quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 3/7)

...continuação
Embarquei em riquixá rumo a Pashupatinah, um complexo de templos hindus em meio a caminhos por entre as árvores. Ao lado, o afluente do rio Ganges e, por isso, sagrado. Os fiéis se banhavam nas águas sujas. Corpos eram cremados nas margens. A cena impressionava e impunha respeito. Fotografias não eram bem vistas. A arrogância dos gringos loiros pressionava os obturadores mesmo assim. Assisti os rituais da outra margem do rio. Saris, flores, essências em pó ou liquido, criavam marcante contraste de cores nas escadarias. Sadus perambulavam pelos templos, pintados, sujos e seminus, pedindo contribuições ou comida. Dezenas de macacos circulavam entre as árvores e nas escadarias da margem do rio.
Outro riquixá para Bodnath, templo budista dotado de estupa grande, circular, com detalhes em ouro. Inúmeras lojas de artigos religiosos e lembranças turísticas se aglomeravam ao redor.
Momento de ir à barbearia. Só havia uma cadeira disponível e cada um assistia o corte do outro. Após dar cabo da barba de vinte dias, o barbeiro iniciava sessão de massagem da barriga para cima. Eram pancadas com a frente e as costas das mãos, puxadas musculares, torções do pescoço, esticadas para lá e para cá. Divertido demais para quem recebia ou assistia.
As nepalesas do tipo indiano humilhavam as turistas pela beleza de rosto e corpo, pele morena, cabelos longos e negros, charme e sensualidade.

A cidade de Baktapur, perto da capital, restringia a circulação de veículos motorizados nas ruas. Sorte dela e dos visitantes. Andar pelos becos e ruas estreitas da cidade era verdadeira viagem no tempo. Calmaria, templos hindus, construções antigas com portas e janelas finamente trabalhadas em madeira. Secagem de arroz ao sol, teares manuais produziam belas peças. Mães banhavam os filhos na rua. Grupos de amigos e familiares se reuniam sob as sombras para conversar e esperar o tempo passar, sem pressa. Parecia que nada mudara em séculos. Nem precisaria.
E veio o dia de deixar o Nepal.
O atrasado embarque para a Índia só aconteceu à tarde. Achei melhor reservar táxi e hotel logo no saguão do aeroporto de Delhi. O taxista ainda alegou isso e aquilo para me fazer mudar de ideia. E, ao me conduzir a hotel diferente do escolhido, suplicava, com ares de ator canastrão, para que eu aceitasse a generosa sugestão. Permanecemos ali durante meia hora, enquanto ele se fingia de vítima. Após concluir que eu não arredaria pé, baixou a cabeça, exagerou no gesto dramático e, muito sentido, me conduziu finalmente ao hotel que eu reservara. Tentou ainda me enrolar ali no desembarque e, com expressão entristecida, fechou a porta do carro e nem se despediu. Péssimo ator.
Saí à procura de comida. Caminhei pelas regiões do Bazar central, estação ferroviária, arredores da parte velha da cidade.
Bastava encontrar um ponto na calçada e simplesmente observar a fascinante bagunça da velha Delhi. Havia de tudo. Homens tomando banho na sarjeta, barbearias ao ar livre, mictórios na calçada, veículos, vacas, outros animais, cargas, bicicletas, motos, lojas, ambulantes, barracas de comida. Gente, muita gente. O chão parecia tremer de tanta gente. Eventualmente um elefante passava com alguém no lombo. A síntese da Índia se revelava da esquina. Louca, confusa, barulhenta, suja, velha, mas extremamente interessante. Difícil descrever. Consertos de dentadura, comidas das mais variadas oferecidas nas calçadas, oficinas, passadores de roupas, mais animais, mais gente. Não sabia para onde olhar. Tudo fascinava.
Segui ao Forte Vermelho, enorme complexo de fortificações, construções de mármore, jardins, mesquitas. Passei pela enorme mesquita Jami Masjial. Tentei seguir adiante, variar o caminho de volta, mas me perdi nos becos. Demorei horas para saber onde estava e como sair dali. Os tipos físicos nas ruas eram dos mais diferenciados. Ninguém se parecia com ninguém. Raramente havia semelhança de rostos, cabelos, roupas, cor da pele, corpos, estaturas. Mas me olhavam intensamente. Suspendiam o que faziam, interrompiam as conversas, deixavam de engolir a comida, paravam as bicicletas, deixavam a carga no chão, se viravam.

