terça-feira, 21 de setembro de 2010

do Mato Grosso à Bahia, via Amazônia (parte 6/7)

...continuação
Senhor do Bonfim estava irreconhecível quase vinte anos depois que encerrei minha temporada na cidade em 1981. A pensão onde morei ainda estava lá, mas as duas irmãs gêmeas que tocavam o estabelecimento faleceram havia tempos. Engoli três acarajés no bar da praça e tracei as próximas etapas da viagem.
O uso do moto-táxi pegara mesmo na região. Diversos pontos espalhavam-se pela cidade, todos ao preço de um real, para qualquer parte. Era o mesmo preço em todo o nordeste. Prático, ágil, seguro, barato.
Irritante e infindável a frequência em que muitos locais públicos da Bahia levavam o nome de Luís Eduardo Magalhães, o filhinho morto de Antônio Carlos Magalhães. Além do nome do pai, presente em dezenas de lugares, o do filho aparecia em escolas, hospitais, aeroporto internacional de Salvador, até em uma cidade do interior. E era justamente essa a cidade infestada de latifúndios de estrangeiros, da monocultura, de lojas de equipamentos agrícolas estadunidenses, de plantios da famigerada soja transgênica. A maioria da população local sobrevivia em meio à enorme miséria.
O ônibus para Euclides da Cunha saiu à tarde e cruzou por dentro a caatinga, esverdeada nessa época, com muitos sobes e desces de passageiros. Muitos dos que entravam alegavam estar sem dinheiro para a passagem. O motorista reclamava, esbravejava, mas tudo ficava por isso mesmo. Ao lado de Monte Santo erguia a serra com o longo e sinuoso caminho calçado de pedras pintadas de branco, pequenas capelas e oratórios ao longo da subida até o local tradicional de peregrinação desde os tempos de Antonio Conselheiro. O sol começava a se esconder atrás da montanha, no instante em que a enorme e brilhante lua cheia surgia no lado oposto.
Amanheceu dia de feira em Euclides da Cunha. Dezenas de ônibus e caminhões traziam o povo dos vilarejos ao redor. Toda a cena era marcada por fortes contrastes. Barraca singela vendendo fumo de corda em frente à loja de telefonia celular, cuja parede dividia com pequeno armazém comprador de farinha dos sertanejos, usando enormes e antigas balanças. Senhores sisudos vestidos de gibão e chapéu de couro ao lado de adolescentes de tênis e penduricalhos eletrônicos nas mãos e ouvidos. 
No percurso até Jeremoabo, passando por Bendegó, Nova Canudos, Candé e Água Branca, vi o açude de Cocorobó e partes da antiga igreja, acima do nível da água, construída pelos seguidores de Antonio Conselheiro antes do massacre de Canudos. Mais à frente, e na parte elevada da área reservada ao parque estadual de Canudos, havia o monumento ao Conselheiro, com a estátua branca, ele em pé, com a túnica e o cajado. Mais da metade da viagem transcorreu em estreitas estradas de chão. Era o sertão autêntico do Raso da Catarina, cortado de oeste para leste, ao longo do vale do rio Vaza Barris. Pequenas serras de cor ocre, formações rochosas avermelhadas, vilarejos e aldeias típicas, vaqueiros de gibão e chapéu de couro. Plantações de milho e mandioca, coqueiros, mangueiras e bananeiras nos oásis.

