Diferentemente das demais já realizadas, essa não seria apenas
uma viagem de lazer.
O Brasil vivia o primeiro ano do capitalismo neoliberal do
governo Collor que confiscara o dinheiro dos correntistas. O patrimônio e os
lucros dos ricos da classe dominante, como de praxe nos governos burgueses,
permaneceram protegidos. A recessão bateu em cheio no país e o desemprego foi
às alturas. Os salários dos que se mantinham empregados foram congelados por
baixo, enquanto que os preços foram controlados por cima, para alegria dos capitalistas
brasileiros e estrangeiros que sustentavam o governo Collor.
A ideia de viajar a Portugal e depois para lá mudar com ela brotou com força. Recentemente ingressado na comunidade
econômica europeia, o país recebia toneladas de investimentos dos países ricos.
Investimentos que, obviamente, seriam cobrados com juros e correções mais tarde.
Embarquei sozinho rumo à capital portuguesa no início de
novembro.
Me esperavam em Lisboa, de onde seguimos para o
Cacém, subúrbio da capital. Nem bem cheguei, comecei a levantar, perguntar e
anotar os preços e condições de tudo.
Cacém contava com construções novas e parecidas, não
ultrapassando os dez andares. A maioria dos apartamentos não tinha área de
serviço, restando aos moradores pendurarem as roupas do lado de fora das
janelas. Com comércio autossuficiente, o trânsito local se agitava. Era preciso
ter cuidado para não tropeçar ou cair nos buracos das ruas e calçadas. O
destaque dos comes e bebes ficava por conta das pastelarias, uma mistura de
café, lanchonete e confeitaria, servindo doces, salgados, bebidas, almoços.
Dentro do circuito Oeiras, Cascais, Estoril, praia das
Maçãs, Sintra, arredores de Cacém, o trecho entre Oeiras a Cascais lembrou o sofisticado
litoral mediterrâneo voltado ao turismo dos ricos. A sinuosa costa contava com
praias de mar bravo, dezenas de hotéis, restaurantes, cassinos. Ruas em curva,
colinas, becos, palácios, predominavam em Sintra. O palácio da Pena erguia-se
no alto da colina, rodeada de bosque muito verde e frio. Mas estava fechado.
Ganhei alforria para passear livremente pelo centro de
Lisboa. Peguei o velho, limpo e eficiente trem até a estação ferroviária do
Rossio. Ainda se viam pessoas mais velhas vestidas inteiramente de preto. Os
homens cobriam as cabeças com boinas, as mulheres usavam panos, invariavelmente
pretos. Favelas e barracos de madeira surgiam em terrenos desocupados.
O Bairro Alto guardava becos, ladeiras, vista panorâmica
de Lisboa, casas antigas com pequenas sacadas, roupas penduradas ao sol. Idosos
muito velhos conversavam nas esquinas. Até os produtos comercializados por ali
eram velhos. Bondes circulavam para lá e para cá.
Caminhei pela rua Augusta, cruzei os arcos rumo à praça do
Comércio, na margem do rio Tejo, em cujo pequeno cais os barcos levavam
passageiros para Almada e arredores. Em número reduzido lá estavam mendigos,
bêbados, vagabundos perambulando pelas ruas do centro. Era evidente a pobreza e
a carência de recursos de parte da população.
A novela brasileira Tieta reinava absoluta no horário
nobre da televisão portuguesa. O país parava para assisti-la e tudo mergulhava
em profundo silêncio. Os noticiários pareciam produzidos em série para todos os
canais, tamanha era a semelhança entre eles, nos temas abordados, comentários,
posições. E apontavam para o rígido controle sobre as mentes e para a ausência
de liberdade de imprensa. Não adiantava mudar de canal. As “notícias” se
restringiam à rebelião de presos em Alicante, renúncia do presidente do partido
conservador inglês, visita de Mário Soares ao Japão, problemas internos no
Partido Comunista Português, subornos a juízes de futebol, furacão nas
Filipinas. Era o oligopólio dos meios de comunicação em carne viva. Como no
Brasil. Os telespectadores mergulhavam em sepulcral silêncio na sala, entre olhares
e expressões bovinas. Nada de questionamentos ou comentários críticos.
Erguido na colina do lado oposto ao Bairro Alto, misturada
às árvores, o castelo de São Jorge proporcionava vista privilegiada de Lisboa.
