...continuação
Durante o trajeto cruzamos com outros grupos que cortavam
lenha para fazer fogo, numa grave contribuição à depredação da natureza. O
parque nacional da Chapada Diamantina ainda não saíra do papel, mal
estruturado, mal fiscalizado, desorganizado, abandonado. A maior parte da área
ainda encontrava-se em propriedades particulares, com garimpos e caçadores.
Para cuidar e fiscalizar a totalidade, apenas três e mal treinados funcionários
do IBAMA, relegados a atividades burocráticas na sede do parque em Palmeira. As
estradas para Xiquexique do Igatu e Mucugê, atravessando a área do parque,
foram asfaltadas, num claro sinal de subordinação aos interesses dos grupos
privados que mandavam e lucravam na região.
Saímos em direção ao lago formado pelas águas da cachoeira
da Fumaça. Transpor trechos com correnteza e pedras escorregadias exigiu
bastante cuidado. As sombras em meio às luzes e a abundância de verde forneciam
exuberância ao cenário. O rio e a cachoeira da Fumaça estavam com muita água, o
que não impedia o vento de produzir efeitos interessantes no desvio das águas
durante a queda. A imagem da queda d’água vista de baixo diferia da que eu observara
por cima dez anos antes, quando a cachoeira tinha pouca vazão e o vento forte
não permitia que a água chegasse embaixo, desenhando curvas paras os lados e
para cima.
Acordamos nas tocas assim que começou a clarear. Tomamos o
café da manhã, enchemos as mochilas e partimos para subir a serra dos Macacos,
rumo ao platô da Fumaça. A íngreme subida não deixava eu me esquecer do peso da
mochila. A paisagem impressionante compensava com o vale do rio Capivara,
outros vales, escarpas, formações rochosas. Pelo caminho, muitas quedas d’água,
riachos e o solo argiloso preto. No topo apreciamos a queda da Fumaça, agora de
cima. Nada como matar a fome diante de paisagem tão maravilhosa. Sem vontade de
deixar o local, iniciamos a descida da serra.
Após a chegada ao vilarejo do Capão, me despedi do guia e
dos gringos, peguei a barraca encomendada previamente e me instalei em camping
próximo, limpo, organizado, com regras rígidas e justas nos horários.
Vilarejo simpático com bares, comida caseira e, até então,
muita tranquilidade, Capão era procurado pelos refugiados do carnaval e
sedentos por paz. Uma perua de Salvador estacionou na pracinha, abriu o
porta-malas e escancarou enormes caixas de som, de onde saiu o lixo
carnavalesco. A maioria não estava para aquilo. Ninguém pediu para ouvir. O desavisado,
após leve e suave pressão, teve que desligar a poluição. E a paz voltou a
reinar no Capão.
A visão das serras ao redor do vilarejo era muito bonita.
Aproveitei para sentar na sombra, observar o pequeno movimento, comer os
típicos pastéis recheados com broto de jaca. Reencontrei o baiano da travessia
da cachoeira da Fumaça sentado nas escadas do bar. Permanecemos ali
praticamente calados e contaminados pela atmosfera de preguiça. Foram mais de
duas horas naquela “leseira”, conforme a expressão dele. Em todo esse tempo, e
após grande esforço, ele proferiu apenas duas frases, bem espaçadas,
lentamente, quase parando. A primeira:
“que maresia...”.
E, depois de um intervalo, para recuperar a energia
perdida na fala, murmurou:
“vou ali dar um cochilo...”.
E foi. E assim também arrastou minha tarde no vilarejo do
Capão, cujo nome oficial é Caeté-Açu.
Acordei cedo, desarmei a barraca, arrumei a mochila para me
juntar ao grupo da segunda parte da travessia pela Chapada Diamantina.
A vista do vale do Capão, com paredões, escarpas e muito
verde, se embelezava ainda mais à medida que ganhávamos altitude. Paramos no
topo, ao lado do riacho, para lanchar e apreciar a paisagem. Atingimos os
Gerais do Vieira. Descortinou-se belo panorama à frente, constituído por
cadeias de serras, campos floridos e o vale do Pati, mais ao fundo. Desviamos
pelo alto da serra do Candombá para evitar os lamaçais das baixadas. Depois
partimos para a descida íngreme e sinuosa, nos maravilhando com as flores
endêmicas. A entrada do vale do Pati se impunha colorido bem à frente. Fomos
calorosamente recebidos pelos donos da casa simples com a deliciosa comida
caseira.