Um casal iniciou discussão acalorada dentro do ônibus. Ele a acusava de aprontar e ameaçava deixá-la. Ela, em prantos e com o recém-nascido no colo, oferecia-lhe a criança, mas ele recusava bruscamente. Em determinado momento, ele desembarcou, seguido por ela ainda chorando intensamente.
Em Jeremoabo embarquei em outro ônibus quase vazio. A estrada, teoricamente asfaltada, era um pesadelo. O ônibus balançava de ponta a ponta em meio a festival de buracos com pedaços de asfalto. Encontrei hotel confortável e caro em Paulo Afonso. Era noite, estava bem cansado.
Acordei cheio de expectativas de explorar a famosa estação ecológica do Raso da Catarina e me dirigi ao centro cultural de onde saíam os roteiros. O preço para o dia de passeio ao Raso da Catarina, incluindo serviços de guia e transporte, ultrapassava os limites aceitáveis. E o atendente simplesmente saiu da sala no meio da conversa para fumar e conversar no lado de fora. Dei o fora.
Comprei passagem para a cidade sergipana de Canindé, onde peguei caminhonete até Piranhas nova. Apertado e curvado pela lona baixa do teto da carroceria da caminhonete, vi a ponte sobre o rio São Francisco, divisa com o estado de Alagoas e, mais à esquerda, a hidroelétrica de Xingó, um monstrengo cinzento de concreto. Em Piranhas Nova subi em moto-táxi para descer a estrada sinuosa até a Piranhas Velha, nas margens do rio São Francisco. Logo na entrada, o impacto da beleza e do charme da cidadezinha, ruas estreitas, ladeiras, casas antigas. Ao lado, as águas esverdeadas do rio correndo entre as encostas secas da caatinga. Encontrei pousada no alto da escadaria com vista indescritível da cidade, morros, o vale profundo, o rio. O entardecer com aquela paisagem maravilhosa à frente me indicava que ali era o lugar para ficar. Em Paulo Afonso me juraram que a antiga cidade de Piranhas estava submersa pelas águas da hidrelétrica e em Canindé afirmaram que a cidade nova, por mais absurdo que parecesse, era mais bonita.
Antes do anoitecer, banhei-me nas águas do velho Chico ao lado da simpática praia de areias finas. Saboreei a peixada, degustei caipirinhas. Contemplei a lua cheia, enorme e prateada, subindo bem em frente.
As águas esverdeadas do rio São Francisco correm por dentro do vale profundo. Nos trechos mais estreitos e sinuosos apareciam corredeiras. Em ambas as encostas, o clima semiárido e a caatinga, pedras, diversos tipos de cactos. Na parte baixa da cidade o prédio da antiga estação ferroviária, desativada no fatídico ano de 1964, o do golpe. Até então ligava as cidades de Penedo em Alagoas e Jatobá em Pernambuco. O local abrigava o singelo Museu do Sertão. A seção dos objetos era pobre, porém a de fotografias exibia imagens interessantes. Eram detalhes dos cangaceiros de Lampião e Corisco, dos policiais ou volantes, antes e depois do assassinato de Lampião. A foto que mais chamou atenção foi tirada em 1998. O ex-volante e o ex-cangaceiro, ambos muito idosos, pousam apertando as mãos, sorridentes para a câmera.

Em poucos dias me sentia intimo dos moradores de Piranhas, os cumprimentava pelas ruas, conversava sem pressa. Um garoto me pediu um caderno, pois a família não tinha como comprá-lo. Não era esmola e sequer houve pressão ou chantagem emocional. Era apenas a necessidade imediata para frequentar a escola. À noite sentei na barraquinha na beira do rio e saboreei delicioso pitu fervido acompanhado de muitas caipirinhas. A calma e a brisa suave vinda do rio deixava tudo leve e agradável.
Não muito longe de Piranhas está o sítio de Angicos, local onde foram assassinados vários cangaceiros, inclusive Lampião e Maria Bonita. Desci de barco o rio São Francisco e avancei na curta picada pela caatinga até o local exato, em território sergipano. O sítio de Angicos era composto por um pequeno abrigo sob um bloco rochoso às margens de córrego temporário. Ali dormiam os cangaceiros quando foram surpreendidos durante a madrugada pelos volantes. Alguns conseguiram fugir, mas Lampião, Maria Bonita e outros companheiros não tiveram a mesma sorte. Foram imediatamente executados e degolados, tendo as cabeças exibidas nas cidades como troféus. Segundo o barqueiro e o garoto que me acompanharam na trilha, encontrou-se ali na época dinheiro e ouro, saqueados e usados pelos volantes para comprar imóveis e enriquecer da noite para o dia. Em 1998, cem anos do nascimento e sessenta do assassinato de Lampião, foi colocada placa comemorativa e a cruz ao lado de outra mais antiga. Periodicamente, nas datas importantes, são realizadas missas no local.
Encontrei vários alagoanos que costumavam fazer o trajeto de barco entre Penedo e Piranhas. Vestiam camisetas com frases de protesto contra os planos de transposição do rio São Francisco. As mangas frescas e maduras, colhidas nos pés ao redor do local, temperaram o ambiente de conversas e reflexões. 
Na parte da tarde, em Piranhas, fiquei na beira do rio bebendo umas, beliscando tira-gostos e dando mergulhos para me refrescar. De repente um forte vendaval levantou tudo e foi areia para todos os lados, olhos, nariz e boca. Mais mergulhos e estava limpo e refrescado novamente. Como por encanto a cidade adormeceu completamente no começo da noite. Os barzinhos da praia, as escolas e todos os cantos da cidade mergulharam em gostoso silêncio. Demais caminhar pelas ruas desertas, ao som apenas do vento e das folhagens.

