...continuação
Subimos no barco rumo a Svolver, ao norte. O tempo nublado
e chuvoso mais a proximidade da costa fez a embarcação balançar. Após a chegada,
enquanto aguardávamos o próximo barco, entramos em pub a fim de nos protegermos
do mau tempo. Sentamos com três garotas alemãs divertidas, pedimos apenas uma
bebida para não gastar muito. Enrolamos como pudemos. Contamos histórias,
piadas, debochamos. O inglês mais tímido e recatado se escandalizava com nossas
falas e ações, alegando que o deixávamos embaraçado. Todos riam ainda mais,
inclusive o outro inglês, falante e descontraído.
Nova partida em barco quase à meia noite. O tempo ruim
continuava e a rota se aproximava à linha da costa, provocando fortes
oscilações em meio às ondas altas formadas no mar. O pior trecho, até a
conhecida Stamsund, causou ataques de mal estar na maioria dos passageiros.
Muitos corriam aos banheiros para vomitar o que tinham e o que não tinham no
estômago. Exibiam expressões de pânico, faces pálidas e esverdeadas. Nem as
instruções de se manterem deitados nos pisos acarpetados amenizava a situação.
A todo instante alguém se levantava e, com as mãos na boca, cambaleante, se
dirigia rapidamente ao banheiro mais próximo. Eu me estendia no carpete,
tentava conversar, respirava fundo. Enjoei também, mas sem vomitar. O inglês
recatado era, disparado, o que mais sofria. Mas nunca se esquecia de pedir
desculpa e licença antes de fugir para o vaso sanitário, de quem se tornou o
maior companheiro na viagem.
Embora tentássemos adormecer, nada do sono envolver e
afastar momentaneamente daquela tortura. O barco levantava a proa, voava sobre
as ondas, depois despencava novamente, batendo violentamente contra as águas.
Logo em seguida começava tudo novamente. Mesas e cadeiras das áreas sociais do
barco prendiam-se ao piso por molas de aço, o que as impedia de sumirem pelos
ares.
Após a escala em Stamsund, no meio da madrugada, o barco
tomou rota afastada da terra, enfrentou águas mais calmas e a paz voltou a
reinar. Usei a bagagem como travesseiro e consegui dormir. Os demais passageiros
também desmaiaram de cansaço.
Desembarque pela manhã, sob o céu escuro e ameaçador, na
cidade litorânea de Bodo, grafada com o segundo “o” cortado em diagonal.
Ventava e chuviscava de maneira intermitente. Sem descansar dos dois
desgastantes percursos de barco, do arquipélago das ilhas Lofoten ao
continente, nós embarcamos em trem com destino a cidade de Trondheim.
A diversificada paisagem evoluía entre montanhas, vales
profundos, rios, lagos, fiordes esverdeados. Vales separavam vilas, bosques de
pinheiros, trechos pedregosos e cobertos de vegetação rala amarelada ou
alaranjada. Os rios alternavam entre caudalosos, verdes, cobertos de espessa
neblina, e acinzentados e cheios de cascalhos.
Conversei bastante com os ingleses, sobretudo com o mais comunicativo.
Desprendido e desapegado de posses materiais, ele planejava diversas viagens à Europa,
África e Ásia. As norueguesas dos vagões do trem eram demasiadamente loiras, quase
transparentes, de rostos e corpos arredondados, estaturas baixas, troncudas. E jamais
sorriam ou se interessavam em conversar com estrangeiros.
Após quase vinte e quatro horas de viagens em dois barcos
e um trem, desembarcamos em Trondheim à noite. A compensação veio com o
excelente albergue da juventude, grande, impecavelmente limpo, tranquilo.
Poucos hóspedes ocupavam as dependências, dando para escolher a cama nos
quartos coletivos. Os dois ingleses preferiram seguir adiante.
E o café da manhã fez jus ao todo, servindo diversos tipos
de iogurtes, pães, tortas, frutas, queijos, cereais, sucos. Os ovos cozidos
eram separados pelo tempo de cozimento, 1 minuto, 3 minutos, 5 minutos, 7
minutos. E o banquete estava incluído na salgada diária, bem norueguesa.
