...continuação
Embarquei pela manhã no porto de Parnaíba rumo à cidade
maranhense de Tutóia, na margem ocidental do Delta do Parnaíba. A refeição foi
servida no barco pequeno, limpo e confortável. O Delta constitui-se de
carnaubais, canais, manguezais, baías e vilarejos esparsos. Pescadores de
camarão, catadores de caranguejos e pequenos barcos circulavam pelas águas. O
passageiro do barco e catador de caranguejos maranhense denunciou gravemente os
proprietários da Ilha do Caju e da pousada do mesmo nome no Delta do Parnaíba.
Além de cobrarem fortunas pela estadia dos turistas desavisados, os donos da
ilha tratavam a população local de maneira arbitrária e violenta. Os pescadores
nem sequer podiam encostar os barcos perto da ilha privada. Eram hostilizados
com ameaças, agressões e tiros de espingarda. Mas nada acontecia aos ricos
criminosos, protegidos pela classe dominante local e estadual. A miserável população
maranhense, habitante há séculos da região, sofria humilhações e barbaridades.
As autoridades ignoravam. Os proprietários da Ilha do Caju, afinal, eram
estrangeiros.
A cidade de Tutóia nessa época do ano estava bem pacata,
típica do interior, com ruas pouco iluminadas, calçamento pé de moleque. A
maioria da reservada população era cafuza, com rostos alargados e pele escura.
A miséria e a injustiça social no estado abundavam decorrentes de décadas de
governos impostos pela família Sarney em aliança com empresários e
latifundiários.
Foram quatro horas de ônibus de volta a Parnaíba com
paradas em Barro Duro, Canabrava, Pirangi e Jandira. Lotado e barulhento, o
veículo parava a todo instante para embarque e desembarque de passageiros
sofridos, com sacolas, sacos e caixas. Do lado de fora, a paisagem maranhense
desoladora. Casebres de taipa e tetos de palha, trechos áridos, com raras e
minúsculas plantações de mandioca.
O ônibus parou assim que entrou no Piauí. Devido a surtos
de febre amarela na região, os fiscais da Fundação Nacional de Saúde exigiram a
vacinação para os não vacinados ou sem o certificado. Tentei convencer os
resistentes da necessidade da proteção. Mais adesões para a imunização.
Em Parnaíba fui à praia da Pedra do Sal. No caminho, a imensidão
de carnaubais, buritizais, lagoas, casas esparsas, dunas e finalmente a praia.
Uma ponta cheia de pedras, com pequeno farol, separa duas simpáticas baías. A
menor, à esquerda, guardava águas calmas e casas em estilo ousado. A outra
baía, extensa, com areia inclinada e praia de tombo no início, aplainava-se à
medida que se afastava das pedras. Totalmente desertas mais à frente, se
tornavam o motel mais barato da região.
Incompreensíveis e inacreditáveis os nomes das pessoas da
região. Mas um deles, embora conhecido, era para lá de absurdo. O jovem
piauiense, campeão de artes marciais de Parnaíba, ganhou o nome estampado na
página do jornal: Benito Mussolini Neto.
O ônibus confortável, mas com o irritante e supérfluo ar
condicionado gelado chegou no meio do dia em Piripiri, cidade pequena, de bom
aspecto e com calçamento pé de moleque, muito comum no estado do Piauí. Essa
solução urbana, bonita e barata, não reflete tanto o calor e absorve a água, ao
contrário do tórrido e impermeável asfalto.
Corri à praça central bem cedo para pegar o ônibus do
IBAMA que levaria funcionários ao parque nacional de Sete Cidades. Esperei até
o horário marcado e descobri que apareceria somente uma hora depois. Na verdade
sairia no horário determinado, mas no horário velho, ou seja, uma hora depois,
desconsiderando o horário de verão, o novo. O horário de verão, implantado à força
na região, nem sempre era respeitado. Tinha que perguntar se era no horário
novo ou no horário velho. Um turista de Sobral também se atrapalhou com o
horário de verão.
O guia obrigatório do parque nos explicou o ecossistema
regional, nos orientando sobre a preservação. O parque nacional de Sete Cidades
vai do cerrado à caatinga. Compõe-se de formações rochosas, esculpidas pelo
tempo e apresentando figuras variadas, inscrições rupestres, grutas e mirantes.