Caminhei pela parte nova de Delhi. Pontos de artesanato, parques, lojas variadas, livrarias, prédios públicos, bancos, restaurantes, hotéis. Do imenso círculo central saiam avenidas radiais que cortavam as circulares. No meio do círculo, jardins, gramados e bancos para tentar relaxar. Impossível. Os indianos apareciam aos montes e assediavam sem dó nem piedade. Consertavam ou lustravam calçados, limpavam ouvidos, massageavam, analisavam a sorte, vendiam, pediam. Muito insistentes, eles perguntavam a minha vida inteira. À minha resposta sobre de onde eu era, repetiam automaticamente que eu vinha de lugar muito bom. Queriam saber a idade, quanto tempo na Índia, por quanto tempo ficaria, se eu estava gostando, perguntavam sobre casamento, filhos, nome do pai, profissão, salário. E insistiam, insistiam, insistiam. O limpador de ouvidos me forçou a ler uma caderneta, onde havia recomendações positivas dos serviços, escritas por pessoas das mais variadas nacionalidades, em diversas línguas. Nelas, os “clientes” teciam elogios ao método infalível contra cera no ouvido. Tratava-se de longa haste de metal com o tufo de algodão da ponta retirado de maçaroca do bolso da calça. Enquanto o indivíduo me mostrava os elogios escritos, se posicionava ao meu lado e apontava a haste em direção a minha orelha. Insistia muito. Não havia como relaxar. Descansar, somente no quarto do hotel.
As vassouras não tinham cabo na Índia e Nepal. Quem as usava era obrigado a se abaixar e permanecer assim durante a limpeza. A impressão era que tudo na Índia era antigo e velho.
O restante do grupo aterrissara na cidade na noite anterior. Despertar antes do amanhecer para tomar o trem a Ajmer. As margens das ferrovias, pelas manhãs, se enchiam de indianos que cagavam de costas para os trens. Com eles, a lata de água para a higiene das partes, sempre executada com a mão esquerda. Não era um ou dois, mas dezenas deles, enfileirados próximos às dormentes, de cócoras, na espera da saída diária dos produtos orgânicos. Não se importavam com a passagem dos trens. Nada faziam de anormal. Ao contrário. Como eles próprios afirmavam:
“a vergonha está em quem olha e não em quem faz”.
A paisagem vista pela janela do trem era plana e cultivada, com raros e pequenos serrotes. Camelos substituíam os bois ou cavalos. O ônibus velho nos pegou na estação ferroviária de Ajmer levando à cidade de Pushkar.
Local sagrado do hinduismo, Pushkar se estendia à beira de grande lago e aos pés de pequenas serras. Contava com seqüência de templos e escadarias, cujos degraus (ghats) desciam às águas do lago. A cor branca predominava em tudo. As escadas eram usadas para as cerimônias religiosas e cremações.
Antes de clarear, e sem os sapatos, eu estava nos degraus para assistir os hindus se benzerem nas águas do lago sagrado. Os brâmanes, religiosos pertencentes à casta mais alta no hinduísmo, cobravam aos turistas pelo ritual de purificação, o pujat. Nem pensar! O nascer do sol, refletido nas águas do lago, valorizava o momento reflexivo. Caminhei pelas ruas e becos atrás dos templos. Por ali circulavam pessoas coloridas, esquisitas, vacas, camelos. À tarde subida ao topo do morro nas proximidades da cidade, onde havia o templo em homenagem à mulher do Brahma. Do alto, impressionava a vista de Puskar, de outras pequenas serras, do deserto enevoado a oeste.
A maioria dos moradores de Pushkar era simpática e sorridente. A exceção ficava por conta da insistência das crianças, que pediam dinheiro e caneta, e dos vendedores de instrumentos de corda, que demonstravam lentamente os sons. Nunca desistiam. Além da arquitetura, o que mais se destacava eram as cores fortes das roupas das mulheres e dos turbantes dos homens, estes invariavelmente exibindo enormes e cuidados bigodes.

