quinta-feira, 19 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 4/7)

...continuação
Depois de dias em Barcelos embarquei de volta a Manaus. Além da tradicional área das redes, o barco contava com camarotes comuns e suítes. Eram três níveis e, no superior, bar grande e bem servido, com banheiro e lavatório públicos, as várias mesas e cadeiras disponibilizadas para o lazer ou para a hipnose coletiva em frente ao enorme televisor. Cestos de lixo espalhavam-se por todos os níveis. O efeito da televisão, claro, foi devastador. Estava sintonizada naquele canal de sempre. Pessoas com olhares bovinos contribuíam para o próprio embrutecimento e desinformação. Senti falta do social, dos comes e bebes, das conversas tão típicas das viagens de barco. Voltei ao camarote para ler e dormir.
Desembarque à noite em Manaus no repugnante cais de São Raimundo. Tudo escuro nas redondezas e resolvi pegar táxi. De volta à civilização de cidade grande, com pedintes, grupo de garotos cheirando cola em terreno abandonado, buzinas estridentes e putas em busca de clientes. Manaus perdera o charme há muito tempo. E os xópins da cidade eram a tortura multiplicada por mil. Naquela montanha de concreto, aço e vidro, como em qualquer parte do mundo, o que se via eram demonstrações de individualismo, exibicionismo, competição, consumismo e inveja. Eram os únicos lugares da cidade com salas de cinema, exibindo o que tem de pior do lixo estadunidense ou algum filme brasileiro comercial e recheado de modelos da televisão.
A parte interessante de Manaus ficava na margem do rio Negro, o porto tradicional, a Escadaria. Era sempre prazeroso apreciar o embarque e desembarque de passageiros e cargas, dezenas ou centenas de barcos de variados tipos e tamanhos, a movimentação frenética dos vendedores de passagens aos gritos, ambulantes de comes e bebes, circulação de pessoas e veículos ao lado das águas marcantes do rio Negro, carregadores levando quilos nas costas das mais variadas mercadorias.
Feriado municipal e praticamente tudo fechado. Andei a esmo para tentar fotografar os prédios antigos, do auge da história da cidade. Estava em frente à bonita casa que abriga o Tribunal de Contas da União quando uma mulher sorriu, puxou assunto, disse que estava a caminho da praia fluvial de Ponta Negra e me convidou a acompanhá-la. Apesar dos três filhos, do aspecto estranho e com parafusos a menos, aceitei o convite pela falta de alternativas.
Em bar na praia da Ponta Negra pedi algo para beber enquanto observava a paisagem ao redor, feia e sem graça. Na parte alta, atrás da praia, bares e mais bares martelando aqueles lixos de sempre em volume ensurdecedor. A frequência combinava com o ambiente e apareciam mulheres com caras suspeitas, homens mais ainda, crianças lambuzadas e cheias de vontade. Muitos se embriagavam e ainda não passava das 13 horas. A coisa só pegaria fogo mais tarde.

