...continuação
O guia, que se dizia tetraneto de conselheirista, me pegou
de moto de manhã cedo. Acompanhados de casal paulista sessentão que estavam de
carro alugado em Aracaju, lá fomos para as explorações naturais, em casas e
museus que explicavam a história do arraial de Belo Monte, depois Canudos,
massacrado pelo exército do Brasil, após quatro tentativas de ataque aos
moradores que resistiram bravamente ao genocídio.
Criado em 1986, o parque estadual de Canudos se mantinha
administrado pela UNEB, universidade estadual da Bahia, universidade pública e
gratuita.
Em área de mil hectares, o parque abrangia vários sítios
onde ocorreram as batalhas travadas pelo exército contra o arraial, este
posteriormente submerso pelo açude de Cocorobó, em atitude deliberada das
classes dominantes para apagar a história. Pouco se via de vestígios do
massacre ao longo do vale do rio Vaza Barris. Afinal se passaram mais de cento
e vinte anos. Painéis explicativos e informações adicionais pelo guia nos ensinavam
o que ocorrera no alto da Favela, no vale da Morte, nas trincheiras, em
eventuais cartuchos e ossadas encontradas pelo caminho.
O açude de Cocorobó cobria a primeira Canudos, incendiada
pelo exército. A segunda Canudos, para onde os moradores se transferiram voluntariamente,
também foi submersa pelas águas do açude em 1968, auge da ditadura empresarial
e militar implantada a partir do golpe de Estado de 1964.
Visitamos as ruínas da Canudos velha, a segunda, de onde
se via a famosa igreja velha, emersa devido à baixa das águas do açude. Em
seguida, a lagoa do Sangue, onde os conselheiristas sobreviventes do massacre
foram degolados pelo exército, embora desarmados e rendidos, a maioria mulheres
e crianças. Ainda caminhamos, atravessando o riacho Umburana, então completamente
seco, ao ponto onde estivera o corpo do Moreira César. O arrogante e
espalhafatoso comandante da terceira expedição contra Canudos fora ali
abandonado após ser carregado pelos soldados famintos por quilômetros desde o
arraial de Belo Monte, local da morte do oficial.
Encerramos o dia ao por do sol no eixo da barragem do
açude de Cocorobó. A jusante floresciam plantações de bananas, entre outras
frutas e produtos agrícolas, ao longo do leito umedecido do rio Vaza Barris. As
exuberantes plantações comprovavam que ali jamais houve problemas com a
fertilidade do solo, mas sim com a concentração da propriedade da terra e com a
falta de acesso à água, ambas monopolizadas nas mãos da minoria de
latifundiários.
Em nova visita ao IMPC, Instituto Popular Memorial de
Canudos, os cuidadores realçaram a importância de manter viva a memória daquele
crime hediondo cometido pelo exército, mais um dentre muitos, a serviço do
então governo federal do Brasil. E também destacaram que a resistência prolongada
dos moradores de Canudos contra os ataques militares comprovou que a
organização, a união e a mobilização são as únicas armas do povo contra a
exploração e a opressão das classes dominantes, de ontem e de hoje.
A Canudos nova, a terceira e atual, com menos de sessenta
anos de idade, era aplainada e de traçado quadriculado. Felizmente, porém, não
se espalhava em vias largas e inóspitas. Canudos tinha cara de cidade, sim.
Nada de atraente arquitetonicamente, mas de resultado final satisfatório. Se
fosse coibido o crime da mutilação geométrica das árvores de ruas e praças,
destruindo sombras refrescantes, Canudos se tornaria bem mais agradável.
Passava da meia-noite. Do lado da janela do quarto do
hotel, a inauguração de bar seguia a todo vapor com indivíduos se revezando no
palco e vomitando gritarias. Do lado oposto, sons tão altos quanto o do evento,
mas vindo das caixas de som de carros particulares. Os sujeitos duelavam para
ver quem explodia o som mais alto e trepidante. E eu era o único hóspede do hotel
naquela noite barulhenta de sábado.
Os policiais militares da Bahia perambulavam pelas ruas da
cidade em carro oficial e com metralhadoras a tiracolo. Da lei do silêncio
jamais ouviram falar. Aqueles fardados foram treinados para matar
trabalhadores, pobres e pretos, jamais prevenir a poluição sonora ou proteger a
vida dos cidadãos comuns.
No café da manhã, básico e condizente com a qualidade do
hotel, a proprietária informou que de madrugada, durante a festa de inauguração
do bar da esquina, um rapaz fora assassinado. Era canudense e conhecido dela. O
corpo havia sido retirado do local do crime havia minutos.
E saí a esmo pelas ruas de Canudos. O assassinado da
madrugada era o assunto recorrente. Ninguém se lembrava, no entanto, de
condenar a polícia militar. A instituição daquele governo estadual constrangia
cidadãos comuns pelas ruas da cidade, conforme eu testemunhara na noite
anterior, mas não tinha competência, ou interesse, em barrar pessoas armadas
numa festa de rua.
