...continuação
Depois de dias em Barcelos embarquei de volta a Manaus.
Além da tradicional área das redes, o barco contava com camarotes comuns e
suítes. Eram três níveis e, no superior, bar grande e bem servido, com banheiro
e lavatório públicos, as várias mesas e cadeiras disponibilizadas para o lazer
ou para a hipnose coletiva em frente ao enorme televisor. Cestos de lixo
espalhavam-se por todos os níveis. O efeito da televisão, claro, foi
devastador. Estava sintonizada naquele canal de sempre. Pessoas com olhares
bovinos contribuíam para o próprio embrutecimento e desinformação. Senti falta
do social, dos comes e bebes, das conversas tão típicas das viagens de barco.
Voltei ao camarote para ler e dormir.
Desembarque à noite em Manaus no repugnante cais de
São Raimundo. Tudo escuro nas redondezas e resolvi pegar táxi. De volta à
civilização de cidade grande, com pedintes, grupo de garotos cheirando cola em
terreno abandonado, buzinas estridentes e putas em busca de clientes. Manaus
perdera o charme há muito tempo. E os xópins da cidade eram a tortura
multiplicada por mil. Naquela montanha de concreto, aço e vidro, como em
qualquer parte do mundo, o que se via eram demonstrações de individualismo,
exibicionismo, competição, consumismo e inveja. Eram os únicos lugares da
cidade com salas de cinema, exibindo o que tem de pior do lixo estadunidense ou
algum filme brasileiro comercial e recheado de modelos da televisão.
A parte interessante de Manaus ficava na margem do rio
Negro, o porto tradicional, a Escadaria. Era sempre prazeroso apreciar o
embarque e desembarque de passageiros e cargas, dezenas ou centenas de barcos
de variados tipos e tamanhos, a movimentação frenética dos vendedores de passagens
aos gritos, ambulantes de comes e bebes, circulação de pessoas e veículos ao
lado das águas marcantes do rio Negro, carregadores levando quilos nas costas
das mais variadas mercadorias.
Feriado municipal e praticamente tudo fechado. Andei a
esmo para tentar fotografar os prédios antigos, do auge da história da cidade.
Estava em frente à bonita casa que abriga o Tribunal de Contas da União quando
uma mulher sorriu, puxou assunto, disse que estava a caminho da praia fluvial
de Ponta Negra e me convidou a acompanhá-la. Apesar dos três filhos, do aspecto
estranho e com parafusos a menos, aceitei o convite pela falta de alternativas.
Em bar na praia da Ponta Negra pedi algo para beber
enquanto observava a paisagem ao redor, feia e sem graça. Na parte alta, atrás
da praia, bares e mais bares martelando aqueles lixos de sempre em volume
ensurdecedor. A frequência combinava com o ambiente e apareciam mulheres com
caras suspeitas, homens mais ainda, crianças lambuzadas e cheias de vontade.
Muitos se embriagavam e ainda não passava das 13 horas. A coisa só pegaria fogo
mais tarde.
Comprei o último ingresso em cadeira na plateia para a
mesma noite no teatro Amazonas, prestando atenção no aviso de proibição do uso
de bermudas, camisetas sem manga e chinelos. A peça foi longa e cansativa,
estrelada por atriz global. O público, de casais e famílias na maioria,
inquietou-se no segundo ato, com o ranger das cadeiras e consultas insistentes
aos relógios e celulares. Valeu pela beleza dos interiores do teatro, iluminado
e em atividade.
A música ao vivo, na base de banquinho, violão e,
eventualmente teclado, ocupavam espaços na cidade, entre eles, o bar e
restaurante da estação hidroviária. O bom repertório de música popular
brasileira se repetia, se limitando a no máximo vinte músicas. E acontecia em
todos os lugares, como cópias em série. Eram aquelas de sempre. Não arriscavam
a trilhar outros repertórios. E o público aplaudia sempre as mesmas coisas. E
eles continuavam interpretando as mesmas músicas.
Entre trocas e compras em sebos da cidade, saí com O Trapicheiro, primeiro volume
pertencente à excelente série O Espelho
Partido, de Marques Rebelo, e o fraco romance As Alianças, de Ledo Ivo.
Ainda tinha que esperar mais dois dias para a saída da
cidade. Acabei conversando com outro hóspede no café da manhã. Paulistano,
vendedor de livros de engenharia e também sem saber o que fazer. Decidimos ir
até a praia da Lua, pouco ao norte da praia da Ponta Negra, de onde caminhamos
e depois pegamos barco. A simpática praia lembrava a de Barcelos, com areias
brancas e finas, vegetação e sombras abundantes, poucas barracas de petiscos,
barcos e nada de som alto. Mulheres charmosas, acompanhadas e sérias.
