sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

do Nepal ao Vietnã (parte 1/7)

Finalmente realizaria o antigo sonho de explorar o Nepal, a cordilheira do Himalaia, a Índia, o Vietnã, outros países da Ásia.
Embarquei em outubro, no aeroporto de Cumbica, rumo ao primeiro trecho aéreo. Não havia espaço para as pernas no avião apertado da empresa aérea inglesa. O avião pousou em Londres no início da manhã. O voo de conexão só sairia à noitinha. Comprei bilhete de metrô válido para um dia e saí às ruas. Ainda me lembrava da cidade desde a visita de oito anos antes. Londres continuava a deliciosa salada cultural de sempre. O frio e a garoa obrigaram a me refugiar nas dependências da Galeria Nacional. Bateu o sono e cochilei nos sofás.
Embarquei em voo noturno com destino a Delhi. Mais um avião da mesma empresa aérea inglesa. Mais aperto e desconforto. O atraso causado pelo passageiro inglês em Londres me custou a perda da conexão para Kathmandu. A estonteante beleza das indianas que me atenderam no desembarque em Delhi compensou a transferência da passagem para o dia seguinte e o transporte ao hotel. Dormi cedo para tentar recuperar o sono perdido. A enorme diferença de fuso horário começava a bagunçar o relógio biológico.
Baixei cedo no aeroporto. No avião menor da empresa aérea indiana, mais espaço para as pernas. As comissárias indianas serviram balas e potes com grãos perfumados e esverdeados, parecendo alpiste. O voo rápido levou ao aeroporto de Kathmandu. As bagagens demoraram a aparecer e foram vistoriadas aleatoriamente. Paguei o visto de entrada no balcão de imigração.
Estava no Nepal, início de minha viagem à Ásia. No caminho ao hotel deu para sentir o trânsito caótico pelas ruas estreitas, entupidas de carros, ônibus, bicicletas, motos, riquixás e gente, muita gente. Jantei e dei uma volta básica pelas redondezas. O cansaço me empurrou de volta ao quarto do hotel.

Delicioso o café da manhã ao ar livre. Inúmeras opções de comida, cruas ou cozidas, salgadas e doces, sólidas e líquidas. Mais descansado, o ânimo crescera para explorar a cidade.
Passeio pela praça Durbar e arredores do centro. Templos e mais templos budistas e hindus, o antigo e imponente palácio real e a casa da Cumari, a rainha viva, cujo pátio interno guardava portas e janelas ricamente talhadas em madeira. Era desgastante caminhar nas ruas, invariavelmente estreitas, sem calçadas, com trânsito infernal e barulhento. Mas de todos os lados surgiam imagens interessantes. Segui ao templo budista de Swayambhunath, situado no alto do morro e com vista privilegiada da cidade. As nuvens deixavam tudo com tonalidade acinzentada e pouca luminosidade. Os monges, vestidos com túnicas avermelhadas, eram simples e bem humorados.
O pequeno avião que nos levou a Lukla pousou em pista de terra inclinada.
Teve início a travessia de vinte dias pela cordilheira do Himalaia, acompanhando o vale do rio de água verde leitosa. A trilha não chegava a encher de turistas, exceto nos mirantes e pontes suspensas, as quais, extensas, muito altas e sustentadas por cabos de aço flexível, emocionavam ao transpô-las, sobretudo ao oscilarem pelo vento ou pela passagem dos iaques. As águas do rio corriam com violência assustadora, bem abaixo de nós.
Chegada ao anoitecer em Monjo, ponto do primeiro acampamento, a 2.850 metros de altitude. Durante a madrugada a vontade insuportável de urinar me tirou do saco de dormir e da barraca. Fazia frio intenso, mas o céu estrelado deslumbrante fez esquecer o desconforto.
Amanheceu com céu azul e temperatura na marca de 2 graus negativos. Enormes montanhas nevadas se erguiam ao redor. A caminhada exigiu mais esforço e subi de altitude por trilha com fortes desníveis. O cansaço era deixado de lado diante do impacto visual da sucessão de belas montanhas. Primeira visão do monte Sagarmatha (Everest), com o Nuptse e o Lotse ao lado, dentro dos limites do Parque Nacional Sagarmatha. Atravessei outras pontes suspensas, mais altas, mais oscilantes, mais fascinantes. Acampamento em Nanche Bazar, a 3.410 metros de altitude, povoado colorido e alegre encravado na encosta da montanha.
Subi mais de 400 metros de desnível até o patamar com a privilegiada vista do Nuptse, Lotse, Sagarmatha (Everest), Amadablan, entre outras montanhas nevadas. Prossegui aos pequenos vilarejos de Kunde e Kunjung, ambos cercados por pedras e exibindo visual impressionante dos picos.
Uma grande bolha surgiu no dedão do pé direito. Tive que furá-la com agulha esterilizada para soltar o líquido e manter a linha de costura por dentro durante a noite.
O jantar iniciava sempre com sopa. Naquela noite foi de gengibre com legumes. Depois serviram momo (pastel tibetano fervido) e bolo de frutas. Para beber, opções de chá, suco artificial ou limonada, tudo invariavelmente quente.

