quinta-feira, 23 de setembro de 2010

do Mato Grosso à Bahia, via Amazônia (parte 7/7)

...continuação
Durante o trajeto cruzamos com outros grupos que cortavam lenha para fazer fogo, numa grave contribuição à depredação da natureza. O parque nacional da Chapada Diamantina ainda não saíra do papel, mal estruturado, mal fiscalizado, desorganizado, abandonado. A maior parte da área ainda encontrava-se em propriedades particulares, com garimpos e caçadores. Para cuidar e fiscalizar a totalidade, apenas três e mal treinados funcionários do IBAMA, relegados a atividades burocráticas na sede do parque em Palmeira. As estradas para Xiquexique do Igatu e Mucugê, atravessando a área do parque, foram asfaltadas, num claro sinal de subordinação aos interesses dos grupos privados que mandavam e lucravam na região.
Saímos em direção ao lago formado pelas águas da cachoeira da Fumaça. Transpor trechos com correnteza e pedras escorregadias exigiu bastante cuidado. As sombras em meio às luzes e a abundância de verde forneciam exuberância ao cenário. O rio e a cachoeira da Fumaça estavam com muita água, o que não impedia o vento de produzir efeitos interessantes no desvio das águas durante a queda. A imagem da queda d’água vista de baixo diferia da que eu observara por cima dez anos antes, quando a cachoeira tinha pouca vazão e o vento forte não permitia que a água chegasse embaixo, desenhando curvas paras os lados e para cima.
Acordamos nas tocas assim que começou a clarear. Tomamos o café da manhã, enchemos as mochilas e partimos para subir a serra dos Macacos, rumo ao platô da Fumaça. A íngreme subida não deixava eu me esquecer do peso da mochila. A paisagem impressionante compensava com o vale do rio Capivara, outros vales, escarpas, formações rochosas. Pelo caminho, muitas quedas d’água, riachos e o solo argiloso preto. No topo apreciamos a queda da Fumaça, agora de cima. Nada como matar a fome diante de paisagem tão maravilhosa. Sem vontade de deixar o local, iniciamos a descida da serra.  
Após a chegada ao vilarejo do Capão, me despedi do guia e dos gringos, peguei a barraca encomendada previamente e me instalei em camping próximo, limpo, organizado, com regras rígidas e justas nos horários.

Vilarejo simpático com bares, comida caseira e, até então, muita tranquilidade, Capão era procurado pelos refugiados do carnaval e sedentos por paz. Uma perua de Salvador estacionou na pracinha, abriu o porta-malas e escancarou enormes caixas de som, de onde saiu o lixo carnavalesco. A maioria não estava para aquilo. Ninguém pediu para ouvir. O desavisado, após leve e suave pressão, teve que desligar a poluição. E a paz voltou a reinar no Capão.
A visão das serras ao redor do vilarejo era muito bonita. Aproveitei para sentar na sombra, observar o pequeno movimento, comer os típicos pastéis recheados com broto de jaca. Reencontrei o baiano da travessia da cachoeira da Fumaça sentado nas escadas do bar. Permanecemos ali praticamente calados e contaminados pela atmosfera de preguiça. Foram mais de duas horas naquela “leseira”, conforme a expressão dele. Em todo esse tempo, e após grande esforço, ele proferiu apenas duas frases, bem espaçadas, lentamente, quase parando. A primeira:
“que maresia...”.
E, depois de um intervalo, para recuperar a energia perdida na fala, murmurou:
“vou ali dar um cochilo...”.
E foi. E assim também arrastou minha tarde no vilarejo do Capão, cujo nome oficial é Caeté-Açu.
Acordei cedo, desarmei a barraca, arrumei a mochila para me juntar ao grupo da segunda parte da travessia pela Chapada Diamantina.
A vista do vale do Capão, com paredões, escarpas e muito verde, se embelezava ainda mais à medida que ganhávamos altitude. Paramos no topo, ao lado do riacho, para lanchar e apreciar a paisagem. Atingimos os Gerais do Vieira. Descortinou-se belo panorama à frente, constituído por cadeias de serras, campos floridos e o vale do Pati, mais ao fundo. Desviamos pelo alto da serra do Candombá para evitar os lamaçais das baixadas. Depois partimos para a descida íngreme e sinuosa, nos maravilhando com as flores endêmicas. A entrada do vale do Pati se impunha colorido bem à frente. Fomos calorosamente recebidos pelos donos da casa simples com a deliciosa comida caseira.
Fomos até a simpática cachoeira do Funil. Em meio às folhagens das margens do rio, a cascavel alertou, com o guiso, quem mandava no pedaço.