Entre os muros cobertos de ameias, escondiam-se jardins internos, muito verdes
e pitorescos. Além da exploração dos meandros do castelo, os bancos sob a
sombra permitiam descansar, ler, observar o movimento dos transeuntes no centro
da cidade, lá embaixo.
Segui ao bairro da Alfama, bem mais atraente que o Bairro
Alto. Becos mais estreitos, sinuosos e íngremes, casarões antigos distribuídos
em ambiente instigante. Como verdadeira viagem no tempo, tudo na Alfama era velho,
moradias, pessoas, lojas, adegas, casas de fado, restaurantes.
O número excessivo de carros não encontrava vagas
suficientes para estacionar. Sobravam para as calçadas entupidas de veículos e
para os coitados dos pedestres, ou peões, como se chamavam em Portugal, que
faziam malabarismos para vencer os obstáculos sem serem atropelados nas ruas.
Ao contrário dos demais países europeus que eu tinha
visitado em outras oportunidades, em Portugal as pessoas se notavam, se
olhavam, conversavam.
Passamos pelo parque Eduardo VII, cujo excesso de simetria
e a ausência de verde me deram vontade de sair logo dali. Almoçamos e jantamos
no restaurante favorito do casal, nos deliciando com caldeirada de cabrito e
arroz de mariscos. Entre as sobremesas, a maçã assada e o pudim de clara, lá
batizado de pudim molotov.
Com um colega mais jovem saí pela noite de Lisboa.
Percorremos o Bairro Alto, São Bento, Alfama, Chiado, onde ocorrera incêndio
criminoso havia poucos anos. A noite fervia no Bairro Alto, valorizado pela
fraca iluminação, pela disposição dos bares e restaurantes em becos estreitos e
curvos. Poucos olhares, muito desfile e exibição.
O clima quente e seco ameaçava mudar. Seria o fim do
veranico, ou do verão de São Martinho como denominavam os portugueses,
retornando ao outono propriamente dito. Almoçamos na casa de parentes deles.
Sentado na ponta da mesa lotada, o mais idoso estava em
fase adiantada de cegueira decorrente de diabete mal cuidada. Nem por isso
deixava de cantar louvores à ditadura de Salazar, que mergulhou o povo
português nas trevas da idade média durante várias décadas do século XX.
Segundo ele, e com a concordância da maioria dos presentes, foi um erro o fim
daquele regime após a revolução dos Cravos em abril de 1974. E também condenou
a “entrega”, pelo governo português, das colônias africanas aos “negros
selvagens”. Em voz sempre alta e pausada, aquele senhor insistia que os
portugueses e africanos viviam na maior felicidade e prosperidade antes
daqueles “equívocos políticos”.
Enquanto ele discursava, e a maioria ouvia e concordava,
eu aproveitava para mergulhar de cabeça na deliciosa comida portuguesa servida
em várias travessas sobre a mesa. E jamais deixava minha taça se esvaziar do
primoroso vinho tinto.
Mas as doces opiniões do saudoso da ditadura não duraram
para sempre. Alguém ligou a televisão da sala. Pronto, todos se calaram, todos pararam
de comer, viraram os rostos, deitaram olhares para a telinha. Pareciam
hipnotizados. Não importava o que era transmitido. Ninguém piscava ou
balbuciava nada. Os portugueses se calavam e se irritavam quando alguém ousava
abrir a boca.
À tarde comparecemos a festa de aniversário em casa situada no bairro de São Francisco. Muitos me cercaram
e me encheram de perguntas, a maioria sobre as telenovelas brasileiras,
expressões citadas pelos personagens, quem ficaria com quem no final da trama e
outras dúvidas vitais para o destino da humanidade.
Acabei por dormir ali mesmo. A dona da casa me indicou
quarto coletivo, acessado por escada estreita e íngreme de madeira. Colchões se
espalhavam pelo chão. Deitei no que me foi reservado. Os adolescentes
continuavam a festa lá embaixo, regados a muita bebida e música alta. Só
sossegaram no meio da madrugada e despencaram nos colchões completamente
bêbados.
Meus futuros companheiros de viagem me acordaram cedo. Encarei
o único banheiro da casa, escuro, sujo, com paredes semiacabadas, fedendo a
esgoto. O casal se sentou na frente do carro na viagem. Fiquei atrás ao lado de
uma senhora idosa que jamais abriu a boca.
O relevo mantinha-se ondulado, em terreno pedregoso, abrigando
esparsas plantações, oliveiras, parreirais, raras árvores frutíferas. Mesmo as
localidades próximas de Lisboa apresentavam-se pobres. O local do almoço, na
beira da estrada e tão elogiado pelo casal, não passava de espelunca suja,
desconfortável, com comida insípida. Até o vinho desagradou.