Trondheim alegrava-se naquela manhã de sábado com muita
gente circulando nas ruas e praças. Diversos trechos contavam com moradias exclusivamente
de madeira, recém-pintadas, com vasos de flores nas entradas. A colina a oeste
proporcionava visão ampla e privilegiada da cidade. As residências construídas
nos altos eram brancas, de madeira, em sobrados, exibindo janelas com cortinas
e pequenas floreiras debruçadas na calçada. O dia nublado e com pouca luz
ofuscava a beleza do fiorde situado entre a cidade e o mar. Datada do século
XI, a imponente catedral impressionava mesmo com a falta de luz nos interiores,
evidenciando a atmosfera medieval e as pedras expostas.
Encontrei chilenos exilados durante manifestação de rua contra
a ditadura militar do Chile, que massacrava o povo graças ao apoio direto do
regime dos Estados Unidos. Informações esclarecedoras denunciavam a presença de
dezenas de milhares de chilenos obrigados a morar fora do país em virtude de
perseguições, torturas, assassinatos cometidos pela ditadura.
Cansado de comer sanduíches de itens dos supermercados,
encarei pizza rápida no almoço e sanduíche com fritas em lanchonete no jantar. Gastei
muito, sem por isso ficar satisfeito e bem alimentado. E a proximidade de Oslo,
a capital norueguesa, fazia os preços subirem ainda mais.
À noite, como nas demais cidades pequenas, médias e até
algumas grandes, da Escandinávia, tudo ficava deserto. Ninguém nas ruas,
praças, restaurantes e lanchonetes em pleno verão norueguês. A fim de fugirem
da atmosfera triste e pesada, espantar a solidão, os noruegueses de Trondheim
lotavam as inúmeras máquinas de caça-níqueis, espalhadas nos quatro cantos da
cidade. E, é claro, não faltavam os bêbados solitários, perambulando com
garrafas nas mãos. Às vezes cantavam, às vezes pediam dinheiro, às vezes perturbavam
os raros transeuntes.
A caminhada sob a chuva fina do albergue à estação ferroviária
me deixou arrepiado de frio. E, com as roupas molhadas, embarquei pela manhã
rumo à capital norueguesa.
O serviço a bordo do trem vendia salgadinhos, sanduíches,
refrescos, a preços absurdos, regra nos trens europeus. Reparei em diversos
noruegueses, homens e mulheres, novos e velhos, o movimento repetido e nervoso
de, subitamente, abrir a boca, inspirar e expirar rápida e intensamente. Nas
primeiras oportunidades, distraído, me assustava, pois parecia que fariam, logo
em seguida, algo brusco e violento.
E a paisagem continuava a dar espetáculos. Altas
montanhas, muitas cobertas de neve, vales profundos com cascatas e pequenas
cachoeiras, planaltos, velhas cabanas de madeira. A vegetação escassa e
amarelada rareava nas alturas junto à neve permanente. Nas regiões mais baixas
predominavam bosques, pequenas plantações, chácaras. Dava vontade de
desembarcar e seguir a pé, a fim de apreciar tudo lentamente, sem pressa,
degustando, sobretudo entre Oppdal e Dombas. Após Lillehammer, o relevo
aplainou-se e um lago grande e alongado surgiu a oeste.
No meio da tarde desembarquei na estação ferroviária de
Oslo. De bonde cheguei ao albergue da juventude. Reencontrei os dois ingleses e
o casal alemão que se recusara a embarcar no porto de Narvik. A boa recepção dos
colegas aliviou o atendimento rude e grosseiro da recepção do albergue. O
funcionário odiava responder perguntas, exibindo expressão enojada, não fazendo
questão de esconder o racismo guardado. A diária em quarto coletivo era a mais
cara já vista na Europa.
Sobretudo na zona central, Oslo mostrava-se confusa,
poluída, barulhenta. O tráfego incomodava, obras dificultavam a circulação de
pedestres. Motoristas infringiam as leis estacionando os veículos nas calçadas.
Bêbados abundavam pelas ruas e estação ferroviária. Jovens vestindo roupas
rasgadas e sujas juntavam-se em bandos pelas esquinas. E o tempo,
invariavelmente cinzento, não ajudava em nada. Destino de asilados em geral, a
capital exibia rostos de refugiados do Paquistão, Sri Lanka, de países
africanos e americanos.