Na volta colocamos as mochilas nas costas, nos despedimos dos nossos anfitriões e continuamos a travessia. E entramos, finalmente, no estupendo vale do Pati. As altas escarpas rochosas expostas em ambos os lados do vale deslumbravam. Após cruzar as águas do rio por duas vezes chegamos à Prefeitura. Montamos as barracas próximas ao rio, em local limpo e tranquilo. Ao fundo, a visão fascinante do morro do Castelo dava o tom da paisagem.
Casa grande caindo aos pedaços, a Prefeitura já funcionou como posto avançado da prefeitura de Andaraí nos tempos das plantações de café. Não havia mais janelas ou portas. As paredes estavam completamente pichadas. Barracas, montadas no interior dos cômodos. Os adolescentes e pós-adolescentes naqueles dias de carnaval se restringiam a cantar e ficar chapados. Pichações nas paredes traziam o nome da equipe, a duração da travessia e a quantidade de baseados consumidos pelos componentes. Esta última informação se destacava pelo orgulho, sobretudo quando superava, em quantidade consumida, as demais concorrentes.
Apenas a beleza ainda salvava o parque nacional da Chapada Diamantina. A desorganização e abandono eram gritantes. Não havia portarias, ou qualquer tipo de controle de entrada e saída. Nenhuma orientação prévia a respeito do comportamento dos visitantes. Agricultores ainda residiam dentro do parque, mendigando serviços, vendendo bugigangas e comida para os visitantes, provocando queimadas. Os guias despreparados em nada amenizavam a situação e estavam ali apenas pelo emprego. A associação dos guias em Lençóis pecava pela desunião, desinteresse pela sorte do parque, se consumindo em disputas de egos.
Caminhamos até a cachoeira ali perto e permanecemos o dia inteiro, somente na base do relaxamento, braçadas no lago formado no final da queda d’água, na contemplação do visual das escarpas da chapada. O entardecer foi de lavar a alma de tanta beleza.
À noite, próximo às barracas, os vaga-lumes davam espetáculo à parte, piscando luzes intensamente.
No dia seguinte acompanhamos o rio Pati pela margem direita, cruzamos a ponte antiga e começamos subir a encosta intensa e sinuosa da margem oposta. Cruzamos vegetação de grande porte, com quaresmeiras roxas, diversas minas de água. Merecido descanso no alto da serra para lanchar e apreciar o vale de outro ângulo. A descida para Andaraí, do outro lado da serra, ofereceu clima e paisagem radicalmente alterados, entre vegetação de agreste, com muitos cactos e pedras de coloração ocre. Chegamos à simpática cidade de Andaraí, onde relaxamos, matamos a sede, comemos petiscos no primeiro bar que apareceu. A caminhonete nos levou de volta a Lençóis.
Predominavam brasileiros na nova composição dos turistas na cidade. Embora bem conservada, com boa oferta de serviços e restaurantes, Lençóis perdia aos poucos a característica sertaneja, interiorana, tipicamente baiana. Desgraçadamente atraía, além de viajantes bem intencionados, moderninhos e metidos a alternativos, amantes de esportes equivocadamente chamados de radicais, mais interessados em se alienar do que conhecer, ou respeitar, a rica cultura regional. E essa involução andava a passos largos.