Comprei o último ingresso em cadeira na plateia para a mesma noite no teatro Amazonas, prestando atenção no aviso de proibição do uso de bermudas, camisetas sem manga e chinelos. A peça foi longa e cansativa, estrelada por atriz global. O público, de casais e famílias na maioria, inquietou-se no segundo ato, com o ranger das cadeiras e consultas insistentes aos relógios e celulares. Valeu pela beleza dos interiores do teatro, iluminado e em atividade.
A música ao vivo, na base de banquinho, violão e, eventualmente teclado, ocupavam espaços na cidade, entre eles, o bar e restaurante da estação hidroviária. O bom repertório de música popular brasileira se repetia, se limitando a no máximo vinte músicas. E acontecia em todos os lugares, como cópias em série. Eram aquelas de sempre. Não arriscavam a trilhar outros repertórios. E o público aplaudia sempre as mesmas coisas. E eles continuavam interpretando as mesmas músicas.
Entre trocas e compras em sebos da cidade, saí com O Trapicheiro, primeiro volume pertencente à excelente série O Espelho Partido, de Marques Rebelo, e o fraco romance As Alianças, de Ledo Ivo.
Ainda tinha que esperar mais dois dias para a saída da cidade. Acabei conversando com outro hóspede no café da manhã. Paulistano, vendedor de livros de engenharia e também sem saber o que fazer. Decidimos ir até a praia da Lua, pouco ao norte da praia da Ponta Negra, de onde caminhamos e depois pegamos barco. A simpática praia lembrava a de Barcelos, com areias brancas e finas, vegetação e sombras abundantes, poucas barracas de petiscos, barcos e nada de som alto. Mulheres charmosas, acompanhadas e sérias. Escolhemos mesa sob a sombra. Entre mergulhos nas águas do rio Negro, me abastecia de caipirinhas, jaraqui frito, tambaqui grelhado, muita farinha d’água. Após bons papos com pessoas de outras mesas e pouco antes do anoitecer retornamos felizes da vida.
Mais à noite, eu e o vendedor tentamos chegar a forró distante do hotel. Até vesti calça e camisa seguindo recomendações dos manauaras. Pegamos ônibus errado. Assim que descobrimos, descemos e subimos em outro. Também errado. Desistimos do forró e arriscamos pagode nas redondezas. Estava fechado. Tentamos outra festa e não encontramos. Eram quase 3 horas da madrugada e a noite estava perdida. Esgotados e frustrados, resolvemos forrar o estômago antes de voltar ao hotel. Comi sanduíche de tucumã com queijo bola, guaraná natural com mel e limão, açaí na tigela.
A lancha rápida que me tirou de Manaus finalmente partiu rumo ao médio rio Amazonas com lotação completa. Eram duas cadeiras de cada lado, separadas por largo corredor central. No fundo ficavam dois banheiros e a cozinha, onde de preparavam as refeições, tudo incluído na passagem. O almoço era composto de arroz, salada de maionese, macarrão, farinha d’água e duas fatias grossas de lagarto recheado. Mais a tarde foi servido suco de maracujá. Filmes eram exibidos sem parar, um após o outro, nos vários televisores espalhados pelo interior da lancha. As cadeiras, embora acolchoadas, não eram anatômicas e o percurso se tornou muito cansativo, agravado pelo calor úmido.

A correnteza do rio Amazonas era forte e nas águas, repletas de pedaços de madeira, circulavam muitos barcos, balsas e grandes navios.
Desembarquei ao anoitecer em Óbidos, cidade cheia de ladeiras, construções antigas e silêncio assustador. Ainda não eram 19h e apenas um irrisório som de vozes vinha das poucas mesas na beira do rio. Óbidos estava mal servida de hotéis. O tal melhor hotel da cidade, na verdade pensão mofada, ficava em casa antiga nos altos da cidade e com preços salgados pelo pouco que oferecia.
O relevo, o traçado das ruas e a arquitetura com muitas construções antigas davam charme especial a Óbidos, ainda mais com as ladeiras caindo em direção à margem do rio Amazonas. Assim como em várias localidades da Amazônia, e principalmente no Pará, os invasores trocaram os nomes originais indígenas por nomes de cidades portuguesas, com o objetivo de apagar todos os traços culturais dos habitantes originais. Não bastava dizimá-los fisicamente, tinha que destruir a memória coletiva. Assim Pauxi virou Óbidos. Negros oriundos de quilombos nas proximidades da cidade circulavam pelas ruas e comércio.
Os moradores de Óbidos primavam pela antipatia e mau humor. A melancolia, tristeza e frieza talvez fossem, ao lado do casario antigo, heranças do invasor europeu. Não era local para se permanecer muito tempo. Encontrei restaurante bom e barato, que só não era mais agradável devido ao imenso televisor ligado em alto volume. Conseguia fazer com que a atendente diminuísse o som somente nas situações em que eu era o único cliente. A sensação de que todos os moradores estavam de mal com a vida saltava aos olhos. Será que já morreram e ninguém os avisou? Era por isso que existiam tantos urubus na cidade. Só esperavam o sinal para levar os moribundos.
Paguei a pensão. Os cadáveres nem sequer agradeceram ou se despediram. Arrumei minhas coisas e permaneci no quarto à espera do tempo. Embarquei na lancha e coloquei minha mochila na cadeira vazia ao lado. Serviram sopa reforçada de carne, arroz e macarrão com duas fatias de pão de forma. Pouco tempo depois atracamos nas docas do porto de Santarém.
Depois de instalado, caminhei pelo amplo calçadão da margem do rio Tapajós. Muita animação nos bares, lanchonetes, pessoas caminhando, sentadas nas calçadas ou namorando. A primeira impressão não poderia ser melhor, sobretudo depois de conseguir escapar do “cemitério” de Óbidos.

