta, da deprimente Tailândia.
A exploração do Vietnã começou pela plana cidade de Saigon.
Poucos prédios, casas mal conservadas, poucos carros, muitas motos, bicicletas
e ciclos, os táxis em bicicletas onde o passageiro sentava na frente do
condutor. A primeira impressão agradou. O povo sorria e não assediava. Passeio
pelo mercado, rio, centro da cidade. Poucos mendigos e sem teto. Placas de
marcas das grandes transnacionais e propaganda de importações se espalhavam
pelas ruas. Refeições eram servidas nas calçadas. A fim de atravessar as ruas
movimentadas e sem semáforos, bastava caminhar em velocidade normal e
constante, pois os veículos, motorizados ou não, desviavam e nunca ameaçavam.
Os vietnamitas, mesmo rumo às festas e enfeitados, não quebravam os costumes,
se locomovendo de motos, lambretas, bicicletas.
Com cinco mil anos de existência, a língua vietnamita fora
convertida para o alfabeto latino no século XVIII. Mas apenas a escrita. A
língua se manteve monossilábica e multitônica, onde as sílabas podem apresentar
até seis tons. Foi criado complexo sistema de acentuações na intenção de
diferenciar esses tons. Há palavras com mais de um sinal na mesma letra, acima
ou abaixo dela. Ao tentar dizer uma coisa, o som emitido poderia significar
outra completamente diferente, de sentido oposto ou mesmo ofensivo.
Jantar em restaurante de comida regional, com mesas na
calçada. Envolvia a maioria dos itens em papel de arroz e depois os mergulhava
em molhos temperados. Provei lulas, sapos, diversas qualidades de
verduras.
Valeu a pena circular pelos mercados e ruas, tomar
contato com os moradores e comerciantes do bairro chinês de Cholon, sempre
simpáticos e alegres. Visita ao impressionante Museu de Crimes de Guerra, que
expunha os horrores cometidos pela França, Japão e Estados Unidos durante as
invasões ao Vietnã. Bem montado e explicado nas diferentes fases, o espaço
incluía fotos das atrocidades estadunidenses contra os vietnamitas, em
torturas, chacinas, destruições, assassinatos, arrogância imperial. A
guilhotina francesa foi utilizada contra o povo vietnamita até fins da década
de 1950, quando a França ainda ocupava militarmente o país. Quase 200 anos após
a revolução francesa! O museu localizava-se em bairro com ruas arborizadas e
parques muito verdes. Famílias de mendigos pediam esmolas, enquanto carros
importados circulavam pelas ruas. À saída do museu as ruas lotaram de
bicicletas e motos vindas das saídas das escolas.
continua...
Comecei a sentir saudades de Mianmar antes mesmo de partir. As birmanesas substanciosas, bonitas, sorridentes, charmosas, insinuantes. A hospitalidade, o jeito antigo e calmo do povo. As belezas naturais, arquitetônicas, históricas. A comida picante e saborosa. Eu também senti saudades.
ResponderExcluirOi Ivete!
ResponderExcluirMianmar vale cada sacrifício, cada contratempo, cada desconforto, enfim, cada obstáculo. O país e o povo, a despeito da brutal ditadura, envolvem de tal maneira que não queremos ir embora.
Preciso voltar lá, antes que o país se torne um parque de diversões do ocidente, como a deprimente Tailândia.
Abraços!