O extenso parque Frogner destoava do cenário desolador da
cidade. Gramados sem fim, árvores simetricamente plantadas, bancos
estrategicamente posicionados. Muita paz e tranquilidade em meio ao verde
intenso. Em obeliscos ou estátuas, as obras de artista plástico norueguês se
destacavam na parte central do parque. Apesar do frio cortante e úmido, eu adorava
perambular pelos vazios daquele oásis de sossego. Outros parques menores
mostravam que, pelo menos nisso, Oslo estava de parabéns.
A cinco quilômetros do centro, em meio a bucólico parque,
o museu Viking guardava navios naufragados e resgatados no final do século XIX.
Eram embarcações datadas do ano 900 antes de cristo. Valia a visita apesar de
apenas dois navios inteiros e peças mal conservadas nos interiores.
Última noite na cidade mais cara do país mais caro da
Escandinávia. Decidi me esbaldar e comer bem. Optei por restaurante de comida
italiana. Nada de lanchonete ou comida rápida. Restaurante italiano legítimo,
com cheiro de comida de verdade. Escolhi talharim ao sugo com fatias de
calabresa, mais travessa de pães italianos para acompanhar e reforçar. Molho de
tomate de verdade, nada de creme ou concentrados insípidos. Saboroso. Lambi os
beiços, esfreguei as fatias de pão no prato até ele ficar bem limpinho. Gastei a
fortuna mais bem gasta da viagem. Despedida perfeita da hostil e sombria Oslo,
mas também da bela e cara Noruega.
Embarquei cedo em trem à cidade sueca de Gotemburgo. O
relevo do sul da Noruega apresentava-se ondulado, com pequenas chácaras,
plantações, poucas fábricas. Em áreas não povoadas, extensos bosques de
pinheiros. O tempo claro e ensolarado finalmente voltara. Já em território da Suécia,
a nova cobradora do trem, agora sueca e trabalhando em companhia da filha,
exibia expressões mais leves e alegres.
Desembarquei no meio do dia em Gotemburgo. Atravessei correndo
a rua em frente à estação para pegar o bonde até o porto. O horário
extremamente apertado me deixava apreensivo. A condutora me orientou onde eu
deveria descer, sempre sorrindo e me tranquilizando que eu chegaria a tempo.
Desembarquei na boca do porto. A balsa já apitava. A sueca da bilheteria me
aconselhou a correr e pagar a passagem a bordo. Atravessei a ponte de embarque
no exato momento que o marujo se preparava para retirá-la. Se perdesse aquela,
eu teria que esperar horas, complicando as conexões seguintes.
Em meia hora de retorno à Suécia, comprovei a solicitude e
educação dos suecos. Definitivamente não sentiria saudades dos noruegueses. Menos
ainda dos finlandeses.
Depois que a balsa atracou no meio da tarde, eu já andava em
solo dinamarquês, na cidade de Frederikshavn. Caminhei à estação ferroviária, com
tempo suficiente de pegar o trem para Aalborg. A paisagem plana cortada pela
ferrovia agradava pelas pequenas casas esparsas nas plantações e chácaras. Grandes
hélices metálicas coletavam energia eólica. A tênue luz do entardecer realçava
os contornos.
Já em Aalborg, peguei ônibus urbano ao albergue da
juventude. Tomei banho reconfortante, guardei as coisas no armário individual
do quarto e me dirigi ao centro da cidade para saciar minha fome daquele dia
sem almoço.
Dividida em duas pelas águas do fiorde, Aalborg contava
com movimento agitado de pessoas e veículos, conquistando pela harmonia do
urbanismo, construções antigas, ruas estreitas e sinuosas, tudo enfeitado e bem
conservado. Não faltavam no centro bares, restaurantes e pubs, ao longo de
calçadão exclusivo para lazer noturno, colorido, aventando grandes noitadas.
As dinamarquesas agradavam aos olhos, sobretudo se
comparadas com as troncudas norueguesas. Porém eu ainda não estava diante de
beldades irresistíveis. De qualquer maneira, a atmosfera geral passava mais
descontração e leveza que a Noruega.