A vista das sacadas do hotel era deslumbrante, com a orla margeando as águas límpidas e esverdeadas do rio. Santarém situa-se na foz do Tapajós e a sensação era de estar em rua bonita e tranquila, próxima ao entroncamento de grande e movimentada avenida. A linha de separação com as águas barrentas do rio Amazonas tornava-se muito marcante, conforme a incidência da luz do sol. A cidade era comum, mas agradável e com população simpática e acolhedora. Além da agitação da orla após o entardecer, Santarém guardava a parte antiga, quieta e bucólica, também à beira rio, com bancos e pescadores silenciosos.
Tomei ônibus para a praia de Alter do Chão, cujo trajeto cruzou pequenos vilarejos com casas cobertas de palha, sítios, chácaras e floresta nativa de grande porte. A morena ao meu lado ensinava geografia e história para adolescentes na zona rural da cidade de Monte Alegre e, com mais cinco professores, se instalava em alojamentos improvisados na própria escola. Dormiam em colchões no chão, com direito a visitas inesperadas de escorpiões e cobras. Segundo ela, muitos alunos ainda não sabiam ler e escrever.
Vila ainda não descaracterizada de praia fluvial, Alter do Chão atraía pela simpatia e aconchego. Havia barraquinhas com guarda-sol, o traçado sinuoso e alongado da orla. As águas estavam rasas, com temperatura agradável e coloração esverdeada. Á tarde o tempo se firmou e as cores ficaram ainda mais realçadas.
Em Santarém levei a bagagem para o camarote do barco rumo a Macapá. Ainda deu tempo de visitar a praia de Maracanã e almoçar em restaurante regional. A luz de final de tarde nas águas do rio Tapajós estava deslumbrante.
Embarquei antes do pôr-do-sol. No barco ao lado um rapaz usando linha de pesca e iscas de pequenos pedaços de banana não se cansava de recolher peixes. O isopor enchia-se rapidamente. A vida não era tão complicada assim.
Pouco depois da partida pontual do barco e da vistoria da capitania dos portos, a tradicional sopa da primeira noite foi servida. Gostosa e farta. O barco, simples e sem a maldita televisão, permitia maior entrosamento entre os passageiros.

Conversei com o garimpeiro da região do médio rio Tapajós, a caminho de Oiapoque na esperança de melhor sorte. Também com a senhora e o filho, residentes em Oiapoque, onde o marido operava voadeira no transporte de passageiros para a Guiana Francesa. Todos comentaram sobre a violência na cidade paraense de Itaituba, da tensão e pobreza entre os garimpeiros. A atividade estava em acelerado declínio na região.
Surgiram serras alongadas a oeste. O rio Amazonas estava muito largo e com águas barrentas. Nas margens, a floresta, fazendas, casas ou vilarejos isolados.
A passageira macapaense quarentona, separada, já tentara o suicídio via envenenamento em função das traições do ex-marido. A jovem de Itaituba, acompanhada de três rapazes, estava a caminho do Suriname ignorando a língua falada no país. Nem tinha 30 anos e já dera a luz a cinco filhos de dois pais diferentes. A filha mais velha nascera ainda na adolescência. Uns filhos moravam com o pai, outros com a mãe dela. Admitiu ter feitos coisas que jamais repetiria. Não senti muita convicção. Um dos amigos dela, constantemente bêbado, assim que notou a conversa, chamou-a grosseiramente com voz embriagada. Cabisbaixa, ela imediatamente se retirou e subiu na rede ao lado do dono. Uma adolescente recém-casada permanecia sempre coladinha com o noivo pouco mais que adolescente. Ele, garimpeiro na Guiana Francesa, a estava levando para ser a cozinheira.
continua...

2 comentários:

  1. O verde-esmeralda do Tapajós em contraste com o branco das areias das praias formadas ao longo do rio produzem um dos espetáculos de cores mais bonitos da Amazônia.
    Uma pena que este cenário esteja ameaçado pelo avanço de hidrelétricas na região.
    Att, Jafé Praia

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  2. Oi Jafé, obrigado pelos comentários.
    Essa e tantas outras belezas naturais não podem simplesmente desaparecer em razão da voracidade insana do capital. E o pior é que nem consultam as populações originais, as mais integradas com a natureza e as mais prejudicadas pelas mega-obras.
    Lutar sempre contra esses crimes sociais e ambientais!
    Comente sempre...abraços!

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