Juntei desejos de explorar e repetir lugares visitados do
norte e nordeste do Brasil. Voltar ao exterior ainda não me animava o
suficiente. De posse das milhas do programa de fidelidade marquei as passagens
aéreas para o início de janeiro.
Desembarquei à noite no aeroporto de Marabá sob o calor
pegajoso e céu estrelado. Os carapanãs, fortalecidos pelo abafamento do quarto
do hotel, me recepcionaram com dezenas de picadas.
Amanheceu abafado. Nenhuma brisa entrava pela janela
telada. Sete baratas mortas secavam na sacada com vista para quintais sujos de
entulhos.
Marabá fora forçadamente dividida em três partes, Marabá
Pioneira, Cidade Nova e Nova Marabá, após as enchentes dos rios Itacaiúnas e
Tocantins em 1979. Havia significativo intervalo entre as partes, que não se
juntavam. Ninguém se dirigia a pé de uma para outra. O calor, a ausência de
sombras, o vazio, a insegurança, impediam tais ousadias. Os moradores só se
locomoviam de transporte individual, ônibus, táxi-lotação, moto-táxi.
Das três partes, apenas a Velha Marabá, ou Marabá
Pioneira, se salvava, exibindo cara de cidade comum, cidade normal. Contava com
orla urbanizada na margem esquerda do rio Tocantins, ao longo da qual a vida
noturna agitava entre bares, restaurantes e baladas. O sol castigava, mas as
coberturas da orla fluvial garantiam a sombra e a possibilidade de contemplar o
visual. O rio Tocantins, já bem alto, impedia o aparecimento de praias. O velho
flutuante abria para apenas uma mesa ocupada entre os dois níveis de lazer.
Nova Marabá, onde me hospedei sete anos antes, o pedaço
mais horroroso e caoticamente espalhado dos três, comportava o principal
terminal rodoviário da cidade, entre avenidas desoladas com cara de estradas,
espaços vazios, galpões, bairros repugnantes, hotéis e restaurantes isolados e
deprimentes.
A Cidade Nova, onde fiquei dessa vez, fora construída na
margem esquerda do rio Itacaiúnas, mais ou menos na altura de Nova Marabá. De
urbanismo nitidamente artificial, carecia de humanidade e bom gosto. O traçado
quadriculado comportava poucas áreas verdes e nenhum charme. Mas conseguia a
óbvia proeza de ser mais suportável que a assustadora Nova Marabá.
Terra de imigrantes, Marabá guardava um mosaico de
aspectos físicos, extremamente diversificados, para todos os gostos, circulando
para lá e para cá, sem falar na influência dos funcionários do complexo mineiro
de Carajás, não muito distante dali.
Como na maioria das cidades brasileiras do norte e
nordeste, Marabá fervia de gente à noite, mesmo num meio de semana. Pelo menos
na Cidade Nova, a concentração era ao redor da praça, com bares e restaurantes,
mas principalmente ambulantes vendendo comes e bebes. Ampla variedade de
idades, tipos, roupas, comportamentos e objetivos entre os frequentadores.
Quente e abafada, aquela noite da praça não encerraria tão cedo tal o intenso
vaivém.
Fui ao ponto onde o rio Itacaiúnas desemboca no Tocantins,
exatamente no vértice da Velha Marabá. O nível das águas naquele janeiro estava
bem alto e subindo. Os barracos de madeira mais baixos sentiam a invasão das
águas no meio da pobreza, miséria e abandono. Almocei caldeirada de pirarucu,
preterindo, com dor no coração, a sempre estupenda galinha ao molho pardo. Seis
xavantes puríssimos almoçavam na mesa ao lado. Conversavam na língua própria
entre garfadas volumosas.
Baixei na estação ferroviária de Marabá no meio da tarde.
Troquei papos e ideias com os que também aguardavam, enquanto a estação
permanecia fechada, inclusive os acessos a banheiros, lanchonete e bancos para
descansar. Extensos trens de carga passavam pela linha levando ao exterior, a
preço de banana, as riquezas minerais de Carajás. Mais tarde o Brasil
importaria, a preços altíssimos e impostos pelos oligopólios, produtos que
utilizavam os minérios brasileiros, escancarando a divisão mundial de trabalho
estabelecida pelo capital. Ao Brasil restava a posição de exportador de
matérias primas a preços baixos.
Com os sistemas ligados, os funcionários da bilheteria liberaram
a entrada, estourando a boiada, para aí, somente aí, se formar a fila.
Empurra-empurras, princípios de bate-bocas, dispersados rapidamente em função
do objetivo maior, a compra das passagens. Apenas um funcionário atendia na
bilheteria. A fila quase não andava, enfurecendo cada vez mais os já mal
tratados usuários. Todos bufavam impacientes. Uma hora e meia de espera depois,
e somente vinte pessoas atendidas, chegou minha vez. Tortura típica da
Transnacional Vale, privatizada na década de 1990 a preço muito abaixo do real,
em processo questionado judicialmente por inúmeros movimentos sociais.
