quarta-feira, 25 de agosto de 2010

do Acre ao Tocantins (parte 6/7)

...continuação
O rio Amazonas estava calmo próximo às margens. Porém, quando o barco cruzava a largura do rio, trocando de lado, as águas se agitavam, fazendo o barco balançar bastante.
Três colegas de percurso resolveram comprar vinho de quinta categoria durante a parada na cidade de Prainha. Deixaram no congelador do bar para tomarmos após o jantar. Não dava para engolir. Mesmo gelado, era doce e enjoativo. Eles continuaram a beber, enquanto outros apareciam ali no piso superior com garrafa de conhaque vagabundo. Os goles e o papo animado corriam soltos sob o céu estrelado. As luzes da cidade de Monte Alegre logo apareceram no horizonte, enganando quanto à proximidade. A chegada só ocorreu duas horas depois. A bebedeira exagerada continuava. Saí de fininho. A tripulação, sempre séria e comportada, notou, não gostou e deu fim na festa.
Esperei todos desembarcarem em Santarém. Arrumei minhas coisas, engoli o café da manhã e me despedi da tripulação. Caminhei até o hotel de sempre. Ainda deu tempo de aproveitar o café da manhã.
Os banheiros dos quartos desse hotel eram um caso à parte. A pia estava montada sobre largo gabinete de cozinha de aço. A torneira, de plástico, pequena, torta, muito junto à parede e longe da cuba, espirrava água para todos os lados. A porta do box nunca fechava totalmente. A água do chuveiro escorria para várias direções, menos para o ralo, pois a inclinação do piso estava ao contrário. A descarga, quando acionada, vazava no chão e o tapete encharcava constantemente.
Havia feira cultural popular na praça à beira rio e mais adiante do centro de Santarém. Diversas comunidades, vilarejos e aldeias da região estavam representados com barracas, comidas típicas, produtos locais. Havia até palco para as exibições noturnas de danças, músicas folclóricas, contadores de piadas, declamações de poesia e outras manifestações artísticas. Muito tacacá e gente simpática.

