quarta-feira, 11 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 1/7)

          E resolvi viajar rumo à Amazônia, a fim de explorar com calma os rios e as cidades ribeirinhas. Em setembro, optei pelo Acre como ponto de partida. Usei as milhas acumuladas no programa de fidelidade, evitando desembolsar a fortuna cobrada pelo voo de São Paulo a Rio Branco.
Metrô até a estação Tatuapé e ônibus comum ao aeroporto de Cumbica.
Voo tranquilo entre leituras. No aeroporto de Manaus, conexão em avião pequeno, dentro do qual não conseguia nem ficar de pé.
Os motoristas de táxi em frente ao aeroporto de Rio Branco cobravam mais de 40 reais até o centro. Optei pelo eficiente ônibus local por apenas 1,50.
Pouco me lembrava da cidade desde a última vez que a visitara. Nas proximidades do hotel havia o Parque da Maternidade, construído em 2002 pelo governo estadual. Alongada e ligeiramente sinuosa, com quilômetros de extensão, a área oferecia pistas de caminhada e corrida, ciclovia, córrego central canalizado cruzado por pontes, restaurantes, bares, sorveterias, quadras esportivas, anfiteatro e centro cultural.
Escolhi restaurante bem posicionado em frente às pistas de caminhada. Ao anoitecer começou música ao vivo. Brega, pagode, sertanejo, axé? Nada disso. Quarteto de cordas, muito afinado, interpretava temas eruditos e principalmente populares da boa música brasileira. Como se isso não bastasse, a enorme e alaranjada lua cheia despontou à minha frente. O céu limpo, estrelado e a temperatura amena para a região, valorizaram essa primeira noite na Amazônia.
Na manhã seguinte, andei pelo centro de Rio Branco e arredores, onde havia muitas obras recém-inauguradas. O motivo fora o centenário da revolução acreana que conquistou o estado para o território brasileiro. Na margem direita do rio Acre, área revitalizada com antigos casarões restaurados, calçadões e bancos sob as mangueiras centenárias. Em ambas as margens, antigas casas de madeira, construídas na época de fundação da cidade, muito velhas, guardavam atmosfera nostálgica. Em frente a prédio púbico, onde havia a tribuna popular, grupo de forró animava os transeuntes. Uns apenas paravam e ouviam, outros escolhiam o par e dançavam. E ainda não passavam das 10h da manhã. A influência nordestina, sobretudo cearense, era visível, seja nos rostos, nome dos logradouros públicos, cidades, culinária, ritmos musicais entre outros.
Em restaurante simples especializado em peixes, regado a caipirinhas, degustei a porção inteira da peixada e ainda lambi os beiços.
Noite de domingo quente e sem chuva levava a maioria da população para as ruas, sorveterias, lanchonetes e bares. Muitos, sozinhos ou em famílias, passeavam, desfilavam e paqueravam no canal ou no Parque da Maternidade. Detonei enorme tacacá no quiosque e me encharquei de suor. Precisei esperar bastante tempo sentado para a temperatura do corpo voltar ao normal antes de voltar a caminhar. Delicioso suco de cupuaçu encerrou a noite.
Acordei bem cedo para pegar o ônibus para Xapuri. O relevo, levemente ondulado e quase totalmente desmatado, estava ocupado por pastos de capim e criações de gado. Raras e minúsculas áreas de reflorestamento, algumas com seringais, apareciam nas margens da estrada. Enorme madeireira próxima à cidade de Capixaba revelava o pátio lotado de toras de madeira. Caminhões transportavam somente duas ou três enormes toras, provavelmente de madeira nobre.
Xapuri era pequena, situada às margens do rio Acre, bonita, simpática, muito agradável e com povo hospitaleiro. Arborizada e ventilada com casas de madeira e alvenaria. Na rua do comércio, margeando as águas do rio, concentrava-se o núcleo de construções da época da fundação da cidade, a maioria restaurada, com novas cores e acabamentos. Na outra margem do rio Acre, vários seringais e reservas extrativistas, frutos das lutas dos povos da floresta do Acre.
Após visitar a Fundação Chico Mendes, onde funcionava o museu com fotos e objetos pessoais, placas, títulos e homenagens recebidas pelo mundo afora, fui recebido na entrada da casa onde morou Chico Mendes. Muito simpática e prestativa, a cunhada dele explicou, contou e refletiu sobre a história das lutas de Chico Mendes, o assassinato nas portas do fundo da casa, a situação da família e da luta dos povos da floresta após o crime.
Ela me informou que a viúva de Chico Mendes e os filhos ainda estavam muito traumatizados com a tragédia. A filha chegou a abraçar o pai quando este acabara de cair baleado. O filho mais novo, embora lembrasse pouco, guardou durante anos muito rancor. Mas percebeu que a melhor vingança pelo assassinato do pai seria a continuidade da luta pela emancipação dos povos da floresta, contra o latifúndio e o agronegócio, pela reforma agrária.
De volta a Rio Branco, pulei da cama antes do amanhecer, belisquei qualquer coisa no bar da rodoviária e embarquei em ônibus simples e apertado para encarar as várias horas de viagem rumo a Boca do Acre.
O trecho pavimentado era curto e logo entrou em estrada de terra larga e em boas condições. A paisagem era a de sempre, queimadas, pasto com ou sem gado, raros pedaços com mata preservada. Ao meu lado, passageiros simples e pobres, mas não miseráveis.