Reservei o dia para não fazer absolutamente nada e agir conforme o vento. Caminhei preguiçosamente pelas ruas da cidade. Conversei com um aqui e outro ali, amarrei meu burro no barzinho na beira do rio e lá fiquei entre bebidas, comidas e mergulhos nas águas.
Ouviam-se repetidamente os grupos Mastruz com Leite, Caviar com Rapadura, Calcinha Preta e tantos outros. As melodias seguiam padrão primário e dançante, com letras sofríveis. Pegavam sucessos internacionais, colocavam qualquer letra, acrescentavam batidinhas programadas e estavam prontas para o consumo. Nas gravações ao vivo não se cansavam de frases do tipo “que lindo!”, “está demais!”, “jamais esqueceremos de vocês!”. Como os grupos são incontáveis e parecidíssimos, entre as músicas ou mesmo durante elas, sempre martelavam com o nome da banda e o do disco: “É o Calcinha Preta, Ao Vivo, Volume 5, O melhor do forró pra você...” e outras preciosidades.
Não havia transporte direto para a capital Maceió. Peguei ônibus até Delmiro Gouveia, em cuja praça motoristas e ajudantes de várias caminhonetes gritavam os próximos destinos, mas nada de Maceió. Acertei o preço para a cidade de Arapiraca, mas ainda esperei o veículo lotar. Nas rodinhas masculinas formadas na praça se ouvia a realidade regional. Embora entrecortada por ruídos, ouvi o homem dizer:
“aí o cara matou a mulher grávida com uma faca...”.
E o outro arrematar:
“mas ela merecia, desrespeitou o homem”.
Cruzar o sertão escancarou a Alagoas miserável, seca e desolada. A caatinga, embora ligeiramente esverdeada pelas chuvas, mostrava-se rala e pobre. Pequenas serras cobertas de pedras cercavam os vales e baixadas com esparsas plantações de palma para alimentar o gado nas épocas secas. As cidades e vilas eram invariavelmente feias, cinzentas, tristes. Olho d’Água do Casado, São José da Tapera, Olho d’Água das Flores, Batalha, Jacaré dos Homens. As estradas apresentavam trechos em péssimo estado, cheias de buracos. Crianças recolhiam com pás a terra da beira da estrada e a depositavam nos buracos do asfalto. E estendiam as mãos, pedindo esmolas pelo trabalho realizado. Não vi ninguém dar nada. Miséria e indigência pura e simples. Em São José da Tapera notei várias frases escritas na parede de uma casa, oferecendo serviços de costura, eletricista, encanador e reformas em geral. Demorei a entender, pois não havia uma palavra sequer escrita segundo as regras gramaticais do português oficial. Na cabine da caminhonete o senhor de cinqüenta e poucos anos bradava que traçava até quatro mulheres por dia. Sentia-se preocupado por não conseguir gozar na quarta mulher, e indignado pelo fato dela, a quarta, gozar três vezes.   
O micro-ônibus em Arapiraca, a terceira etapa do trajeto desde Piranhas, deu grande volta pelo litoral até estacionar em Maceió.

