...continuação
Na cidade de Tabatinga, no alto Solimões e divisa tríplice
entre Brasil, Colômbia e Peru, me hospedei em hotel de frente para a avenida de
ligação entre o Brasil e a Colômbia. Seguindo em frente, após passar ao lado de
pequeno e discreto obelisco, mais algumas barracas de troca de moedas, eu estava
na cidade colombiana de Letícia. Apesar de postos de fiscalização de ambos os
lados ninguém era parado. Letícia possuía o mesmo traçado de ruas, porém mais
arborizada, alegre e movimentada. O que não faltava era bar, restaurante,
lanchonete, comidas vendidas nas ruas. Sempre alguém estava comendo algo do
lado colombiano.
As terras indígenas dos Tikuna estendiam-se na região de
Tabatinga e além, Brasil, Colômbia e Peru. De pele escura e rostos grandes,
eram populosos, bastante organizados com associações e museus.
Tomei a lotação fluvial até Benjamim Constant, situada na
margem do rio Javari. A cidade já foi a maior e mais importante cidade do alto
Solimões. Ainda assim mantinha razoável movimento no mercado municipal e
comércio em geral pelas ruas irregulares do centro. O antigo prédio da
prefeitura, depois ocupado por agência bancária, ainda ostentava o nome
original acima da porta de entrada. A catedral, como em toda a região, era
moderna, as casas de madeira, sobretudo as afastadas do centro. A cidade
adormecia na hora da sesta e não se ouvia um som sequer.
Subi na voadeira com destino a Islândia, no lado peruano.
A água não parava de entrar na canoa. O barqueiro mais jogava água fora com a
pequena vasilha de plástico do que pilotava. A peruana Islândia era pequena e
interessantíssima, a despeito de toda miséria e abandono da população. Todas
suspensas a cerca de três metros do solo, as casas de madeira, mais as raras de
alvenaria, interligavam-se através de passarelas, também de madeira, com
exceção das duas principais e mais longas, de cimento e com corrimão. O
conjunto formava um traçado quadricular e, pelas passarelas, era possível
percorrer toda a zona urbana, casas, escola, hospital, posto policial, órgãos
públicos. Muito isolada do resto do Peru e totalmente dependente do precário
transporte fluvial, era abastecida na maior parte pelo Brasil e Colômbia. Os
rádios dentro das casas anunciavam, em espanhol, promoções das lojas
brasileiras de Tabatinga e Benjamim Constant.
No barco de volta a Tabatinga troquei ideias com peruana
radicada no Brasil. Comerciante de produtos de pesca em Tabatinga, ela criava
sozinha as duas filhas e namorava um brasileiro residente em Manaus. Enquanto
conversávamos, ela cortava e enrolava as malhadeiras, de fios muito finos de
nylon.
Muitos colombianos estabeleceram-se em Tabatinga,
sobretudo nos restaurantes, servindo comidas saborosas e variadas, brasileiras
e colombianas. À noite, em local do gênero, servi-me de delicioso tambaqui
assado, sem falar nas caipirinhas bem preparadas.
O troco, em diversos estabelecimentos comerciais, era dado
em reais e pesos, não importava a moeda do pagamento ou a nacionalidade do
cliente.
Letícia em quase tudo superava Tabatinga. Muito mais
arborizada, a cidade permitia o crescimento livre e natural das árvores do
canteiro central e nas calçadas laterais, tornando as ruas mais sombreadas,
mais frescas e mais bonitas. Não se viam esgotos a céu aberto, as casas mais
bem aparentadas, as praças inúmeras e amplas, sempre verdes e refrescantes. O
comércio mais apresentável, com diversos bares, padarias, casas de lanches,
restaurantes bem montados e aconchegantes, sempre cheios nos finais de tarde
para beliscar algo típico, sorvetes ou sucos, beber com os amigos. Nada
ostensiva, a paquera rolava solta sem que as mulheres caíssem na vulgaridade.
Os prédios públicos eram de melhor aspecto, assim como os funcionários e a
população em geral. O carro de som circulava convocando a população para a
semana cultural, com ênfase para crianças e jovens. A programação conteria
exibição de vídeos e filmes, exposição de artes plásticas, acesso livre a
biblioteca municipal, leituras de livros.
De volta a Tabatinga, pela avenida da Amizade, constatei
que apenas o canteiro central exibia árvores, desgraçadamente mutiladas em
ridículos formatos arredondados, como acontece em diversas cidades brasileiras.