As figuras surgidas nas rochas lembram rostos, cenários, objetos, situações
diversas. O sol nos castigava e as sombras eram raríssimas. Apenas um ponto de
água morna em todo o percurso, localizado em local sombreado, verde e
agradável.
Infelizmente a administração do parque permitia a
circulação de veículos pelas estradas internas do parque, como o caminhão
transportando turistas ingleses. O trajeto completo não é tão extenso e o
ecossistema agradeceria se os veículos motorizados ficassem do lado de fora da
unidade de conservação. Um alemão circulava de bicicleta. Fluente em português alegava
coletar informações para reportagens e provável organização futura de grupos
turísticos.
Eu e o cearense subimos na caminhonete do IBAMA que nos
levou até a portaria do parque nacional. Detonamos a saborosa galinha à
cabidela no restaurante ao lado. Pegamos carona como dois clientes até a
rodovia asfaltada. Ficamos no acostamento da estrada por mais de três horas.
Tentamos em vão ônibus, caronas em carros, caminhões e caminhonetes. Ninguém
parava, nem mesmo aqueles que vinham da estrada do parque nacional. A
preocupação aumentava à medida que a noite se aproximava. De repente apareceu
um caminhão rebocado por outro. Foram obrigados a parar para acertar os engates
dos cabos. Sob a enorme desconfiança, consegui convencê-los a nos levar até a
entrada de Piripiri. Devido a assaltos frequentes, caronas por ali eram assunto
proibido. Em velocidade reduzida devido ao reboque, às olhadelas laterais em
minha direção para prevenir possíveis ataques, ao difícil diálogo de
monossílabos, eles nos deixaram na cidade, quase seis horas depois de encerrado
o passeio no parque nacional. Tremenda falta de articulação de transportes entre
a administração do parque nacional e a prefeitura de Piripiri.
Peguei o primeiro ônibus da manhã para Teresina, de onde
comprei passagem para São Raimundo Nonato no ônibus noturno. Deixei a mochila
no guarda-volumes da rodoviária da capital piauiense.
A reputação de Teresina ser uma das cidades mais quentes
do país não convidava a caminhadas. Pensei em cinema e a única opção foi tomar
ônibus até o xópin. Almocei qualquer coisa insípida em qualquer rede de comidas
rápidas. Praticamente tudo se assemelhava a qualquer templo do consumismo pelo
mundo afora. Membros da elite, ou almejando chegar lá, desfilavam conjuntinhos
da moda, celulares nas mãos, expressões de enfado, olhares presunçosos, vaivém
de consumistas alienados e outras tristezas. O filme veio com imagem pálida,
cores fracas, som excessivamente agudo. E piorava a cada barulhenta mudança dos
rolos.
Voltei ao mundo normal e humano do terminal rodoviário.
Mesmo bem agasalhado, o frio do insuportável ar condicionado do ônibus noturno
não me deixou adormecer.
Cheguei ao amanhecer em São Raimundo Nonato. Contratei o
guia obrigatório para o parque nacional da Serra da Capivara com a moto
incluída. A moto seria cansativa devido às distâncias e às estradas enlameadas
naquela época do ano, porém muito mais barata que qualquer carro.
Definitivamente o horário de verão não era respeitado e,
em muitas vezes, totalmente ignorado. Como no parque nacional. O sol, os
animais, a chuva, o vento, as plantas não eram afetados por medidas
administrativas. Apenas os ônibus intermunicipais seguiam o horário de verão.
O parque nacional da Serra da Capivara, bem estruturado,
organizado, limpo, era administrado pelo IBAMA em conjunto com a Fundação do
Homem Americano. Apenas a menor parte do parque estava aberta à visitação, mas
bastante representativa e rica em belezas naturais e arqueológicas. A região,
situada em área de caatinga, estava esverdeada e florida.