Fomos até a simpática cachoeira do Funil. Em meio às
folhagens das margens do rio, a cascavel alertou, com o guiso, quem mandava no
pedaço.
Na volta colocamos as mochilas nas costas, nos despedimos dos nossos anfitriões e continuamos a travessia. E entramos, finalmente, no
estupendo vale do Pati. As altas escarpas rochosas expostas em ambos os lados
do vale deslumbravam. Após cruzar as águas do rio por duas vezes chegamos à
Prefeitura. Montamos as barracas próximas ao rio, em local limpo e tranquilo.
Ao fundo, a visão fascinante do morro do Castelo dava o tom da paisagem.
Casa grande caindo aos pedaços, a Prefeitura já funcionou
como posto avançado da prefeitura de Andaraí nos tempos das plantações de café.
Não havia mais janelas ou portas. As paredes estavam completamente pichadas. Barracas,
montadas no interior dos cômodos. Os adolescentes e pós-adolescentes naqueles
dias de carnaval se restringiam a cantar e ficar chapados. Pichações nas
paredes traziam o nome da equipe, a duração da travessia e a quantidade de baseados
consumidos pelos componentes. Esta última informação se destacava pelo orgulho,
sobretudo quando superava, em quantidade consumida, as demais concorrentes.
Apenas a beleza ainda salvava o parque nacional da Chapada
Diamantina. A desorganização e abandono eram gritantes. Não havia portarias, ou
qualquer tipo de controle de entrada e saída. Nenhuma orientação prévia a
respeito do comportamento dos visitantes. Agricultores ainda residiam dentro do
parque, mendigando serviços, vendendo bugigangas e comida para os visitantes,
provocando queimadas. Os guias despreparados em nada amenizavam a situação e
estavam ali apenas pelo emprego. A associação dos guias em Lençóis pecava pela
desunião, desinteresse pela sorte do parque, se consumindo em disputas de egos.
Caminhamos até a cachoeira ali perto e permanecemos o dia
inteiro, somente na base do relaxamento, braçadas no lago formado no final da
queda d’água, na contemplação do visual das escarpas da chapada. O entardecer
foi de lavar a alma de tanta beleza.
À noite, próximo às barracas, os vaga-lumes davam
espetáculo à parte, piscando luzes intensamente.
No dia seguinte acompanhamos o rio Pati pela margem
direita, cruzamos a ponte antiga e começamos subir a encosta intensa e sinuosa
da margem oposta. Cruzamos vegetação de grande porte, com quaresmeiras roxas,
diversas minas de água. Merecido descanso no alto da serra para lanchar e
apreciar o vale de outro ângulo. A descida para Andaraí, do outro lado da
serra, ofereceu clima e paisagem radicalmente alterados, entre vegetação de
agreste, com muitos cactos e pedras de coloração ocre. Chegamos à simpática
cidade de Andaraí, onde relaxamos, matamos a sede, comemos petiscos no primeiro
bar que apareceu. A caminhonete nos levou de volta a Lençóis.
Predominavam brasileiros na nova composição dos turistas
na cidade. Embora bem conservada, com boa oferta de serviços e restaurantes,
Lençóis perdia aos poucos a característica sertaneja, interiorana, tipicamente
baiana. Desgraçadamente atraía, além de viajantes bem intencionados,
moderninhos e metidos a alternativos, amantes de esportes equivocadamente
chamados de radicais, mais interessados em se alienar do que conhecer, ou
respeitar, a rica cultura regional. E essa involução andava a passos largos.
Levantei cedo para seguir a Seabra. O ônibus vinha de
Salvador lotado de turistas israelenses. Tais indivíduos que só andavam em
bandos fechados possuíam a reputação de oportunistas e aproveitadores. Na Ásia,
Peru e Patagônia eram conhecidos por roubos nos alojamentos coletivos das montanhas
e nos acampamentos, onde abriam as barracas com facas.