Circulei pela manhã na animada feira semanal de Nanche Bazar. O açougue, ao vivo e em cores, expunha cabeças, pernas e demais pedaços de animais ao ar livre. Os habitantes utilizavam a bosta dos iaques como combustível nos fogões e aquecedores.
Retomada da trilha, oscilando entre subidas abruptas e trechos planos, tendo, ao lado, precipícios respeitáveis. O pico Transekur se erguia bem à frente. Do outro lado do vale, as vilas de Portse e Tengboche, com o mosteiro budista em evidência. A caminhada na parte da tarde foi mais dura com interminável subida até o templo budista a 3.950 metros de altitude. Desci em seguida ao ponto de acampamento em Portse Dranka, a 3630 metros de altitude, próximo ao rio, com temperaturas mais baixas. Nenhum turista acampado por ali.
Nos horários livres escrevíamos, líamos ou jogávamos cartas. Mais uma noite com o céu estrelado e ao som relaxante das águas do rio.
A caminhada curta levou a Dole, a 4.015 metros de altitude. O objetivo era a aclimatação lenta e gradual. Os rios estavam quase cobertos de gelo. As quedas d’água congeladas chamavam a atenção. Dole consistia de extenso gramado, algumas casinhas e refúgios, o pequeno córrego ao lado. E foi ali, no quinto dia de caminhada, que consegui tomar o primeiro banho na trilha.
A equipe de apoio era composta de sete sherpas, sempre atenciosos, simpáticos e prestativos. Nunca reclamavam de nada, suportavam cargas pesadas, sorriam com frequência.
Amanheceu com 7 graus negativos. A grama estava esbranquiçada, a toalha de borracha, deixada fora, congelada, a barraca coberta de gelo.
Caminhada curta até Machermo, a 4.400 metros de altitude. A quantidade de neve era mais expressiva, inclusive no acampamento, próxima às barracas. As geleiras surgiam nas encostas das montanhas e a vegetação tornava-se mais escassa e rala. Praticamente não havia árvores. Os pequenos povoados encravados nas encostas íngremes das montanhas encantavam pela simpatia. A temperatura não parava de cair, mesmo durante do dia, graças ao vento. Começou a nevar à tarde, cada vez mais forte. O frio tornou-se insuportável e nos escondemos no refúgio, permanecendo ali até o jantar, ao lado do aquecedor à base de bosta de iaque. O tempo se acalmou depois das 20h, abrindo céu estrelado, mas o chão do acampamento e as barracas se cobriram de neve.