Poucas opções de bares e restaurantes, sempre feios e sem comidas típicas,
exceção feita aos de colombianos. Os machões predadores embriagavam-se de
cerveja e chamavam como animais as mulheres que passavam. Nada de sucos,
sorvetes ou produtos típicos da rica Amazônia brasileira. Somente
refrigerantes, cervejas, salgadinhos de pacotes, entre outros venenos de Manaus
ou de regiões distantes do Brasil, via grandes empresas nacionais e
transnacionais. E o carro de som convocava a população para a apresentação musical
de sucesso descartável no clube noturno, destacando o farto estoque de cerveja.
E a Colômbia também era país da América, miserável como o
Brasil, injusto socialmente como o Brasil, dependente e explorado pelo
imperialismo estadunidense como o Brasil, e, ao contrário do Brasil, em
desvantagem pela longa guerra civil. O vigia noturno do hotel, brasileiro que
morou e trabalhou em Letícia por vinte anos, concordou e ainda garantiu que,
lá, os salários eram maiores e os preços dos gêneros essenciais menores.
E dormi cedo em minha última noite antes de voltar a
Manaus.
Manaus continuava um forno. Concreto, cimento, asfalto,
pouco espaço livre e, sobretudo, pouquíssimo verde dão nisso. Não sem motivo a
cidade ostentava elevadíssimos números de aparelhos de ar condicionado por
habitante. Manaus não era quente por natureza, mas ficou quente pela estúpida
urbanização.
O largo de São Sebastião em Manaus, ao redor do teatro
Amazonas, estava sendo restaurado e revitalizado no sentido de resgatar a
história do início do século XX, quando a indústria da extração da borracha e a
cidade viviam o apogeu. Os ambulantes, pontos de táxi, estacionamentos ao redor
do teatro foram retirados e, no lugar, construíram-se calçadões. Ainda havia
muito que fazer nas ruas que circundavam o largo, mas já era bom começo para
encarar a cidade com mais carinho.
E para manter a atmosfera saudosista do local, havia o
ciclo de óperas, encenadas dentro do teatro e também no largo, gratuitas e ao
ar livre. Centenas de cadeiras, telões, barracas de comidas ocupavam o largo. A
ópera iniciou com duas horas de atraso devido ao atraso do próprio governador
do estado, cuja chegada foi marcada por vaias e aplausos. As vaias venceram
pela intensidade e insistência. Poucas desistências e a maioria do público,
bastante variado, assistiu a apresentação com atenção. Aplaudiu com entusiasmo
os atores e toda a equipe dos bastidores.
Serestas com os músicos vestindo roupas típicas,
carruagens e outros objetos do fim do século XIX e início do XX, ocuparam o canto
do largo de São Sebastião nas outras noites. Manaus não se cansava de cultivar
o passado glorioso. Mas que corrigisse os brutais erros cometidos na época,
quando apenas uma ínfima minoria foi beneficiada pela borracha, e que o presente
fosse glorioso para todos.
O avião regional da empresa Rico que fizera o voo de
Tabatinga a Manaus dias antes caíra pouco antes do pouso final. Saíra lotado e
não houve sobreviventes. O avião partiu-se em mil pedaços e ainda não se
divulgara a causa do acidente. Denúncias de funcionários e de familiares dos
mortos contra e empresa Rico surgiram nos jornais, entre a falta de manutenção
das aeronaves, empregados mal treinados e desmotivados pelas más condições de
trabalho, dolo administrativo.
O ônibus diurno para Boa Vista saiu no horário, com vinte
por cento de ocupação e ar condicionado exageradamente gelado. O destaque
positivo da paisagem da estrada aconteceu, como não podia deixar de ser,
durante a travessia da reserva indígena Waimiri-Atroari. Dentro da reserva, com
a floresta praticamente intacta, animais silvestres cruzavam a estrada
calmamente, araras sobrevoavam e indígenas eram vistos em trajes urbanos,
apenas com o arco e a flecha. Fora da reserva, o caos da devastação causada
pelo modo de produção e consumo desenfreados. Vídeos repugnantes e violentos
eram transmitidos no ônibus. Barulhentos, machistas, preconceituosos como a
maioria da produção estadunidense. Verdadeiros manuais para assassinos e
terroristas.
Quem é o verdadeiro selvagem? Os indígenas da floresta preservada
da reserva, ou a civilização ocidental da destruição socioambiental e da
violência gratuita dos filmes?
