...continuação
Por conta própria, sem excursões escolares, pegamos trem
rumo a Oxford. A antiga e histórica cidade sobrava em charme, beleza,
personalidade. Encantava pelos becos, universidades com jardins perfeitamente
conservados, construções pesadas e imponentes, catedrais, torres. Tirando as
lotadas ruas comerciais, as demais partes da cidade exalavam calma, sossego,
silêncio. Nem mesmo as pencas de turistas afetavam a atmosfera envolvente. Eram
dezenas de universidades cujos prédios impunham respeito pela beleza da
arquitetura, gramados impecáveis, parques floridos, atmosferas seculares. E
tivemos a sorte de presenciar cerimônias de formatura, nas quais estudantes
vestiam togas solenes e pretas, chapéus também pretos, fornecendo ao ambiente muita
pompa e emoção.
Em Londres, demos uma olhada rápida pela região de Camdem
Town no início da manhã. Ainda montavam o mercado, feira de roupas, objetos
usados em geral. Havia de tudo um pouco, maluquices, ousadias, outras nem
tanto. Os preços variavam de exorbitantes a boas pechinchas.
Caminhamos da praça Leicester até a Torre de Londres,
passando pela catedral de São Paulo, pelo centro financeiro. Foi uma longa
pernada, mas agradável e pedagógica. Não fazia calor e as ruas estavam vazias
naquela manhã de domingo. Mas permanecemos somente do lado de fora da Torre.
Não estávamos a fim de encarar a fila quilométrica. Encaramos cinema e
assistimos a filme deplorável. Circulamos pelo Hyde Park sob um vento frio.
Exceto as aulas dispensáveis, o dia se resumiu a outro
gostoso lanche na base de muita comida e vinho no parque Waterlow.
À noite, a escola promoveu concursos de cultura geral. E o
grupo do qual participamos saiu vencedor. Ganhamos uma garrafa de vinho,
detonada ali mesmo, camisetas da escola e um dicionário Oxford. As perguntas se
restringiam a conhecimentos simples e não exigiam tanta cultura ou raciocínio.
Com honrosas e raras exceções, a maioria dos alunos impressionava pela
ignorância e alienação sobre tudo. Embora compreendessem o inglês necessário, nada
sabiam sobre dados e fatos ao redor do próprio nariz. Um aluno suíço pós-adolescente
se destacou pelo desequilíbrio mental. Gritava, interrompia, atrapalhava. De
nada adiantou as sutis repreensões do inglês que coordenava e lia as questões. Após
abrirmos e secarmos a garrafa de vinho conquistada, o jardineiro da escola
sentou-se à nossa mesa. Abriu outra garrafa e nos ofereceu. Então auxiliamos o
gentil colega a enxugá-la em minutos.
O clima sombrio incomodou durante o dia e não fizemos
grandes coisas ao ar livre. Algumas linhas de metrô estavam paralisadas ou em
funcionamento precário.
Como se fosse possível, o dia na escola conseguiu a proeza
de ser ainda pior que os anteriores. Em tudo, conteúdo das aulas, comportamento
dos professores, vexame dos alunos. O cardápio das bobagens incluía jogos de
ludo, de adivinhação e outras idiotices para enrolar o tempo. De ensino da
língua inglesa, praticamente nada. Nos últimos cinquenta minutos da tal “aula”,
dois alienados da Suíça pediram e o professor os atendeu. Ignorando a
programação do curso e o interesse da maioria dos alunos, trouxe folhas
contendo lista dos principais palavrões da Inglaterra, com exemplos e tudo o
mais. Os dois suíços, que adoravam cochichar em alemão feito duas comadres fofoqueiras,
aplaudiram a inovação e se excitaram com o nobre aprendizado. De nada adiantou
eu e outros alunos reclamarem daquela perda de tempo. O professor justificou
que oferecia a oportunidade de aprendermos a linguagem das ruas. Somente
palavrões por longos cinquenta minutos.
Aproveitamos as aberturas de sol e passeamos na região de
Richmond, afastada do centro de Londres, na margem do rio Tâmisa, em meio a
extensas áreas verdes, como sempre impecáveis no arranjo e conservação.
Embarcamos em nova excursão da escola, rumo à cidade
litorânea de Brighton.
Muito frequentada pelos londrinos no verão, a praia só
podia ser piada de mau gosto. Não havia sequer um grão de areia, somente seixos
de cerca de cinco a dez centímetros de diâmetro. Era impossível caminhar
descalço sem tropeçar, cair ou cortar as solas dos pés. Para completar a
desgraça, o píer que avançava no mar se entupia de fliperamas, máquinas de
jogos eletrônicos, caça-níqueis.
A área central da cidade oferecia becos estreitos e
sinuosos, formando labirintos com lojas, restaurantes, confeitarias. Pelo menos
ali valia a pena circular e apreciar o conjunto arquitetônico. Entramos em
restaurante italiano no meio do labirinto que servia boa comida, bom vinho, bom
café. Sem pressa, passamos boas horas naquele ambiente aconchegante.
Acordamos bem cedo para pegarmos trem rumo a Canterbury na
estação ferroviária de Victória. Aquela linha não estava em nenhuma tabela de
horários, o que não seria novidade. A maioria das tabelas não passava de pura
ficção. Linhas de trens presentes nas programações não corriam mais. Outros em
funcionamento não constavam das listas. A Inglaterra depois da privatização de
inúmeros serviços essenciais não inspirava confiança. E nem havia banheiros no
vagão que viajamos.