Os vagões do trem com destino a Copenhague lotaram e
oscilaram bastante sobre os trilhos. E fez-se a luz! Não mais que de repente, para
a felicidade geral da nação, a porta da cabine abriu. E entrou a condutora para
conferir os bilhetes. Vinte e poucos anos, cabelos lisos e dourados, olhos
claros, traços delicados, expressão jovem e alegre, sorriso natural, olhar oblíquo.
Mesmo vestindo terrível uniforme azul escuro, ela me fez esquecer a lotação, os
balanços fortes do trem, a frieza generalizada dos escandinavos. Loira com o
charme e a sensualidade de morena, simplesmente era a mulher mais bonita e
atraente de toda a viagem. Não me esqueceria dela tão cedo.
A monótona paisagem rural mantinha-se aplainada, com
plantações, chácaras, vilarejos minúsculos. O trajeto cansou pelas quase vinte
paradas até a capital, pela cabine cheia, abafada e carente de boas conversas. Fazendo
frio ou calor, os dinamarqueses vestiam longos casacos ou jaquetas. E, tão logo
entravam na cabine do vagão, fechavam janelas e portas, ligavam o então
desnecessário aquecedor. O mesmo valia para os ônibus.
Depois da parada na cinzenta Arhus, a densidade
populacional cresceu com mais vilarejos e plantações na ilha de Funen, unida
por ponte à porção norte do país, chamada de Jutland. Os bosques já não eram
comuns. Escala na cidade de Odense, com melhor aspecto que a anterior Arhus. Em
travessia demorada, o trem subiu em balsa a fim de ser transportado até a ilha
de Zealand. Antes, a composição se dividiu em várias partes que se juntariam do
outro do lado do mar. Os passageiros aproveitaram e desembarcaram rumo ao bar,
restaurante, áreas de lazer.
E a cabine permanecia lotada, majoritariamente de idosos
mal humorados.
Depois de horas de percurso cansativo, desembarquei na
estação ferroviária de Copenhague. Na plataforma procurei pela estonteante cobradora
vestida de azul escuro. Em vão.
Desta vez optei pelo albergue mais distante, porém
superior em tudo ao desorganizado do centro. Até o atendimento na recepção
indicava um estabelecimento decente. Sem falar dos quartos bem conservados,
banheiros limpos, hóspedes sociáveis. E mais barato.
Reencontrei a colega, dinamarquesa legítima, junto da qual
fiquei até altas horas da madrugada, entre conversas e impressões. Embora
exageradamente inquieta e carente, se tornou companhia agradável naquele final
de viagem. À noite, o numero de bêbados crescia vertiginosamente, cambaleando
pelas ruas e calçadas, gritando alto contra tudo e todos.
No dia seguinte ela e eu fomos a Roskilde, cidade com o
fiorde e a catedral onde estavam enterrados os antigos reis da Dinamarca.
Permanecemos apreciando o verde e a paz em parque próximo.
As escandinavas ocupavam diversas funções de trabalho,
antes consideradas exclusivamente masculinas. Adiante da maioria dos países do
mundo, elas dirigiam ônibus, metrôs, bondes, trens, máquinas perfuratrizes,
tratores, motores de embarcações de diversos tamanhos, veículo de carga.
Revimos pontos já conhecidos de Copenhague. Entramos no interessantíssimo
museu de holografia, e também no museu de Artes.
Me despedi da coleguinha ciente de que jamais nos veríamos
novamente.
Desembarquei em São Paulo em fins de setembro, depois de
um mês de viagem gratificante, mais pelos momentos e contatos humanos vividos do
que pelos lugares visitados.
Amigo!
ResponderExcluirColo meus olhos e minha mente nos teus relatos , vou apreciando as coisa lindas que descreve e analisando a vida de outros países com a nossa aqui no Brasil.
Com suas viagens, você vive experiências maravilhosas, sem falar do aculturamento e dos novos amigos. Tanta coisa vivida que devem lotar sua bagagem de vida. Abraços meus e até.
Oi Ivete, eu é que agradeço sua atenção, seus comentários, suas observações sempre pertinentes.
ResponderExcluirE me animo a viajar mais, relatar mais, publicar mais.
Sempre teremos impressões a compartilhar.
Obrigadão... Abraços!