Levantei cedo para seguir a Seabra. O ônibus vinha de Salvador lotado de turistas israelenses. Tais indivíduos que só andavam em bandos fechados possuíam a reputação de oportunistas e aproveitadores. Na Ásia, Peru e Patagônia eram conhecidos por roubos nos alojamentos coletivos das montanhas e nos acampamentos, onde abriam as barracas com facas.
A viagem madrugadora até Rio de Contas conquistou pelas paisagens variadas e paradas sem influência do turismo. A serra do Espinhaço nos acompanhou a oeste. A vegetação tornou-se mais seca, com raras plantações de café, milho, cana de açúcar, palma. O asfalto acabou e, mesmo de terra, a estrada apresentava boas condições de tráfego. Várias faixas estendidas em Abaíra anunciavam o festival da cachaça Em Jussiape muita propaganda enaltecendo políticos regionais. Frases como “Dr. tal apóia fulano, cicrano, beltrano...” eram comuns nas paredes das casas. O partido era o mesmo do ACM, o todo poderoso do estado da Bahia. A barraca da feira livre prestava consultas oftalmológicas gratuitas e com distribuição, também gratuita, de óculos. Restaria saber se haveria a condicional exigência da apresentação do título de eleitor.
Em Rio de Contas predominava na cidade a comida sertaneja. O broto da palma refogado acompanhava e contava com sabor intermediário entre a vagem e o quiabo.
Rio de Contas era museu a céu aberto, com infindáveis casas tombadas pelo patrimônio histórico, a maioria conservada, habitada e datada da segunda metade do século XIX. As ruas, calçadas com pedras largas e irregulares, surpreendentemente largas para a época da construção. Imponentes montanhas pertencentes à cadeia do Espinhaço, com os picos mais altos da região nordeste, entre eles o pico das Almas, cercavam a zona urbana. A cidade estava vazia e silenciosa.
Durante o almoço, homens e mulheres de meia idade, sentados no restaurante na mesa em frente, discutiam política, ou melhor, politicagem. Saíam frases do tipo:
“eu garanto duzentos votos...”,
“eu tenho cento e cinquenta votos meus...”,
“O doutor fulano pode confiar em nós...”,
“O doutor fulano é protegido de Antônio Carlos Magalhães...”.

Em nenhum momento referiram-se às condições de vida da população. Ao anoitecer, buzinas, estouro de fogos e música brega, anunciavam o regresso à cidade do político doutor fulano vindo de cirurgia em São Paulo. A recepção foi organizada e conduzida pelos correligionários, capangas e parasitas em geral. O sujeito sairia candidato às próximas eleições municipais e trouxera, como demonstração de apoio, um deputado estadual do então PFL(DEM). E o que se seguiu foram cenas deploráveis de bajulações, mentiras, demagogias.
O dono do restaurante, que apoiara a oposição derrotada na eleição anterior, denunciou o boicote ao próprio estabelecimento pelos funcionários públicos municipais das cidades da região, coagidos pelos poderes executivos a prestigiar somente os apoiadores do governo de plantão. Mas a situação e a oposição pertenciam ao mesmo PFL(DEM) de Antônio Carlos Magalhães.
A descida da serra entre Rio de Contas e Livramento do Brumado, em estrada sinuosa e incrivelmente íngreme, com asfalto esverdeado, deslumbrou pelas imponentes escarpas, cachoeiras, picos rochosos. Depois o relevo aplainou-se com vegetação característica de caatinga.
Chegada em Guanambi no final da tarde, depois de passar em Brumado e Caetité. Comprei passagem para São Paulo para o ônibus do dia seguinte. Me hospedei em hotel antigo, mal cuidado, fedendo a desinfetante.
A fome era grande e investiguei o refeitório do hotel, em estilo bufê, com aspecto de decadência generalizada e também exalando odor insuportável de desinfetante. Da escotilha entre a cozinha e a copa, vestindo uniforme que um dia foi branco, o cozinheiro observava os raríssimos clientes. Com sorriso cínico no canto da boca, parecia dizer:
“vocês estão ferrados...”.
Caminhei pelas ruas de Guanambi até encontrar onde encher a barriga.
Pela manhã fui ao distante terminal rodoviário de moto-táxi.
Chegada em São Paulo na manhã do segundo dia de percurso, em meados de março do ano seguinte da partida. Tomei metrô lotado e logo entrava em casa.
Mas que viagem longa, diversificada e deslumbrante eu acabara de fazer!

Nenhum comentário:

Postar um comentário