Eis algumas pérolas de nomes paraenses que ouvi: Wenes Cindely, Wenes Kimberly, Medellen, Andrely Lohana, Leyen Tendiohana, Rayla Ohana, Welesson. Eram todos reais e vivos. O argumento, além da “beleza”, consistia em serem únicos, evitando o risco de vizinhos usarem a mesma e brilhante ideia.
Dia solto na praia da Pajuçara, ao sul de Santarém. Era grande, em formato de baía e com morro em toda a extensão. Havia muito verde, areias brancas, as águas verdes do rio Tapajós, sombra à vontade para descansar. Mesmo no feriado, pouca gente e muito espaço. A temperatura da água agradava, sem sal ou correnteza.
Em nova investida a Alter do Chão no dia seguinte, a praia estava bem mais cheia que da última visita. Achei melhor caminhar em outras direções e explorar partes mais tranquilas. Bastava sair do miolo e dos bares que a paz voltava a reinar. Mais baías praticamente sem alma viva, só praias de areias brancas, águas esverdeadas, os morros e a sombra das árvores. Antes de retornar a Santarém, ainda detonei a caldeirada de tambaqui com caipirinhas em restaurante simples perto das águas do rio.
O barco para Itaituba era inferior aos demais utilizados, apertado, sem área de lazer, sem bancos ou cadeiras. Antes da partida houve muita demora na fiscalização da capitania dos portos. Depois, o comandante deu as boas vindas aos passageiros, passou instruções de limpeza, segurança, o que podia e o que não podia fazer. Entre as proibições, “namoro explícito” e “mais que um adulto na mesma rede”. O único chuveiro masculino disponível provocava longas filas de espera. No bar minúsculo da popa, lá estava a maldita televisão.
Com apenas três paradas rápidas para embarque e desembarque, a viagem de apenas uma noite e uma manhã guardou paisagem com muita névoa e falta de contrastes. O amplo rio Tapajós oferecia colinas e serrotes em ambas as margens. Ilhas e longas praias surgiam eventualmente. Os botos e tucuxis saltavam acima das águas do rio. Os focos de queimadas e áreas desmatadas aumentavam em quantidade à medida que o barco se aproximava de Itaituba. Entre os passageiros do barco, vários rostos sulinos e pessoas envolvidas com madeireiras.
Era grande o fluxo de caminhões, pessoas, cargas e madeira em Itaituba, situada no cruzamento entre a rodovia transamazônica e o rio Tapajós. Paranaenses e gaúchos não faltavam por ali. A vida noturna se concentrava na rua à beira rio. Bares, restaurantes e barraquinhas, tudo muito simples. Perto do acesso à balsa o nível despencava e predominava a frequência de putas, garimpeiros e afins.
Em frente ao restaurante de melhor aparência, estacionavam caminhonetes e delas saiam paranaenses, capixabas e demais sulistas. Todos com aquele jeitão de fazendeiros, ou invasores de terras, com calça justa, cinturão e botas. Se sentavam nas mesas da calçada e logo as meninas, ainda menores, circulavam por ali oferecendo os corpos. O japonês paranaense negociou com uma delas e saíram de caminhonete, a fim de completar o programa em alguma beirada de rio. A ingenuidade das cidades fluviais da Amazônia ficara para trás. Ali, as rodovias traziam o progresso branco e a modernidade capitalista.
Mesmo nas ruas situadas longe da margem do rio, para onde a cidade mais crescia, a atmosfera cheirava a perigo. Havia algo suspeito no ar e no comportamento dos habitantes. As mulheres esbanjavam beleza e charme, além de sensualidade perigosa. Aquele convite para se meter em boas encrencas. A cada sorriso ou olhar mais diferenciado pressentia-se o risco. A incrivelmente sensual recepcionista do hotel, na verdade sócia ou parenta dos donos, me lançava olhares, sorrisos e frases insinuantes, enquanto a aliança brilhava no dedo da mão esquerda.
Inúmeras lojas de compra de ouro espalhavam-se pelo centro da cidade, amplas, vazias, com diversas balanças e inúmeros funcionários. Com a queda da produção do ouro, o garimpo na região do alto Tapajós estava em franca decadência e os garimpeiros migravam para o Amapá, Guiana Francesa e Suriname.     
À noite as barracas e bares perto do rio se agitaram e a prostituição, inclusive infantil com meninas de menos de 15 anos, rendia bons programas. As garotinhas surgiam sozinhas e logo se juntavam às mais experientes. Sentavam-se nos bares e restaurantes a fim de garfarem os clientes em potencial, prósperos empresários no ramo de madeiras, serrarias e monoculturas, invariavelmente chegando em imensas caminhonetes. Entre eles, estrangeiros também. Parte do dinheiro obtido com a destruição da Amazônia os tais empresários gastavam na prostituição infantil. De um lado o agronegócio de exportação enriquecendo ínfima minoria, de outro, a miséria e o abandono envolvendo a imensa maioria.
Acordei bem cedo e ainda consegui aproveitar o abundante e delicioso café da manhã do hotel. Já estava no ponto do micro-ônibus antes do horário previsto da saída para Altamira. Como não havia fiscalização sobre aquele tipo de transporte não oficializado, o motorista esperou encher e só pegamos a balsa uma hora depois. E ainda tivemos que pagar a passagem da balsa. Tentei iniciar a reclamação, mas, sem aliados, desisti.