Embora simpático e hospitaleiro, o casal criava clima
pesado no carro, restaurantes, visitações. Para lá de histérica, ela só falava
aos gritos e se dirigia a todos como se fosse brigar. Extremamente nervoso e
cheio de tiques, ele fingia aceitar as loucuras da esposa. E arrotava alto, em
qualquer lugar.
Visitamos o enorme e impressionante mosteiro de Santa Maria
da Vitória, datado do século XIV. E passamos pelo deprimente santuário de
Fátima. Em amplo local de concreto, inundado de estacionamentos e vendedores
ambulantes de bugigangas religiosas, aquele cenário cinza com a estátua moderna
da santa no meio do nada doía aos olhos.
Seguimos, então, à casa de campo do casal. Localizada na
vila de Boleiros, a construção com rachaduras nas paredes caía aos pedaços de
tão velha. Por fora e por dentro acumulava-se sujeira e abandono, somada ao
frio cortante. Aquecimento de água, nem pensar.
Para espantar o frio mesmo dentro da casa, ele resolveu
acender o fogão à lenha. Verde ou úmida, a madeira queimada provocou muita
fumaça cobrindo tudo. Não se via mais nada dentro da casa. Então começaram as
tosses. As janelas e portas permaneciam fechadas. Até esquentou ligeiramente. Porém,
com os olhos ardidos e dificuldades de respirarmos, eles abriram as janelas e
portas, sempre aos gritos, desesperados. O vento dissipou a fumaceira, mas
trouxe novamente o frio que tanto queríamos evitar. A casa manteve-se aberta e
o fogão à lenha aceso. E, como resultado, o pior dos mundos, vento, frio,
fumaça. Sem falar no festival de gritos, agressões verbais, acusações mútuas do
casal pela desgraça alcançada.
O casal tinha dois filhos que passavam por dificuldades
financeiras. Com as respectivas esposas, ambos vieram jantar. Um calibrava
pneus em posto de beira de estrada. O outro se vangloriava de ter comprado um
carro velho por uma fortuna. A mulher de um deles ganhava misérias como caixa
de supermercado.
Embora de maneira alguma mal tratado ou desrespeitado, o
ambiente e o comportamento explosivo de todos, no entanto, me impediam de
relaxar.
À noite, ela serviu deliciosa costeleta de porco e purê de
batatas, regada a vinho tinto soberbo, adquirido por ele junto a antigos
colegas de seminário. O desconforto das gritarias, discussões enfurecidas,
fumaça, frio, se evaporaram diante daquele autêntico banquete interiorano.
Não demorou muito a ligarem a televisão. Acabaram-se os
gritos e brigas, mas também as conversas. Todos prenderam a respiração. Não
pronunciaram nenhuma palavra. Não importava o programa em exibição. Quem
cometesse o crime hediondo de falar algo seria logo repreendido com gritos e
acenos nervosos.
Os gêmeos e as respectivas se retiraram, as luzes se
apagaram, a casa mergulhou no silêncio. A vila não produzia um som sequer.
Depois daquele dia repleto de emoções, adormeci instantaneamente. Nem notei se
a fumaça ainda persistiu por muito tempo.
Passamos por Alcobaça, sede de imponente monastério
construído no século XII. Ele lembrou os tempos de seminarista e, enquanto
percorríamos os interiores da maravilhosa construção, discorreu sobre fatos da
história de Portugal.
Depois, Nazaré, na beira do mar e de altos paredões
rochosos. O tempo cinzento não ofuscava o charme das praias, dos barcos de
pescadores ancorados na areia. No cume dos rochedos ainda se viam raras viúvas,
inteiramente de preto, insensíveis ao vento frio, de cabeças cobertas, com os
olhos esbugalhados voltados para o alto mar. Esperavam os maridos desaparecidos
há anos, ou décadas, sob as águas.
O castelo de Óbidos abrigava cidadezinha entre as
altas muralhas de proteção erguidas contra invasores de outros tempos.
Construída em estilo barroco, a vila parecia de brinquedo, toda certinha, bem
conservada, bem cuidada. Escolas, comércio, posto de saúde, bancos, serviços em
geral, garantiam a relativa autossuficiência dos moradores. Caminhei por sobre
as ameias da fortificação, observando o movimento da população nas casas e ruas
estreitas.
continua...
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