Pinturas rupestres em diferentes estados de conservação,
vestígios de seres humanos, utensílios, restos de fogueiras, cerâmicas, ossadas
e fósseis indicavam presença humana na região havia mais de 50 mil anos, a mais
antiga da América. Forte evidência de que os povos da Ásia entraram pela
América do Sul muitos milhares anos antes do acesso pelo estreito de Bering da
América do Norte. Não era à toa que em enormes cartazes localizados na cidade e
nas estradas estava escrito, em pleno ano 2000, “Brasil 500 anos, São Raimundo
Nonato 500 séculos”. Essas civilizações antigas pereceram havia cerca de dez
mil anos, provavelmente devido à mudança climática da região que passou de
tropical úmido para o semiárido atual.
Pelas localidades de Inferno, Barro, Veadinho Azul, Vaca,
Paraguaio, caminhamos por cima e por baixo do extenso e estreito vale, em cujas
paredes se expunham uma infinidade de pinturas rupestres. Nem todas estavam
nítidas, mas inestimáveis pelo valor científico e histórico.
O circuito dos Rodrigues seguia por longa trilha pela
caatinga, com subidas e descidas nas escarpas rochosas. A paisagem vista do
alto encantava, com paredões, vales, gargantas, vegetação típica como
xiquexique, coroa de frade, rabo de raposa, favela, mandacaru. Avistamos mocós
e aves cantadeiras. Ao contrário da facilidade de se andar fora das trilhas na
floresta amazônica, onde predominam árvores e folhas grandes, sem espinhos, na
caatinga há o emaranhado de árvores e arbustos infestados de espinhos, com
folhas que queimam ao primeiro toque.
As atrações do boqueirão da Pedra Furada compreendiam os
principais sítios arqueológicos do parque, se destacando pela quantidade,
qualidade e variedade. Imagens de homens, mulheres, animais em diversas
situações cotidianas como festas, guerras, partos, trabalho, rituais, sexo. A
formação da Pedra Furada atraiu, sobretudo, pelo céu azul visto através do
enorme orifício e pela lua quarto crescente mais acima.
Encontrei um casal paulista que, pela Amazônia, pretendiam
chegar aos Andes peruanos, em viagem prevista de seis meses. Estimulante ver
brasileiros realizando essas aventuras de vida, ainda mais por conta própria.
Ficaram entusiasmados com minhas descrições do Monte Roraima e do Pico da
Neblina.
O bom restaurante da pousada em São Raimundo Nonato era o
ponto de encontro da classe dominante local, que aproveitava o isolamento da
cidade para conversar privadamente e fechar tenebrosas transações econômicas e
políticas. Até honoráveis e excelentíssimos parlamentares compareciam para o
ritual do “dar e receber”.
Muita lama rumo aos sítios do Pitombi, Serrinha e Zabelê. Precisei
descer da moto várias vezes. Em ponto crítico, a moto derrapou e caímos na
lama, besuntando o corpo e as roupas. Depois do Zabelê os caminhos pioraram e
tivemos que partir para outras alternativas. Fomos à saída do desfiladeiro da
Capivara e de lá retornamos ao Sitio do Mocó. As mutucas atacavam em grande
número e picavam mesmo sobre as roupas. Visitamos a região do baixão do Perna
onde havia placas de “cuidado com cobras”. O boqueirão das Mulheres estava
lotado de marimbondos. As pinturas rupestres encontradas chamavam a atenção
pelas cenas do cotidiano, como sexo em grupo, violência, acrobacias. Subimos a
pitoresca trilha pelas escarpas até o Alto da Pedra Furada. Do alto se tinha
ampla vista das baixadas, Sítio do Mocó e das demais áreas visitadas.
Nos arredores de São Raimundo Nonato, o museu do Homem
Americano, ilustrado e autoexplicativo, além das tradicionais peças expostas,
oferecia extensos painéis iluminados com imagens, desenhos, reproduções e
textos de fácil compreensão. Podia-se ver, por exemplo, como eram a fauna e a
flora na região até dez mil anos atrás, e como viviam as civilizações em
harmonia com a natureza. Em outros painéis orientava-se sobre o que não fazer,
como a ação agressora de madeireiros, caçadores, depredadores em geral.
Dei uma volta preguiçosa por São Raimundo Nonato, cujo
município fora desmembrado em seis pedaços três anos antes. A região central
era desorganizada. Apresentava muita sujeira e esgoto a céu aberto nas ruas,
diferentemente da parte alta, mais limpa e arrumada. Porém a cidade conquistava
pelo povo acolhedor, hospitaleiro e conversador. Em todas as paradas para matar
a sede sempre aparecia alguém para papear, trocar ideias e informações.