A flatulência dava o ar da graça acima dos 3 mil metros de altitude. E os gases acumulados tinham que ser liberados. Eram peidos e mais peidos, involuntários, constantes, barulhentos, fedidos. Não havia hora e nem lugar. A situação constrangia no primeiro momento, obrigando a sair do refúgio ou da barraca-refeitório e aliviar do lado de fora. Depois desistíamos e relaxávamos ali mesmo. Ninguém mais se incomodava. Nas paredes internas dos refúgios, no entanto, o desenho e a frase em inglês advertiam: “proibido peidar”.
Amanheceu com 16 graus negativos. A neve cobria toda a área do acampamento. Assim que abri o zíper externo da barraca, o gelo e a neve caíram sobre as mãos. O chão escorregava e exigia cuidados para manter o equilíbrio. O sol brilhava forte e refletia na neve. A barraca-refeitório foi desmontada para o café da manhã ao ar livre. Ao redor, tudo nevado e branco. Gorro, luvas e toda a roupa não aqueciam o necessário.
Reinício da caminhada, subindo mais e mais. Todo cuidado era pouco para não escorregar na trilha nevada. A vegetação resumia-se a tufos rasteiros. Os rios transformaram-se em blocos de gelo. A paisagem branca e a infinidade de picos nevados tornavam a paisagem inóspita e encantadora. Atravessei o rio caminhando sobre gelo e pedras. Pequenas cascatas congeladas despontavam aqui e ali. Os lagos da região de Gokio apareceram um a um, cujas águas esverdeadas contrastavam com as geleiras e picos nevados ao fundo. Atingi o ponto de acampamento de Gokio, a 4.750 metros de altitude.
Subindo a crista do outro lado do vilarejo me deparei com a imensa geleira e a morena com areia e rocha acinzentada. Blocos se despedaçavam e causavam estrondo considerável. Caminhei ao longo da faixa estreita da crista. O tempo fechou no meio da tarde. Começou a nevar acentuadamente e o frio castigou. Desci imediatamente e me escondi no refúgio, ao lado de outros caminhantes. Formávamos círculo amplo ao redor do aquecedor. Parecia que cada país do mundo estava ali representado, tal a diversidade de tipos e línguas.
Quase não dormi durante a noite. O colega de barraca, que ia de mal pior, roncou feito trator na subida com afogador entupido. O processo de tristeza dele evoluíra para depressão. Nem subiu o pico de Gokio no dia seguinte.
Despertar antes do amanhecer. Engoli a grande tigela de sopa, bem quente, com tudo dentro, que levantaria até defunto. Início da caminhada ainda no escuro. Antes de começar a subida, trechos alagados e congelados. Foram 500 metros de desnível até o cume. O traçado bastante sinuoso da trilha amenizava o esforço físico. Depois de duas horas, quase sem fôlego e sem pernas, eu atingi o topo, a 5.250 metros de altitude. A vista de 360 graus era indescritível. Além da pirâmide negra do Everest e toda a cadeia de picos ao lado dele, havia o pico do Cho Oyu, mais e mais montanhas nevadas, extensas geleiras, lagos esverdeados, o povoado de Gokio e o extenso vale do dia anterior. Mesmo com o aparecimento das primeiras nuvens, ninguém queria deixar aquela maravilha.
Pelo outro lado do vale, descida à vila de Na, a 4.350 metros de altitude. O colega de barraca apresentou sintomas de hipoglicemia. Quase não comia, teve princípios de edema cerebral. A fraqueza o impedia de andar sem auxílio. A descida foi suave, mas a situação dele preocupava. O acampamento em Na e o refúgio ao lado estavam completamente vazios. Garantia de noite tranquila.
Os pães servidos nas refeições variavam quase todos os dias, com formatos, espessuras e sabores variados. Mas eram invariavelmente deliciosos.
A caminhada prosseguia em descida, com raras subidas. Foram mais de sete horas de caminhada. A neve fraca que caiu não incomodou. Acampamento em Portse, a 3.850 metros de altitude, vilarejo construído em degraus na encosta da montanha, sobre os quais havia o cultivo de batatas.
A cozinha montada pelos sherpas para o preparo da comida nos fazia voltar séculos no tempo. Era escura, com tudo espalhado pelo chão, o fogo improvisado. Nada parecia ter o mínimo de ordem ou planejamento. Mas funcionava a contento.
O estado do colega de barraca piorava. À noite no refúgio, cambaleante, perdeu o equilíbrio e se apoiou no cano da chaminé do aquecedor, derretendo a luva e causando fortes queimaduras nas mãos. Olhou a mão e os fiapos da luva sem expressão nenhuma. Não demonstrou sentir dor ou irritação na pele. Ameaçou sorrir e se sentou.
Ao amanhecer acordei com os movimentos atormentados dele, ainda dentro do saco de dormir, exibindo expressões de pânico e desconsolo. A cena era absurda. Ele simplesmente havia cagado horrores dentro do saco de dormir. Diarreia crônica o atacara durante a madrugada e não houve tempo ou condições de reagir. Estava atolado na própria merda. O espaço interno do saco de dormir não era dos maiores e a bosta quase alcançou o pescoço dele. Afastei minhas coisas para o canto oposto e saí da barraca imediatamente. O guia destacou um sherpa para acompanhá-lo até Tengboche, nossa penúltima parada antes do final da travessia. Nada tinha a ver com altitude ou desgaste físico. Como ciclista esportivo era o mais preparado fisicamente do grupo. Mas estava no lugar errado. E quando tomou consciência de não querer estar ali, o organismo entrou em parafuso.
A caminhada exigia mais esforço. Trilhas estreitas, precipícios, subidas e descidas. A neve e o vento, acompanhados de mais frio, complicou ainda mais à tarde. O almoço frio foi servido nas imediações de Pengboche, vilarejo com mosteiro budista, um dos mais antigos da região. Fomos abençoados na casa ao lado pelo Lama local que nos presenteou com postal autografado. Com sorrisos e mais sorrisos, ele aguardou nossa contribuição financeira e “espontânea”. No mosteiro, novamente, nos forçaram a contribuir com dinheiro. Recusamos o golpe, a despeito da insistência dos monges, que nada tinha de religiosa ou filosófica. Continuação da subida contra o vento e os flocos de neve. Chegamos ao povoado de Periche, a 4.250 metros de altitude, entre construções sobre areal cercado de montanhas.
continua...