Chegada à noite na rodoviária de Boa Vista. Saí para
enganar o estômago e voltei no momento que iniciava forte temporal. No
hemisfério norte a estação chuvosa estava apenas começando. Desde minha visita
quase cinco anos antes, Boa Vista continuava calma e com pouco movimento, mesmo
na zona central onde se localizavam os prédios públicos, bancos e o comércio.
Durante a noite seguinte passeei em interessantíssima
avenida. Dois ou três quilômetros de canteiros centrais que, de tão largos,
mais pareciam quarteirões. Serviam em toda a extensão como área de lazer,
calçadões, quadras de areia e cimento para a prática de diversos esportes,
parques infantis, palcos para apresentações artísticas, bares, restaurantes,
sorveterias, pista de kart, gramados e árvores, chafariz e muita área
livre para a população fazer o que bem entendesse. Na extremidade sul havia
barracas com comidas típicas paraenses e nordestinas. Tudo muito organizado e
limpo. Os moradores agradeciam e utilizavam bastante o local. A extremidade
norte e mais afastada do centro era mais sombreada e aconchegante, para deleite
daqueles em busca de paz e natureza.
Boa Vista comportava muitos migrantes, nordestinos,
sobretudo maranhenses, e sulistas. A marca indígena, porem, era forte. Roraima
reservava significativo percentual de unidades de conservação e áreas
indígenas. Era grande a discussão em torno da demarcação do território indígena
Raposa Serra do Sol, como área única e contínua no nordeste do estado. A demora
na homologação final exaltava os ânimos de ambas as partes, sobretudo dos
latifundiários e empresários contrários a esse direito legítimo.
Andei do centro até a distante estação rodoviária.
Estiquei até a margem do rio Branco, alto e sem praias. Entrei em restaurante
típico cearense, com vista para o rio. A agradável trilha sonora, na base de
Fagner e Belchior, o cardápio com destaque para a carne de sol na chapa
acompanhada de baião-de-dois, o calor humano dos garçons não deixava dúvidas
das origens do estabelecimento. Boa comida, mais as caipirinhas bem temperadas
ainda que coadas, vistas relaxantes do rio Branco valeram o dia.
Comprei passagem para a cidade de Bonfim, na fronteira com
a República da Guiana. Durante a espera para o embarque, aprendi que a
rodoviária oferecia transporte regular de Boa Vista para a cidade de Dona Maria
(Tesão). Será que a Dona Maria ainda fazia jus ao subtítulo? Os ônibus partiam
diariamente, com paradas em Pium e Mata Burro. Porém não era a mesma linha que
ia até a cidade de Puxa Faca.
O ônibus saiu com poucos passageiros. O motorista, após
passar pela rodoviária de Bonfim, bastante afastada da cidade, perguntou o
destino dos passageiros e os levou ao local desejado. Entrega em domicílio. Fiquei
na última parada, local da balsa e da travessia oficial de fronteira. Combinei
com o motorista do ônibus para me buscar à tarde para o retorno à capital. Até
parecia veículo fretado.
Desci a rampa e embarquei na voadeira no rio Jucutu,
para no minuto seguinte desembarcar na outra margem, cidade de Lethem,
República da Guiana. Em ambas as margens, nada além de caixas de isopor com
refrigerantes, a sombra e o grupo de negros, bem pretos, conversando com taxistas
brasileiros em dialeto, formado da mistura de português, inglês, línguas
indígenas e africanas.
continua...
A série de reportagens que compartilha ref a Amazônia, alem de ser de grande qualidade pela riqueza de informações, será bastante útil para mim, pois esse destino faz parte da minha lista. E nele, pretendo passar no mínimo 3 meses...
ResponderExcluirMuita Luz
Obrigado pelos elogios. Espero que os demais relatos que ainda publicarei o ajudem ainda mais. Abraços!
ResponderExcluirMorei em Benjamin Constant por cerca de dois anos. A cidade tinha uma vida noturna impressionante para um lugar tão pequeno. Ali, assim como em Tabatinga, depois que nos tornamos "locais" começamos a perceber o que não é somente para "gringo ver". Aí as cidades se tornam mais interessantes e agradáveis. Chega a ser mais animado do que aqui em Boa Vista, onde vivo hoje.
ResponderExcluirConcordo, depois do deslumbramento ou decepção iniciais é que realmente começamos a sentir a cidade. Os moradores também passam a nos considerar mais, pois já não somos simples passageiros que os ignoram.
ResponderExcluirBoa Vista é muito simpática. Gostei muito e pretendo voltar.
Abraços!