Foram dezessete horas de viagem desconfortável para vencer o percurso da rodovia transamazônica, não pavimentada, até Altamira. A maioria da bagagem amontoava-se pelo corredor estreito e curto. Com mais passageiros em pé, não havia como evitar o esmagamento interno. Escolhi assento individual e na primeira fileira. Meus joelhos chocavam-se constantemente com a barreira na frente.
O motorista, logo no início da viagem, avisou a todos sobre sacos plásticos disponíveis para o caso de alguém passar mal. A janelas, travadas, nunca abriam. O ar condicionado permanecia ligado, apesar dos protestos gerais. Não demorou muito para os saquinhos serem utilizados e, assim que enchiam, eram entregues ao ajudante do motorista. Ele simplesmente abria a porta do ônibus e os soltava na estrada. Ultrapassaram de dez os casos de enjoos e preenchimento dos saquinhos, de homens, mulheres, crianças, idosos.
O relevo da paisagem era um sobe e desce danado. A estrada cortava perpendicularmente toda a drenagem, rios, igarapés encachoeirados com pedras, corredeiras e vales profundos. As pontes, sempre de madeira, estavam podres. A estrada estava cheia de buracos e irregularidades na terra. A visão das ondulações da estrada no horizonte, aliada à sinuosidade do trilho marcado pelo caminho dos veículos, era bela e impressionante. Emocionavam também as lagoas de águas escuras, as plantas circulares e flutuantes, os buritizais com imensas palmas.
Na segunda metade da viagem, pouca lama, poças d’água e trechos escorregadios. E as chuvas apenas ameaçavam começar. Muitas partes estreitas onde mal cabiam dois veículos, obrigando-os a quase parar. Ali a floresta estava presente até as margens da rodovia e o aspecto bruto fascinava. Mas infelizmente não era a regra. Quase tudo devastado, cortado e queimado. Apenas no fundo do horizonte se notava, quando muito, a linha das árvores.
Inúmeros caminhões transportavam enormes toras de madeira. Na pequena cidade de Uruará, gigantesca serraria e outra olaria expeliam enormes quantidades de fumaça por altas chaminés, mais parecendo reatores nucleares.
As cidades situadas nas margens da estrada eram feias, empoeiradas, desleixadas. Apenas depósito de gente. Funcionavam como base para atacar a floresta. Rostos sulinos abundavam na região. Nas paradas vendiam-se passagens rodoviárias para outras cidades do Pará e, pasmem, para Santa Rosa no Rio Grande do Sul. Na vila de Placas a escola de ensino fundamental levava o nome de Melvin Jones.


Anoiteceu e a escuridão serviu como prenúncio macabro da próxima cidade, com o nome de, com o perdão da palavra, Medicilândia. Em sintonia com o nome, a cidade, além de miserável, suja e podre, situava-se em região com alto índice de assaltos a veículos em geral. Os caminhões nunca circulavam sozinhos, mas sempre em comboio de dois ou três. 
As poucas paradas na beira da estrada, sempre ao sabor do humor do motorista, eram nojentas e sem banheiros. Para urinar a saída era encontrar muros, becos ou locais escondidos. Comer nesses lugares somente para os sem apego à vida. Depois de engolir a refeição, o motorista saía pelas ruas à caça de mais passageiros para se espremerem dentro do micro-ônibus.
Cheguei em Altamira no meio da madrugada. A cidade estava deserta nas imediações da estação rodoviária. Por ser transporte clandestino, o micro-ônibus apenas encostou para o desembarque antes de seguir para o destino final, a cidade de Marabá, muitas e muitas horas adiante. Os taxistas se aproximaram e me indicaram rua com hotéis ali perto.
Coloquei a mochila nas costas e caminhei pela rua completamente vazia na madrugada. Estava quase chegando na entrada de um hotel quando fui abordado pela viatura da polícia militar. Saíram truculentos, pedindo meus documentos, querendo saber de onde vinha e o que fazia na rua àquela hora. Cansado pela longa e desgastante viagem, tentei me controlar e responder apenas o óbvio. Alegaram que era perigoso estar nas ruas durante a madrugada. Mais uma vez lhes disse que foi a hora que o ônibus me deixou. Se quisessem me ajudar, que me deixassem entrar naquele hotel. Sob os olhares idiotas dos policiais, toquei três vezes a campainha da portaria e ninguém atendeu. Tentei o hotel ao lado. O funcionário amassado de sono, após a incrível pergunta sobre o que eu desejava, abriu a porta e finalmente consegui entrar. Os policiais ainda me observavam com desconfiança.
continua...

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