Apesar da intensa urbanização das praias, edifícios altos, da horda de turistas, a orla de Maceió continuava bonita e agradável. Os usuários desfilavam roupinhas novas, camisetas e tênis da moda, o uso incansável dos telefones celulares e assim por diante.
Estava em transição a mudança da entrada de passageiros, da porta traseira para a porta dianteira, nos ônibus urbanos da cidade. Parte da frota funcionava da maneira nova, outros ainda seguiam o processo antigo. Somente as pessoas já embarcadas sabiam o segredo, daí a gritaria para os de fora quando corriam para a porta traseira:
“é pela frente!”, “não é aí não!”.
Colocavam os braços para fora da janela e batiam na lataria do ônibus. Os passageiros ocupavam, mas sem sentar imediatamente, o assento recém-liberado. Ainda de pé, esperavam esfriar, ou ao menos passar a quentura do usuário anterior.
Caminhei preguiçosamente entre as praias de Ponta Verde e Jatiúca, alternando com rápidos mergulhos para me refrescar. Revi a distante praia da Sereia. Durante o percurso, passando por Jacarecica, Guaxuma, Garça Torta e Riacho Doce, as construções e urbanizações não afetaram demasiadamente as praias, os coqueirais, o azul do mar.
Embarquei em ônibus sem o desnecessário ar condicionado. A paisagem tornou-se mais acidentada, perigosa, e interessante, no meio da Bahia, a partir de Itaberaba. As centenas de crateras e a lamentável conservação da via obrigavam os veículos a acrobacias e desvios. Mais grupos de miseráveis tapavam os buracos com areia ou terra e depois pediam dinheiro. Desci no trevo de Lençóis para, logo depois, subir em lotação proveniente de Seabra.
Lençóis se enchia de turistas, na maioria estrangeiros, que se concentravam à noite nos bares e cafés para ouvir rock e reggae, como em qualquer ponto de concentração deles ao redor do mundo. E somente entre eles, ignoravam as demais pessoas ao redor. Mas a cidadezinha ainda encantava, com os baianos simpáticos e hospitaleiros.
Peguei trilha curta e fácil às cachoeiras e corredeiras do ribeirão do Meio, vazia e bastante agradável para se refrescar ou mesmo não fazer nada, apenas contemplar a natureza ao som gostoso das águas.
A proximidade do feriado de carnaval preocupava, pois deixaria a cidade lotada e nada atraente. Acertei longa travessia de oito dias com acampamento, saindo de Lençóis, passando por baixo da Cachoeira da Fumaça, vale do Capão, vale do Pati, até a cidade de Andaraí.
       O guia apareceu bem cedo, acompanhado da canadense e do iraniano. O casal se conhecera durante passagem pela Bolívia. Dividimos a comida nas mochilas cargueiras. Peguei o saco de dormir e o isolante, ambos alugados. A trilha começou a subir bastante em meio à vegetação agreste e a antigas tocas usadas por garimpeiros. O visual no alto da chapada oferecia escarpas íngremes, pedras, gargantas, cachoeiras, vales profundos. Subimos no mirante sobre grande pedra para lancharmos e apreciarmos a paisagem. O caminho seguia por trechos com obstáculos de fácil superação. Paradas providenciais e refrescantes nas cachoeiras do Palmital e Capivara reanimaram os corpos. Acompanhamos o rio sobre as pedras escorregadias das margens até encontrar o riacho da Fumaça, por onde subimos pelas lajes de pedra e, mais acima, encontramos o local das próximas duas noites. Ao lado, duchas refrescantes e piscinas naturais para qualquer hora. Não trazíamos barracas e dormiríamos dentro das tocas de pedra em caso de chuva.
continua...

2 comentários:

  1. Olá viajante,
    Fiquei boquiaberto diante de tantas emoções que descreveu ao cruzar os sertões desse nosso nordeste.
    Você escreve charmosamente e não conseguia parar de ler. Vou pesquisar mais relatos seus por aqui.
    Viaja por conta própria ou tem algum tipo de patrocínio?
    Parabéns pelo blog!!!
    Rodolfo

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  2. Oi Rodolfo, obrigado pela visita e pelos comentários.
    O Amapá vale sim várias visitas, pela capital e pelos interiores. Paisagens fascinantes, culturas ricas e povos acolhedor é o que não falta.
    Viajo por conta própria e sem qualquer tipo de patrocínio. Me interessam mais o cotidiano dos povos visitados e a a paisagem ao redor do que atrações turísticas previsíveis.
    Pesquise bastante e encontrará relatos incríveis dos sertões Brasileiros.
    Abraços e comente sempre!

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