Durante a noite, soaram percussões e cantos, vindos da região dos templos, ecoando por toda a cidade.
Muitas horas de ônibus por estradas asfaltadas e estreitas, cortando regiões cada vez mais desérticas, com arbustos esparsos, veados com dois longos chifres, aves semelhantes às codornas. Almoço na cidade de Nagaur, em hotel sujo, mas com comida típica e comível.
Acampamento em Jambha, dentro da velha fortificação. Antes do jantar, o dono do pedaço providenciou espetáculo musical e dançante, com tambores e algo similar à sanfona. As dançarinas, em trajes típicos do Rajastão, se requebravam em movimentos sensuais dos quadris e das mãos. Pareciam trejeitos de cobras. A noite estava limpa e estrelada. Morcegos e grilos, que mais lembravam baratas, voavam baixo.
Pela manhã, montados em camelos, adentramos o deserto de Thar por quase sete horas. No caminho visita à pequena aldeia muçulmana, cujas cabanas cobertas de palha, construídas em areia e barro de cor ocre, eram decoradas com pinturas nas paredes. Os poços para obtenção de água subterrânea se restringiam às propriedades ricas. Nas demais as cacimbas faziam o papel de reservatórios de água. Almoço sem pressa em oásis, ao lado de centenas de camelos descansando e se hidratando. E adoravam se deitar ou se esfregar na areia. Vez ou outra namoravam e mantinham relações sexuais.
Os camelos nunca corriam, raramente trotavam, andavam lentamente. Eu os montava apenas quando agachados. Levantavam as pernas traseiras, inclinando-se totalmente para frente e, somente então, levantavam as pernas dianteiras. Entre essas duas etapas, eu tinha a impressão que despencaria de cima deles. No momento do desmonte, a situação era invertida, mas a sensação de queda iminente permanecia.
As mulheres optaram por serem acompanhadas do condutor, montado atrás delas. Um deles molestou uma delas e foi logo substituído. E o dito cujo estava prometido para casamento, cuja noiva ele vira apenas uma vez, por meia hora. Estava com 16 anos e a veria novamente só daí a cinco anos, na cerimônia de casamento.
Nas paradas, os indianos formavam roda e não se cansavam de nos observar, perguntar o país de origem, os nomes e muito mais. Os olhares eram fixos e cheios de curiosidade. Enfileirada e sobre os camelos ao entardecer, a expedição formava sombras na areia que lembravam as antigas caravanas pelos desertos.
O deserto de Thar não era somente areia. Contava com musgos, arbustos e árvores isoladas de médio porte. Espinhos pontiagudos não faltavam. O calor era suportável, ao contrário do sol, implacável. O pavão, símbolo do Rajastão, perambulava pelas areias, nas quais os buracos constantes indicavam a presença de grandes roedores.

Acampamento no final da tarde no meio das dunas. E os camelos ao lado. O pôr-do-sol foi de cair o queixo e a noite estrelada parecia tocar os rostos. Inesquecível. Jantar farto e saboroso em meio às fogueiras acesas. Depois apresentações musicais e de dança executada pelos guias e os ajudantes de camelos.
Antes de dormir, o guia alertou sobre a possível presença de escorpiões. Verifiquei com cuidado e não vi nenhum perto da barraca ou dentro das botas.
O nascer do sol no acampamento foi espetacular. A bola de fogo se ergueu atrás das dunas no fundo do horizonte.
Retorno cedo por caminho diferente e mais curto que o anterior. O sol pegou forte. No meio do percurso, passagem por escola rural. Os alunos, crianças e adolescentes, rezavam em público sob a disciplina férrea. O responsável pelo bom andamento da cerimônia circulava com pedaço de pau e o usava nas costas dos indisciplinados. Antes de meio-dia eu desmontava do camelo em Jambha, com as pernas abertas e doloridas, a bunda achatada. Mas feliz pela expedição inusitada.
Ônibus rumo à cidade de Jaisalmer, ainda no deserto de Thar.
O hotel ficava na parte interna da cidade murada, um forte construído no século XII. Apesar de bonito e bem decorado, com arquitetura fiel à época e com vista privilegiada da cidade fora da fortificação, o hotel era mal administrado e com serviços de espelunca. As instalações estavam apodrecidas, o banheiro caindo aos pedaços, com vazamentos, sem água quente. Em minha segunda viagem à Índia, eu aprenderia que, quanto mais aparência e suntuosidade, maior a decepção com os hotéis indianos. Viajando por conta própria era melhor se hospedar em hotéis simples, com banheiro no quarto, mas sem frescuras ilusórias. Muito mais baratos, a qualidade interna deles correspondia ao aspecto externo. Sem falsas expectativas, se conseguia bons lugares a preços justos.
Pela manhã passeio pelas ruelas e construções internas do forte. Visita ao complexo de templos da religião jain. Belíssimos, limpos, ricamente trabalhados. Mas os religiosos cobravam para fotografar os interiores. Praticamente todas as construções dali e a maioria das casas antigas, chamadas havellis, e datadas do século XVII, na parte externa eram em arenito finamente trabalhadas, com figuras, treliças, imagens, portas, janelas, sacadas. Tudo em rocha. Os desenhos impressionavam pelos detalhes e mais pareciam feitos em madeira. Ao redor do forte, Jaisalmer comportava o principal dos estabelecimentos comerciais, o grosso do movimento.
continua...

2 comentários:

  1. Esta é a India que desejo conhecer...profusão de gente, cores, mercadorias, cheiros, animais, cultos, costumes...Consegue expor tão bem o que viu, o que viveu, o que sentiu...fico emocionada.Parabéns!

    Seguindo viagem.

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  2. Oi, Ivete, obrigado pelos comentários!
    Certamente você irá conhecer a Índia. Torço por isso.
    Evite os pacotes caríssimos e mal organizados das agências de turismo e mergulhe de cabeça nessa cultura diferente e fascinante.
    E, claro, conte tudo para nós depois.
    Abraços!

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