Da estrada principal saíam outras estradas perpendiculares para ambos os lados. Os destruidores da floresta usavam esses ramais como trampolins para invadir, derrubar, queimar e devastar a natureza com tratores, moto serras. O IBAMA contava com poucos e mal pagos fiscais. Os grandes proprietários ou grileiros destruíam. A população se deixava levar. Ignorava o desastre iminente e, se tomava conhecimento, nada fazia. Mas observei os 30 quilômetros de extensão na estrada onde a floresta estava mais preservada. Era a reserva indígena do povo Apurinã. Placas da FUNAI alertavam sobre a área protegida. Poucas áreas desmatadas, pequenas lavouras, casebres de palha, banheiros externos e pintados de branco.
A cidade amazonense de Boca do Acre dividia-se em duas vilas. A nova, ou alto do Piquiá, oferecia construções de alvenaria espalhadas, ruas e avenidas largas, ausência de charme. Triste, vazia e deprimente. A vila antiga onde me hospedei, situada na foz do rio Acre no rio Purus, atraía com ruas estreitas, becos sinuosos, construções de madeira, o comércio. As águas dos dois rios se encontravam trinta metros abaixo do nível das ruas da cidade. Ambos estavam muito secos. Barcos de pesca navegavam para lá e para cá. As praias surgiam em frente e principalmente um quilômetro abaixo no rio Purus. Descendo o barranco no sentido da margem, os piuns atacavam incessantemente. Minhas pernas se pontilhavam dessas picadas, queimavam e coçavam por longo tempo.
Assim que desembarquei na cidade e caminhava de mochila ao hotel, um rapaz parado na esquina me perguntou “vai para o Mapiá?”. Ao entardecer, na entrada do hotel, o porteiro voltou com a mesma pergunta, “vai para o Mapiá?”. Imaginei ser hotel de selva, nome de igarapé ou atração turística. Mapiá, ou mais precisamente Céu do Mapiá, era a sede da seita do Santo Daime, muito frequentada por pessoas de fora da região. Até lá eram horas e horas de barco. Enquanto me contava, o funcionário apontava os transeuntes e dizia “aquele mora lá”, “esse é da vila”, “aquele é o filho do fundador e é chamado de padre”. O “padre”, muito magro e barbudo, usava camiseta com a figura do pai estampada. Bastava prestar atenção e reparar que, nas ruas da cidade ou mesmo entre os poucos hóspedes, muito se comentava sobre o Mapiá e sobre os planos de ir até lá. O porteiro garantiu que o tal chá, produzido a partir da fermentação do cipó, não viciava. E durante o efeito a sensação era relaxante e “só se pensava em coisas boas”.
A pracinha da cidade, sem igreja por perto, estava muito movimentada na noite de sábado. Enquanto uns passeavam de bicicleta, outros ficavam paquerando e apreciando o vaivém. As mulheres, bonitas, sensuais, vestiam blusinhas provocantes, calças e saias da moda, não muito diferentes das outras regiões quentes do país. Elegantes, atraentes e ainda muito jovens. Mas logo estariam casadas e com filhos.