Demonstravam grande orgulho pela terra natal.
Numa delas a senhora me contou sobre a coligação
progressista que governava a cidade depois de séculos de governos conservadores
nas mãos da classe dominante. Embora ainda com muitos problemas, a situação
melhorava a cada dia e a população reconhecia. A relação prefeitura/IBAMA era
construtiva nas desapropriações das áreas do parque nacional e na assistência
às famílias desalojadas. O mesmo não ocorria, segundo ela, nas relações de
ambas as instituições com a Fundação do Homem Americano, devido à
desconsideração inicial da fundação pela população nativa das áreas internas e
vizinhas ao parque. Inicialmente removiam os moradores sem antes lhes
providenciar lugares alternativos onde pudessem reproduzir as próprias
identidades e aptidões. A população revoltava-se diante dos gastos com a
preservação da natureza e a pesquisa científica, ao mesmo tempo em que nada lhe
era revertido em benefício social.
A cachaça antes do jantar fez a cabeça divagar sobre
aqueles dias memoráveis em São Raimundo Nonato e pelo fantástico parque
nacional da Serra da Capivara. O parque nacional da Serra das Confusões ficaria
para outra vez, infelizmente.
Tomei ônibus para Petrolina passando pelos estados da
Bahia e Pernambuco. No trecho piauiense a estrada estava bem conservada e
fiquei atento para não perder a divisa interestadual. O passageiro ao lado disse
sorrindo:
“Não se preocupe com a divisa. Você notará facilmente que
estaremos na Bahia pelo sacolejo do ônibus”.
Repentinamente o ônibus passou a sacudir como cavalo
selvagem nas inúteis tentativas do motorista desviar dos inúmeros e imensos
buracos. E chegava a tal ponto que o acostamento de terra era mais trafegável
que a estrada “asfaltada”. As cidades baianas de Remanso e Casa Nova, ambas
novas e construídas devido ao lago da represa de Sobradinho, eram repugnantes.
Não passavam de amontoados de casas, tudo muito feio, sujo e abandonado. Perto
dali o ônibus parou em restaurante horrível e nojento de beira de estrada. A
placa sobre a pia do banheiro avisava que a região não contava com eletricidade
nem água encanada. A população precisava buscar a água na represa em baldes,
por conta própria. E isso ao lado do lago da hidroelétrica de Sobradinho, no
rio São Francisco, onde o que mais tem é água e eletricidade.
Depois da chegada ao terminal rodoviário de Petrolina
precisei esperar o novo embarque para Senhor do Bonfim. O visual desolava com
pedintes, menores de rua e mau aspecto em tudo. Pouco antes da partida a rápida
tempestade alagou parte do terminal, inundou as plataformas, com direito a
ondas respeitáveis. Duas pontes cruzavam o rio São Francisco, de Petrolina a
Juazeiro. Mas não impedia longos e demorados congestionamentos nos acessos, com
direito a buzinas estridentes e semblantes irritados. Nada diferente das tardes
chuvosas em alguma ponte da marginal do rio Tietê ou Pinheiros em São Paulo.
continua...
Boa noite amigo Augusto!!.Super Relato de viagem...realmente o Maranhão tem muitos desafios economica, social e politico.Sou do Estado e sofro com os problemas.
ResponderExcluirAcredita, eu conheço o Monte Roraima...amei!!.Foi um desafio e conhecimento pessoal .
E gostei do seu comentario sobre chegar a Serra da Capivara de moto.Eu posso alugar uma sem guia?
Pois ,Vou com o meu marido e ele gosta de dirigir! Ou alugar um carro também sem guia!?
Abraço fraterno 🇹🇷🙏🏼🇧🇷🌏❤
Oi,
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
Esse relato se refere à primeira vez que estive na serra da Capivara. Em outro relato, da viagem do Pará à Alagoas, você terá mais informações.
É obrigatória a presença de guia credenciado para entrar no parque.
Com guia você pode entrar de moto ou de carro.
Qualquer coisa me pergunte.
Comente sempre!