A viagem madrugadora até Rio de Contas conquistou pelas
paisagens variadas e paradas sem influência do turismo. A serra do Espinhaço
nos acompanhou a oeste. A vegetação tornou-se mais seca, com raras plantações
de café, milho, cana de açúcar, palma. O asfalto acabou e, mesmo de terra, a
estrada apresentava boas condições de tráfego. Várias faixas estendidas em
Abaíra anunciavam o festival da cachaça Em Jussiape muita propaganda
enaltecendo políticos regionais. Frases como “Dr. tal apóia fulano, cicrano,
beltrano...” eram comuns nas paredes das casas. O partido era o mesmo do ACM, o
todo poderoso do estado da Bahia. A barraca da feira livre prestava consultas
oftalmológicas gratuitas e com distribuição, também gratuita, de óculos.
Restaria saber se haveria a condicional exigência da apresentação do título de
eleitor.
Em Rio de Contas predominava na cidade a comida sertaneja.
O broto da palma refogado acompanhava e contava com sabor intermediário entre a
vagem e o quiabo.
Rio de Contas era museu a céu aberto, com infindáveis
casas tombadas pelo patrimônio histórico, a maioria conservada, habitada e
datada da segunda metade do século XIX. As ruas, calçadas com pedras largas e
irregulares, surpreendentemente largas para a época da construção. Imponentes
montanhas pertencentes à cadeia do Espinhaço, com os picos mais altos da região
nordeste, entre eles o pico das Almas, cercavam a zona urbana. A cidade estava
vazia e silenciosa.
Durante o almoço, homens e mulheres de meia idade,
sentados no restaurante na mesa em frente, discutiam política, ou melhor,
politicagem. Saíam frases do tipo:
“eu garanto duzentos votos...”,
“eu tenho cento e cinquenta votos meus...”,
“O doutor fulano pode confiar em nós...”,
“O doutor fulano é protegido de Antônio Carlos
Magalhães...”.
Em nenhum momento referiram-se às condições de vida da
população. Ao anoitecer, buzinas, estouro de fogos e música brega, anunciavam o
regresso à cidade do político doutor fulano vindo de cirurgia em São Paulo. A
recepção foi organizada e conduzida pelos correligionários, capangas e parasitas
em geral. O sujeito sairia candidato às próximas eleições municipais e
trouxera, como demonstração de apoio, um deputado estadual do então PFL(DEM). E
o que se seguiu foram cenas deploráveis de bajulações, mentiras, demagogias.
O dono do restaurante, que apoiara a oposição derrotada na
eleição anterior, denunciou o boicote ao próprio estabelecimento pelos
funcionários públicos municipais das cidades da região, coagidos pelos poderes
executivos a prestigiar somente os apoiadores do governo de plantão. Mas a
situação e a oposição pertenciam ao mesmo PFL(DEM) de Antônio Carlos Magalhães.
A descida da serra entre Rio de Contas e Livramento do
Brumado, em estrada sinuosa e incrivelmente íngreme, com asfalto esverdeado,
deslumbrou pelas imponentes escarpas, cachoeiras, picos rochosos. Depois o
relevo aplainou-se com vegetação característica de caatinga.
Chegada em Guanambi no final da tarde, depois de passar em
Brumado e Caetité. Comprei passagem para São Paulo para o ônibus do dia
seguinte. Me hospedei em hotel antigo, mal cuidado, fedendo a desinfetante.
A fome era grande e investiguei o refeitório do hotel, em
estilo bufê, com aspecto de decadência generalizada e também exalando odor
insuportável de desinfetante. Da escotilha entre a cozinha e a copa, vestindo
uniforme que um dia foi branco, o cozinheiro observava os raríssimos clientes.
Com sorriso cínico no canto da boca, parecia dizer:
“vocês estão ferrados...”.
Caminhei pelas ruas de Guanambi até encontrar onde encher
a barriga.
Pela manhã fui ao distante terminal rodoviário de
moto-táxi.
Chegada em São Paulo na manhã do segundo dia de percurso, em
meados de março do ano seguinte da partida. Tomei metrô lotado e logo entrava
em casa.
Mas que viagem longa, diversificada e deslumbrante eu acabara
de fazer!
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