A maioria das casas de Boca do Acre era de madeira e suspensas mais de um metro acima do nível do chão. Prevenção contra as enchentes e a invasão de animais indesejados. Não existia tratamento de esgotos na cidade, que corria livremente por canais improvisados nas laterais das ruas. A bicicleta era o meio de transporte mais utilizado.
Os tais do lugar instalavam enormes e potentes caixas de som no porta-malas dos carros, estacionavam em locais públicos e no último volume impunham o pior do descartável. O brega paraense, axé baiano, forró cearense e, disparado em primeiro lugar no massacre, a dupla de gritadores Bruno e Marrone. Era preciso ouvidos de penico e nervos de aço.
A recepção do hotel estava bastante agitada na outra manhã. Grande quantidade de bagagens, caixas de comida, pessoas quarentonas, magras e ressecadas. Havia também rapaz mais jovem com sotaque espanhol, aspecto frágil e doentio. Todos se preparavam para embarcar ao Céu do Mapiá. Só respondiam às minhas saudações com muito esforço e má vontade. Não se interessavam em conhecer ninguém, exceto as pertencentes à seita. O aloirado e com barba rala, cantarolava sem parar temas religiosos.
Caminhei até a praia da cidade onde havia carros, barracas e o rio para refrescar os frequentadores. Pelo receio de acidentes com arraias, muito comuns no rio Purus, apreciei somente com os olhos. Festival de música, semanas atrás, animara a cidade. O palco de eventos ainda estava montado nas areias da praia. De volta à cidade, ainda me perguntavam se eu iria ao Mapiá.
Alto-falantes espalhados pelas ruas do centro e rádios dentro dos estabelecimentos comerciais transmitiam a sessão da câmara de vereadores. Adorava passar o tempo observando, do alto das barrancas do rio, a frenética movimentação de barcos para cá e para lá. Além do prazer visual, as ideias se encaixavam, surgiam boas conversas e a vida seguia, sem pressa. Índios magros e alongados deixavam as canoas nos barrancos do rio e caminhavam pelas ruas para os afazeres urbanos.
Nas proximidades do hotel ainda me perguntavam se eu iria ao Mapiá. A última fora uma garota catarinense, muito jovem e magra, casada, com o filho pequeno e doente. Era moradora e membro da seita com o marido, caboclo baixo, troncudo. Ela mostrava-se bastante descontente com a comunidade e acusava os principais membros de individualistas e egoístas. Afirmava que lá os gêneros de primeira necessidade eram caros e era preciso trabalhar muito no pesado, como cortar e carregar madeira. Necessitava de dinheiro para o tratamento médico do filho e ninguém a auxiliava, nem mesmo a família de Florianópolis, que a rejeitava por pertencer à seita. Um carioca quarentão com pilhas de bagagem, convidado pela seita para celebrar o “ritual de cura” na comunidade, circulava pela portaria do hotel. A catarinense tentou em vão pedir-lhe ajuda e recebeu o não curto e grosso.
No ônibus de Boca do Acre a Rio Branco, entre os passageiros que subiam e desciam pelo caminho, predominavam conversas sobre ocupação e utilização de terras. As opiniões ressaltavam a violência no campo, a presença ostensiva dos grandes latifundiários, a falta de financiamento para a produção agrícola, grilagem, manipulações jurídicas de posse das terras e escrituras fraudulentas por parte dos grandes fazendeiros, estes os verdadeiros invasores.

Hospedei-me em Rio Branco próximo à estação rodoviária e à empresa evangélica de cujos interiores as ovelhas berravam neuroses. O ruído do ar condicionado do quarto ajudou a abafar a poluição sonora dos fundamentalistas. Na parte de baixo da parede da outra da cama de solteiro, estranho buraco de cerca de quinze centímetros de diâmetro, irregular, com tijolo a vista, escuro. Não se enxergava até onde ia.
O ônibus não partiu lotado de Rio Branco com destino a Guajará-Mirim. Na divisa entre Acre e Rondônia, parada para a fiscalização sanitária. Quem não exibia o certificado de vacinação contra a febre amarela era convencido, mas não obrigado, a se vacinar.
          Focos de queimadas despontavam ao fundo do horizonte. A fumaça, mais a poeira da estação seca, deixava tudo enevoado. O céu se acinzentava, mesmo sem nuvens. O sol transformava-se em imensa bola alaranjada e sem brilho. Entrando em Rondônia o cenário agravou-se e a impressão era de que ia chover tal a tonalidade cinzenta do céu. Nada se plantava depois de derrubar a floresta. Eventualmente criação de gado, o que não era nenhum consolo, ou simplesmente o vazio desolador. Mas o vazio cercado. Madeireiras localizadas nas margens da estrada transportavam enormes toras de madeira em caminhões, principalmente no período da noite. Também nas margens da estrada, três escritórios do IBAMA.
continua...

3 comentários:

  1. Infelizmente, mesmo com campanhas, advertências nacionais e internacionais sobre a importância da preservação da Amazônia, o Estado brasileiro pouco faz para reverter a destruição do bioma. Além do desmatamento, crescimento de latifúndios, abandona os ribeirinhos, indígenas que, com seu modo de vida, contribuem para preservação da Amazônia.
    Att, Jafé Praia

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  2. Oi Jafé, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Essas mazelas dos nossos interiores, e das capitais também, doem na alma de quem ama esse país e o povo que nele habita.
    Vamos denunciar, informar, formar, para que mais pessoas se indignem, se organizem, se mobilizem, e lutem por um Brasil melhor para os brasileiros. Desanimar, jamais!
    Abraços e comente sempre!

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  3. Olá!
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Pois é, há regiões, do Brasil e do exterior, em que deveríamos ganhar insalubridade para permanecer. O lixo sonoro agride rsss.
    Abraços e comente sempre!

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