Encerrei o ótimo Cangaços,
de Graciliano Ramos. Embora eu tivesse lido a maioria dos artigos em Viventes das Alagoas e em dois capítulos
de Vidas Secas, agradou a ideia de
editar num único volume aqueles textos sob o tema do cangaço. Menos os
personagens em si, e mais as origens, as causas e o contexto histórico e social
do fenômeno que assolou os interiores do Brasil, sobretudo durante a República
velha.
Embalei as leituras com os contos de Negrinha, de Monteiro Lobato O autor era injustamente demonizado e
perseguido pelos movimentos chamados de identitários, de cunho pequeno burguês,
que defendiam conteúdos importados daquele regime terrorista ao norte do
México.
À noite, mesmo com o tempo chuvoso e poucos em circulação
pelas ruas e calçadas, o som alto, em bares e carros, confirmava a regra que no
nordeste a poluição sonora reinava não como exceção, mas como característica
cultural.
Sem o café da manhã, fui esperar o micro perto da esquina
da rua com os enfeites das festas de Santo Antônio. No itinerário, pela BR-235,
os distritos de Canché, Água Branca e Brejo Grande, a últimas duas vilas com casas
dotadas de platibandas. Raríssimas, distantes e isoladas formações rochosas
brotavam no horizonte. No mais, pequenas propriedades, bananais, gado,
caprinos, coqueirais, caatinga esverdeada e úmida, terreno levemente ondulado.
Sob a chuva fina e teimosa, desembarquei bem cedo na
minúscula rodoviária de Jeremoabo. Belisquei bolachas salgadas e iogurte,
trazidos na mochila de ataque. Me mudava sempre de lugar a fim de driblar as
inúmeras goteiras no teto do terminal.
Aproveitei a estiagem momentânea e me dirigi à pousada próxima,
mal conservada, com quartos escuros e mofados. Detestei o que vi. Atravessei a
avenida de volta à decrépita rodoviária.
Belisquei mais bolachas e castanhas. Haja goteiras no teto
do terminal de zinco da estação! As pancadas de chuva se tornaram mais
intensas.
No meio do dia embarquei em ônibus praticamente vazio. Pouco
depois desci na rodoviária de Paulo Afonso. Era cidade nova, planejada e
espalhada ao longo de extensas e largas avenidas que atravessavam a ilha em
meio ao lago formado com as águas do rio São Francisco por conta da
hidrelétrica de Paulo Afonso.
No meio da caminhada ao hotel me simpatizei com
restaurante. Parei, com bagagens e tudo, para devorar carne de sol coberta com
queijo coalho e acompanhada por macaxeira bem crocante.
Sem quaisquer retornos promissores das agências de turismo
quanto a passeios organizados ao Raso da Catarina, inviáveis por conta própria,
eu saí para caminhar pelas ruas e avenidas de Paulo Afonso, mais
especificamente no rumo das águas da hidrelétrica no São Francisco.
A despeito de não contar com conjunto arquitetônico ou
histórico digno de nota, e se distribuir por avenidas largas e extensas, Paulo
Afonso tinha um charme peculiar. O povo sorridente e receptivo, as áreas verdes
amplas e tranquilas nas imediações da represa, forneciam à cidade atmosfera
leve e agradável. Passei pelo centro comercial, parques, margem da represa com
a hidrelétrica ao fundo, bairros ribeirinhos ou ao lado de riachos que corriam
ao longo de gargantas profundas, pedregosas e áridas, estas quase sempre
beirando a divisa interestadual entre Bahia e Alagoas. Muitos usavam máscaras
faciais contra a covid-19, inclusive em espaços abertos. População bem
orientada.
As faixas de pedestres das avenidas de Paulo Afonso, sem
qualquer semáforo, eram respeitadíssimas pelos motoristas. Bastava se
posicionar na calçada, em frente à faixa, que os motoristas ligavam o
pisca-alerta, paravam, e os pedestres podiam atravessar calmamente.
Não muito comuns, mas charmosíssimas, as motos adaptadas a
triciclo com capota e banco duplo para passageiros. Uns incrementavam a
carroceria, parecendo bólidos futuristas. Quem disse que tais tipos de veículos
só circulavam pela Ásia ou em Iquitos?
O bacanal em torno da provável privatização da Eletrobrás
ia a todo vapor. O capital financeiro se refestelaria com a aguardada subida
dos valores das ações da empresa estratégica estatal e também com a criação de
fundos lastreados nessa privataria. Era a orgia dos donos do mercado, da grande
burguesia, dos grandes capitalistas que dominam a economia brasileira e
mundial!
Li mais contos de Negrinha,
de Monteiro Lobato. Ouvi vídeos debatendo a conjuntura política do Brasil,
outros de humor para descontrair.
Embarquei pouco antes da meia noite em ônibus vazio
proveniente de Maceió. A numeração dos assentos, nos pisos inferior e superior,
em nada combinava com o mapa que a bilheteria me mostrara e através do qual
escolhi o lugar. Não era ônibus executivo, mas leito. Acabei ficando no piso
inferior em banco grande, largo, confortável e com inclinação quase horizontal.