Escolhemos mesa sob a sombra. Entre mergulhos nas águas do rio Negro, me
abastecia de caipirinhas, jaraqui frito, tambaqui grelhado, muita farinha
d’água. Após bons papos com pessoas de outras mesas e pouco antes do anoitecer
retornamos felizes da vida.
Mais à noite, eu e o vendedor tentamos chegar a forró
distante do hotel. Até vesti calça e camisa seguindo recomendações dos
manauaras. Pegamos ônibus errado. Assim que descobrimos, descemos e subimos em
outro. Também errado. Desistimos do forró e arriscamos pagode nas redondezas.
Estava fechado. Tentamos outra festa e não encontramos. Eram quase 3 horas da
madrugada e a noite estava perdida. Esgotados e frustrados, resolvemos forrar o
estômago antes de voltar ao hotel. Comi sanduíche de tucumã com queijo bola,
guaraná natural com mel e limão, açaí na tigela.
A lancha rápida que me tirou de Manaus finalmente partiu
rumo ao médio rio Amazonas com lotação completa. Eram duas cadeiras de cada
lado, separadas por largo corredor central. No fundo ficavam dois banheiros e a
cozinha, onde de preparavam as refeições, tudo incluído na passagem. O almoço
era composto de arroz, salada de maionese, macarrão, farinha d’água e duas
fatias grossas de lagarto recheado. Mais a tarde foi servido suco de maracujá.
Filmes eram exibidos sem parar, um após o outro, nos vários televisores
espalhados pelo interior da lancha. As cadeiras, embora acolchoadas, não eram
anatômicas e o percurso se tornou muito cansativo, agravado pelo calor úmido.
A correnteza do rio Amazonas era forte e nas águas, repletas
de pedaços de madeira, circulavam muitos barcos, balsas e grandes navios.
Desembarquei ao anoitecer em Óbidos, cidade cheia de
ladeiras, construções antigas e silêncio assustador. Ainda não eram 19h e
apenas um irrisório som de vozes vinha das poucas mesas na beira do rio. Óbidos
estava mal servida de hotéis. O tal melhor hotel da cidade, na verdade pensão
mofada, ficava em casa antiga nos altos da cidade e com preços salgados pelo pouco
que oferecia.
O relevo, o traçado das ruas e a arquitetura com muitas
construções antigas davam charme especial a Óbidos, ainda mais com as ladeiras
caindo em direção à margem do rio Amazonas. Assim como em várias localidades da
Amazônia, e principalmente no Pará, os invasores trocaram os nomes originais
indígenas por nomes de cidades portuguesas, com o objetivo de apagar todos os traços
culturais dos habitantes originais. Não bastava dizimá-los fisicamente, tinha
que destruir a memória coletiva. Assim Pauxi virou Óbidos. Negros oriundos de
quilombos nas proximidades da cidade circulavam pelas ruas e comércio.
Os moradores de Óbidos primavam pela antipatia e mau
humor. A melancolia, tristeza e frieza talvez fossem, ao lado do casario
antigo, heranças do invasor europeu. Não era local para se permanecer muito
tempo. Encontrei restaurante bom e barato, que só não era mais agradável devido
ao imenso televisor ligado em alto volume. Conseguia fazer com que a atendente
diminuísse o som somente nas situações em que eu era o único cliente. A
sensação de que todos os moradores estavam de mal com a vida saltava aos olhos.
Será que já morreram e ninguém os avisou? Era por isso que existiam tantos
urubus na cidade. Só esperavam o sinal para levar os moribundos.
Paguei a pensão. Os cadáveres nem sequer agradeceram ou se
despediram. Arrumei minhas coisas e permaneci no quarto à espera do tempo.
Embarquei na lancha e coloquei minha mochila na cadeira vazia ao lado. Serviram
sopa reforçada de carne, arroz e macarrão com duas fatias de pão de forma.
Pouco tempo depois atracamos nas docas do porto de Santarém.
Depois de instalado, caminhei pelo amplo calçadão da
margem do rio Tapajós. Muita animação nos bares, lanchonetes, pessoas
caminhando, sentadas nas calçadas ou namorando. A primeira impressão não
poderia ser melhor, sobretudo depois de conseguir escapar do “cemitério” de
Óbidos.