7 comentários:

  1. estou iniciando uma viagem...me encontrem esta semana no Nepal...

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  2. Esta realmente é uma viagem que não está nos meus planos...mas...que bom que vc contou um pouco pra mim!!!!...que vontade de ver o povoado colorido de Nanche Bazar, vc tem foto?...a foto do café da manhã urrrrr...congeleia a 5.250 metros de altitude mas a vista que falou...indescritivel...tb o que li depois...rsrsrs...obrigado...

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  3. Tenho slides sim da trilha toda, inclusive de Nanche Bazar, onde acampamos duas noites para a aclimatação. A partir dali a trilha subiu, subiu, e esfriou, esfriou, mas a paisagem era simplesmente deslumbrante. Valeu e muito a pena. Mas somnete para quem gosta realmente de longas caminhadas, senão....Já chegou na parte sobre meu colega de barraca rsss?

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  4. Interessante sua viagem! Para os mais aventureiros e esportistas!

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  5. Olá!
    Obrigado pelo comentário, Katia Mendonca.
    Não se subestime. Quando queremos de verdade, ultrapassamos todos os eventuais obstáculos.
    É o que constatei com os demias viajantes por lá.
    Ouse...
    Abraços!

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  6. AQUI ESTOU DE MALA E CUIA...RSRSRS. ARRUMASTES UMA MALA. VIAJEI JUNTINHO,CONHECI TEMPLOS, O PALÁCIO REAL, A CASA DE CUMARI, ADMIREI AS MONTANHAS,OS PRECIPÍCIOS, APRENDI A RESPEITAR AS INTEMPÉRIES DO CLIMA, SENTI O MEDO, FIQUEI FASCINADA PELA BELEZAS,ADOREI O CAFÉ À 16º -, RI DO SEU AMIGO, EXPERIMENTEI A CULINÁRIA, FIQUEI INDIGNADA COM OS PEDÁGIOS RELIGIOSOS...APESAR DE TODAS AS DIFICULDADES, CHEGAR AO TOPO DO HIMALAIA É UMA BENÇÃO, ACHO QUE É O ENCONTRO DO HOMEM COM DEUS. A SENSAÇÃO DE PAZ DEVE SER INFINITA, ALGO QUE A ALMA GUARDA PARA SEMPRE. PARTINDO PARA A PRÓXIMA...AGUARDE SUA CARONEIRA VIRTUAL. RSRRS ABRAÇOS

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  7. Ivete, obrigadão pela visita, pela atenção, pelos comentários.
    Fico feliz que tenha gostado e sintetizado com tamanha precisão os pontos altos e baixos de mais uma das minhas explorações.
    Desse jeito vou me gabar de escrever bem, me animando a relatar cada vez mais.
    Valeu.
    Abraços!

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