No dia do embarque, centenas de passageiros se aglomeravam
nas vias de acesso à plataforma.
A classe executiva oferecia dois assentos confortáveis de
cada lado do corredor. O assento ao meu lado não foi ocupado, me permitindo
relaxar à vontade. Ar condicionado no limite de tolerância, televisores
espalhados transmitindo documentários da TV Futura, um longa-metragem infantil,
outro lixo comercial para adultos, ambos de origem estadunidense. A programação
era periodicamente interrompida para avisos gerais. Havia quatro vagões da
classe executiva e quase vinte da classe econômica, esta completamente lotada.
As janelas da classe executiva não abriam e contavam com papel filme nos
vidros, dificultando a visão da paisagem. O jeito era se postar na extremidade
do vagão e contemplar a paisagem entre bons papos com os demais passageiros.
Aliás, o local aberto e ao lado dos banheiros, tornou-se ponto de encontro e de
lazer descontraído. Enganei o estômago com castanhas, bolachas, maçãs, barras
de cereais. Não precisei comprar nada no trem.
A paisagem, aplainada a levemente ondulada, incluindo
serrotes no trecho maranhense, evoluiu de floresta, praticamente toda destruída
e transformada em áreas improdutivas, a campos de babaçus e outras palmeiras. Raríssimas
plantações de subsistência ou então as deploráveis monoculturas de eucalipto,
envenenando o solo, secando os lençóis freáticos, expulsando a fauna e flora
nativas. Vilarejos minúsculos, invariavelmente de casas de taipa, miseráveis,
apareciam esparsamente, exceção feita às cidades de porte médio, como
Açailândia e Santa Inês.
As plataformas da maioria das estações mediam menos que o
comprimento de um vagão, possuindo nada mais que a cobertura de referência no
meio do nada. Caminhonetes ou furgões esperavam ao lado das estações os que
desembarcavam para transportá-los feito animais sei lá para onde.
Nove estações e nove horas depois de deixar Marabá, o trem
parou na estação de Santa Inês, bem distante da cidade e sem transporte público
urbano.
Em frente à estação, logo após o trem parar, taxistas,
motoristas de ônibus de linhas clandestinas, condutores de moto-táxi,
caminhonetes, veículos em geral, começaram a gritar na disputa por passageiros
rumo a variados destinos, próximos ou distantes, como Timom na divisa com o
Piauí e Maracaçumé na divisa com o Pará. Eram ônibus podres, caindo aos
pedaços, sem as mínimas condições de conforto e segurança. Logo lotaram de
pobres coitados. Havia gente sentada nos bancos duros, mais passageiros em pé,
esmagados, sufocados, se preparando, por bem ou por mal, para enfrentar as horas
de horror nesse Maranhão do século XXI.
Subi em táxi-lotação, rateando o valor da corrida e
amenizando a facada.
Sob a chuva fina, à procura de algo substancioso para
comer na região central de Santa Inês, avistei uma pizzaria precária. Tentei
esclarecer o tamanho das pizzas com o rapaz que me atendeu:
--
Qual a diferença entre a pizza pequena e média?
-- ...
Nenhuma... A pizza é a mesma... Só o preço que é diferente.
-- Mas
qual a diferença de tamanho entre elas?
-- ...
Uma é maior que a outra... Tem a brotinho que é bem pequena, a pequena que é um
pouco maior, e a média que é maior que a pequena.
E quanto mais eu observava o ambiente, as mesas, os
garçons, partes da cozinha, mais eu concluía que devia relaxar, olhar para rua,
não analisar nada e esperar acontecer. A pizza veio com aspecto e gosto de
papelão, mas saciou minha fome atrasada.
Dei breve giro pelo centro da cidade, entre bares e
ambulantes que vendiam comes e bebes. Em tudo se evidenciava que eu estava
realmente no Maranhão, tal o desleixo, a pobreza do geral e dos detalhes. O
maranhense sempre emigrou e continuava emigrando para outros estados, em
grandes quantidades, não por um suposto espírito aventureiro ou empreendedor,
mas porque em qualquer lugar fora do Maranhão eram melhores as condições
sociais. E vivas ao cinquentenário do poder formado pela família Sarney, o
agronegócio e as transnacionais, se enriquecendo a custa da miséria dos
maranhenses, massacrando o povo sem dó nem piedade.
Típica cidade comum do Maranhão, de porte médio, Santa
Inês nada oferecia de atraente, exceto o povo hospitaleiro e prestativo, a
despeito da rudeza inicial.
Ao tentar comprar passagem de ônibus para o sul do estado,
via cidade de Grajaú, o sujeito da bilheteria me desencorajou:
-- Por
ali não passa nada não. Os índios e os ladrões não deixam.
-- Mas
nem de dia?
--
Nenhum horário. Nem linha de ônibus existe por ali. Somente caminhonetes e,
mesmo assim, escoltados e bem armados.
A feira semanal em frente à Matriz de Santa Inês dava dó.