A vista das sacadas do hotel era deslumbrante, com a orla
margeando as águas límpidas e esverdeadas do rio. Santarém situa-se na foz do
Tapajós e a sensação era de estar em rua bonita e tranquila, próxima ao
entroncamento de grande e movimentada avenida. A linha de separação com as
águas barrentas do rio Amazonas tornava-se muito marcante, conforme a
incidência da luz do sol. A cidade era comum, mas agradável e com população
simpática e acolhedora. Além da agitação da orla após o entardecer, Santarém
guardava a parte antiga, quieta e bucólica, também à beira rio, com bancos e
pescadores silenciosos.
Tomei ônibus para a praia de Alter do Chão, cujo trajeto
cruzou pequenos vilarejos com casas cobertas de palha, sítios, chácaras e
floresta nativa de grande porte. A morena ao meu lado ensinava geografia e
história para adolescentes na zona rural da cidade de Monte Alegre e, com mais
cinco professores, se instalava em alojamentos improvisados na própria escola.
Dormiam em colchões no chão, com direito a visitas inesperadas de escorpiões e
cobras. Segundo ela, muitos alunos ainda não sabiam ler e escrever.
Vila ainda não descaracterizada de praia fluvial, Alter do
Chão atraía pela simpatia e aconchego. Havia barraquinhas com guarda-sol, o
traçado sinuoso e alongado da orla. As águas estavam rasas, com temperatura
agradável e coloração esverdeada. Á tarde o tempo se firmou e as cores ficaram
ainda mais realçadas.
Em Santarém levei a bagagem para o camarote do barco rumo
a Macapá. Ainda deu tempo de visitar a praia de Maracanã e almoçar em
restaurante regional. A luz de final de tarde nas águas do rio Tapajós estava
deslumbrante.
Embarquei antes do pôr-do-sol. No barco ao lado um rapaz
usando linha de pesca e iscas de pequenos pedaços de banana não se cansava de
recolher peixes. O isopor enchia-se rapidamente. A vida não era tão complicada
assim.
Pouco depois da partida pontual do barco e da vistoria da
capitania dos portos, a tradicional sopa da primeira noite foi servida. Gostosa
e farta. O barco, simples e sem a maldita televisão, permitia maior
entrosamento entre os passageiros.
Conversei com o garimpeiro da região do médio rio Tapajós,
a caminho de Oiapoque na esperança de melhor sorte. Também com a senhora e o
filho, residentes em Oiapoque, onde o marido operava voadeira no transporte de
passageiros para a Guiana Francesa. Todos comentaram sobre a violência na
cidade paraense de Itaituba, da tensão e pobreza entre os garimpeiros. A
atividade estava em acelerado declínio na região.
Surgiram serras alongadas a oeste. O rio Amazonas estava
muito largo e com águas barrentas. Nas margens, a floresta, fazendas, casas ou
vilarejos isolados.
A passageira macapaense quarentona, separada, já
tentara o suicídio via envenenamento em função das traições do ex-marido. A
jovem de Itaituba, acompanhada de três rapazes, estava a caminho do Suriname
ignorando a língua falada no país. Nem tinha 30 anos e já dera a luz a cinco
filhos de dois pais diferentes. A filha mais velha nascera ainda na
adolescência. Uns filhos moravam com o pai, outros com a mãe dela. Admitiu ter
feitos coisas que jamais repetiria. Não senti muita convicção. Um dos amigos
dela, constantemente bêbado, assim que notou a conversa, chamou-a
grosseiramente com voz embriagada. Cabisbaixa, ela imediatamente se retirou e
subiu na rede ao lado do dono. Uma adolescente recém-casada permanecia sempre
coladinha com o noivo pouco mais que adolescente. Ele, garimpeiro na Guiana
Francesa, a estava levando para ser a cozinheira.
continua...
O verde-esmeralda do Tapajós em contraste com o branco das areias das praias formadas ao longo do rio produzem um dos espetáculos de cores mais bonitos da Amazônia.
ResponderExcluirUma pena que este cenário esteja ameaçado pelo avanço de hidrelétricas na região.
Att, Jafé Praia
Oi Jafé, obrigado pelos comentários.
ResponderExcluirEssa e tantas outras belezas naturais não podem simplesmente desaparecer em razão da voracidade insana do capital. E o pior é que nem consultam as populações originais, as mais integradas com a natureza e as mais prejudicadas pelas mega-obras.
Lutar sempre contra esses crimes sociais e ambientais!
Comente sempre...abraços!