Canterbury era bem arranjada, simpática, com lindos
jardins, para não perder a mania inglesa, casas e ruas charmosas, a
impressionante catedral gótica. O tempo chegou a abrir, mas o frio apertou. E na
volta, mais aventuras pelos transportes ingleses privatizados. Foi preciso pegar
um trem, um ônibus para superar o trecho interrompido da ferrovia, e outro trem
até a capital. E o percurso total era curto. Muito mais complicado e
desgastante do que nos interiores da Índia, onde estivéramos meses antes.
E mais problemas no metrô em Londres. Ramais e linhas
interrompidas. Desviamos e tivemos que trocar duas vezes de linha.
Em dado momento da aula no outro dia, o professor pediu
que cada aluno conversasse com o aluno ao lado e perguntasse sobre o
comportamento usual durante as refeições nos respectivos países. Eu fiz dupla
com uma japonesa de vinte e poucos anos. Descrevi a alegria e descontração que
acompanhavam a maioria das refeições brasileiras. Na vez dela, muito sóbria,
comunicou que durante as refeições nas casas japonesas todos se calavam
completamente enquanto comiam. Seria tremenda falta de educação alguém falar.
Desisti de esticar por terra até a Ásia e decidi retornar
ao Brasil após o final do curso. Ela permaneceria mais tempo, mas em outra
escola de inglês.
E a escola mantinha a embromação. Os dois suíços
continuavam a manifestar atitudes racistas e preconceituosas. Os demais alunos
não os suportavam. Os professores nada faziam e eles não cediam um milímetro
sequer.
À noite tivemos jantar agradável com os alunos e
professores da minha turma. Ainda mais porque os dois suíços racistas, “as duas
comadres”, não compareceram, deixando o ambiente mais leve e prazeroso. Foi um
alívio. Ninguém sentiu a falta deles.
Último dia de aula, finalmente, entre trocas de fotos, de
endereços, despedidas. O professor, apesar das péssimas aulas, era boa pessoa,
adorava culinária, planejava no curto prazo sair da escola, vender alguns bens
e partir para a China a fim de estudar a culinária chinesa. Exceto “as duas
comadres” da Suíça, a turma agradou e proporcionou bons momentos sociais. Mas o
tal curso de inglês, nunca existiu de verdade.
Passamos quatro horas memoráveis na Torre de Londres.
Exploramos as muralhas, masmorras, escadarias, exposição de joias, peças de
ouro. O brilho das riquezas impressionava, mas se ofuscava pela origem de tudo
a partir de saques e roubos do império britânico pelo mundo afora.
À tarde, após almoço italiano saboroso e caro, entramos em
cinema para assistir a filme inglês rodado no norte do país. Era comédia crítica
à decadência econômica e social da Inglaterra, sobretudo daquela região,
outrora rica em indústrias metalúrgicas. Os atores usavam sotaque regional de
difícil compreensão. Perdemos inúmeros diálogos, mas nos divertimos com as
cenas cômicas e as risadas da plateia inglesa.
No início da manhã, espessa neblina, associada à umidade,
molhava as ruas e os carros estacionados. A água escorria da lataria de alguns
deles. E nenhuma gota de chuva caíra durante a noite ou madrugada. Seguimos de
trem rumo à cidade universitária de Cambridge.
O ponto alto de Cambridge ficava por conta do King’s
College, faculdade somente para homens, com capela estupenda, cheia de vitrais,
os jardins gramados na parte da frente, o rio bucólico nos fundos do prédio.
Estudantes ganhavam trocados conduzindo turistas de barco pelas águas calmas.
Não usavam remos, mas estacas profundas que impulsionavam os barcos lentamente.
Um saboroso kebab recheado de frango ricamente
temperado encerrou a noite nas imediações da praça Leicester em Londres. Era
minha última noite na cidade.
Ela matriculara-se em escola bem mais barata nas
imediações do centro da cidade. Também conseguira permanecer na mesma casa
depois das renegociações de preços e condições. Tivemos muita sorte com a casa,
a higiene, o café da manhã farto e variado, a boa recepção. Mas parecia
exceção. Ouvíamos histórias escabrosas de outras casas, onde os donos trancavam
a porta a partir de certas horas, serviam comidas vencidas ou de má qualidade,
cortavam a água quente, destratavam os hóspedes. E todas elas faziam convênio
com a escola privada, a tal que cobrava fortunas dos alunos, nada ensinava e só
embromava.
No voo da volta, com conexão em Zurique, a mesma viagem
chata, cansativa, com comida medíocre da empresa aérea da Suíça. E novamente as
desnecessárias e torturantes informações técnicas nos televisores.
Aproveitei para refletir sobre o desejo de parar
momentaneamente com as viagens ao exterior. Depois de tantas e gratificantes
viagens pelo continente americano, europeu e asiático, me dei por satisfeito. E
também um pouco enfadado de gringos. Eu sentia muita falta das paisagens e dos
povos brasileiros. Pronto! Em breve voltaria a percorrer os interiores do
Brasil, destinos bem mais fascinantes, que certamente brilhariam nas minhas
próximas explorações.
Desembarquei em São Paulo em fins de outubro. Depois de
pegar o ônibus comum no aeroporto de Cumbica, tive que esperar bastante na
estação Bresser do metrô por um vagão que não estivesse transbordante naquela
manhã de terça-feira.
Você retornou à Inglaterra depois dessa viagem?
ResponderExcluirOi Joseane, obrigado pela visita.
ResponderExcluirEstive mais de uma vez na Inglaterra, mas essa foi a última. Foi o fim de uma longa fase de diversas viagens ao exterior e já me sentia cansado daquilo tudo.
E retornei feliz da vida a incursões pelos interiores do Brasil.
É claro que isso passa e voltarei em breve a explorar países que valham a pena.
Um dia, quem sabe um dia...
Abraços!