Os poucos produtos oferecidos e a baixa qualidade deles refletiam a situação
social desesperadora do povo da região. E isso em cidade de quase cem mil
habitantes. Com certeza, os indígenas que supostamente bloqueavam o tráfego de
veículos na rodovia para Grajaú viviam infinitamente em melhores condições
humanas, sociais e materiais antes da invasão do homem branco, especialmente os
latifundiários do agronegócio, aliados do grande capital e da família Sarney.
Na vizinha cidade de Pindaré Mirim, às margens do
sinuoso rio Pindaré, o ponto de referência era a enorme chaminé de antigo
engenho de açúcar, com tijolos à vista, desativado e abandonado. Outras
construções, em ruínas, apareciam nas proximidades. Atmosfera relaxante na
beira do rio, com bares e um restaurante flutuante. Canoas transportavam
passageiros e cargas de uma margem à outra. Pequena feira de aspecto miserável
oferecia peixes frescos. Nas sombras das árvores próximas ao rio, jogadores de
baralho ou dominó e grupos de bêbados passavam o tempo da única maneira que podiam.
Cabanas de palha ou taipa se espalhavam por ali. Jegues puxavam carroças carregadas
de troncos e galhos de árvore, ou com mudanças residenciais completas.
continua...
Prezado Viajante...ler tuas histórias é como ir junto com você na viagem, dada a riqueza de detalhes. Estou lendo esta viagem e estou encantada... Devo dizer que eu não abriria mão da galinha ao molho pardo - pois adoooooro demais. Vc poderia ficar com o pirarucu todo para você. Sobre o Maranhão..é uma lástima e revoltante, estar em condições tão empobrecidas. Como você mesmo diz, essa família Sarney detém o poder e usufrui das benesses à custa do sofrimento do seu próprio povo. Continuarei a ler e vou comentando. Beijo.
ResponderExcluirPS: Dei risada na parte da pizza...mas, vc sabe, quem tá chuva é prá se molhar...rs
ResponderExcluirCaldeirada de Pirarucu ou Galinha ao Molho Pardo? Eis a questão...
ResponderExcluirJá pensou se tivesse uma terceira opção, do tipo Filhote no Tucupi? Aí eu ficaria literalmente deprimido por não poder comer essa também!
Grande, comecei a ler seu blog hoje e estou adorando, gostaria de esclarecer que aqui em grajaú, onde moro tem linhas de onibus sim, e varias,uns dos melhores trechos de brs, que cortam o maranhão,k quanto aos índios, são casos isolados.
ResponderExcluirOi Gilmar, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirAntes de mais nada, eu adoro o Maranhão, capital e interior, e o povo maranhense. Não é à toa que viajei tantas vezes ao estado e pretendo voltar muitas mais.
Essas informações que coloquei no blog eu recebi na rodoviária de Santa Inês, dos funcionários da Transbrasiliana. Eles garantiram que as linhas para Grajaú foram canceladas. Eu queria muito ir a Grajaú, mas viajava sem carro. E como não tinha uma versão diferente dos fatos, preferi tentar outras linhas de ônibus para o sul do Maranhão. Pena, né?
Um grande abraço para você e comente sempre!
Cara, as viagens sao sensacionais , se pudesse viajaria mais. Esse trajeto saindo do Para me animou, moro em Belém, quem sabe posso pensar nessa ideia.
ResponderExcluirGostei muito de outro blog que vi antes, http://www.viagensonibus.com.br/, fica ai um local com mais dicas nas materias lá
abs
Olá, obrigado pela visita e pelo comentário.
ResponderExcluirNeste blog, entre outros temas, reflexões e fotos de minhas viagens pelos interiores do Brasil e de outros países da América, Europa e Ásia, contendo questionamentos e análises sociais e ambientais.
Fique à vontade para pesquisar, ler, comentar, divulgar. Boas leituras!!!
Abraços!!!
Depois de um longo tempo volto aqui para viajar um pouco nos teus interessantes relatos.
ResponderExcluirOi Sônia!
ResponderExcluirSeja bem-vinda de volta.
Pois viaje bastante por eles. Essa viagem dividi em seis partes os relatos. Modéstia á parte, gostei do resultado.
Comente sempre!
Da vontade de ir agora, me refazer, maravilhas
ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Vá sim..logo. Enquanto não for, se delicie com os relatos dessa e de outras tantas viagens que realizei pelos interiores do Brasil e de outros países.
E comente sempre!
Pois é.....Como um homem que chegou a Presidente da República pode deixar o Estado em que nasceu em situação de penúria? Um dos maiores índices de analfabetismo do Brasil...
ResponderExcluirEstive no Maranhão há muitos anos atrás. Na ocasião, muitos prédios históricos desabaram em função das chuvas. Percebi o poder de determinadas familias in loco, ningúem me contou...
Falta patriotismo e amor para muitos que nasceram no país. Como dizia a personagem de TV..."Prefiro não comentar"!
Oi Vagner!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
A miséria do povo maranhense enriqueceu a família dele e, principalmente, a classe a qual ele pertence. Não muito diferente dos outros estados do Brasil.
Vamos mudar isso!
Comente sempre!