Dormi bem. Só acordei durante a madrugada, na parada em
Cabrobó, para voltar a adormecer novamente. Antes saquei a malha da mochila de
ataque para me proteger do friozinho do ar condicionado.
Desembarquei ao amanhecer na rodoviária de Petrolina.
Era cedo demais. O quarto do hotel ainda estava ocupado. Conversei
com a sorridente funcionária do balcão que estudava a bizarra combinação de
relações internacionais e teologia.
Perambulei pela orla urbanizada do rio São Francisco,
tendo como vista as águas do rio, a ponte velha, e ainda a única e sempre carregada,
às vezes engarrafada pelo tráfego intenso de veículos, e a cidade de Juazeiro
na margem oposta.
Atravessei a pé, pela extensa ponte, até a Bahia,
observando a ilha do Fogo, no meio do caminho, mas ainda no estado de
Pernambuco. A BR-407 entupia a ponte que funcionava como gargalo para quem se
movia dentro dos interiores nordestinos. De Juazeiro voltei de barco de
passageiros para Petrolina.
Do lado de fora, o restaurante do almoço parecia modesto e
por quilo. Seria suficiente diante da pouca fome. Mas nada de quilo, bufê ou
estabelecimento para alimentar trabalhadores do entorno. Se tratava de loja de
vinhos, comes e bebes diferenciados, além de algumas mesas em salão separado.
Logo notei os arrumadinhos e as arrumadinhas bebericando vinho branco gelado. E
não eram garrafas de marcas regionais do vale do São Francisco. Os rótulos
apontavam para países distantes. Me senti imerso em ambiente similar às tais novidades
que surgiam em São Paulo, ganhavam destaque por um tempo, recebiam o nome de
bistrô, serviam comida de micro-ondas, aquela galerinha que gosta de ver e ser
vista comparecia em peso. Isso até o ponto envelhecer, os buscadores de
badalações mudarem de destino e o tal bistrô fechar as portas.
A frequência pelas mesas era a fina flor da elite local.
Muitos se conheciam e se cumprimentavam efusivamente ao entrar ou sair. Eles,
de calça e camisa. Elas, produzidíssimas, vestidas para matar. Vez ou outra se
viravam para a mesa vizinha e trocavam frases sobre grandes negociatas,
suspeitos investimentos de vulto, envolvendo cifras gigantescas.
Aceitei a sugestão de tomar taça de vinho tinto do Alentejo,
a preço não abusivo. Dentre as opções executivas, fiquei com o filé mignon ao
molho de vinho acompanhado de arroz, purê de batatas, precedido de salada
verde. Tudo saboroso e não tão caro quanto eu imaginava. Nas mesas ao lado, elas
e eles pediam mais garrafas de vinho branco, engarrafadas bem longe do vale do
São Francisco.
Ao final, antes de pagar a conta, e aproveitando que me
encontrava em Pernambuco, entrei de cabeça em generosa fatia de bolo-de-rolo
recheado de goiabada. Soube divinamente, como de praxe.
À noite, tracei picanha suína grelhada com farofa,
vinagrete e cebola também grelhada em bar e restaurante na beira do rio. Na
margem oposta, entre sons de música, a Bahia e a cidade de Juazeiro. Som ao
vivo do lado baiano, som ao vivo do lado pernambucano, sob a acústica das águas
correntes do rio São Francisco.
Logo após o café da manhã me incluí em passeio às
vinícolas e à represa de Sobradinho.
Repleto de turistas brasileiros, o ônibus seguiu à
vinícola situada no município de Casa Nova, Bahia. Lá nos explicaram as fases
da produção dos vinhos, espumantes e tranquilos, tintos, brancos e rosês. E com
direito a degustação livre de todos os tipos mencionados, sem falar do brandy. Primeiro provamos o ainda bruto
destilado do vinho, com oitenta por cento de álcool. Depois o envelhecido em
barris de carvalho, com trinta e oito por cento de álcool. Todos podiam repetir
as degustações. O clima entre os visitantes começou a animar.
O ônibus nos levou à barragem de Sobradinho, onde
embarcamos em catamarã. O céu azul e a placidez das águas da represa
valorizavam o passeio fluvial.
Por quase uma hora o catamarã navegou pelas águas calmas
do lago. Beberiquei mais espumantes secos do vale do São Francisco, cujas
garrafas vinham a preços bem aceitáveis. O bufê oferecia variedade de pratos
para todos os gostos.
O catamarã ancorou em banco de areia coberto com vegetação
original da caatinga. Mergulhei em banhos nas águas mornas. Ao redor, vento
refrescante, descontração entre todos, pela alegria e pelo efeito cumulativo de
tanto álcool ingerido. A música ao vivo mexeu com os passageiros, que dançaram
a toda, incentivados por garrafas e garrafas de espumante.
Tempos depois o catamarã retornou ao eixo da barragem de
Sobradinho, de onde reembarcamos no ônibus de volta à Petrolina.
À noite, a orla fluvial lembrava orla de verdade, de mar e
não de rio. Ventava forte, constantemente, refrescando o ambiente. Às vezes até
incomodava, mas evitava o calor excessivo e a transpiração inconveniente.
continua...
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