...continuação
Chegada ao refúgio Grey, na margem gelada do lago de mesmo
nome e com pedaços flutuantes de gelo. Desta vez não houve estadunidenses
prepotentes e as reservas nos quartos coletivos se mantiveram. Muitas árvores
enfeitavam as redondezas do refúgio, mas durante a noite o frio não permitia
relaxar do lado de fora. O grupo se retirou cedo para compensar a noite anterior
mal dormida.
Pela manhã caminhada à frente da geleira Grey, enorme
formação de gelo entre blocos rochosos, que nascia na região do gelo
continental e se desprendia lentamente nas águas do lago.
Da geleira Grey, passagem pelo refúgio e caminhada ao lago
Pehoé. Novas rajadas de vento pelo caminho em meio a visual impressionante das
geleiras e dos lagos. E, finalmente, hospedagem no refúgio Pehoé, a última
noite depois do sexto dia de travessia pelo parque nacional Torres Del Paine.
Na manhã seguinte, o barco no cais da ponta do lago Pehoé.
As últimas olhadas serviram de despedidas de região tão fascinante. Horas
depois por estradas do extremo sul da América, novamente a fronteira da
Argentina.
Estadia em El Calafate, cidade metida a besta, porém bem
urbanizada e cheia de opções de bares e restaurantes. A avenida principal que
cortava a cidade de ponta a ponta cobria-se de lojas de roupas caras e
pretensiosas. Nem parecia que a Argentina estava mergulhada em crise profunda.
A taxa de conversão entre o peso argentino e o dólar estadunidense ainda estava
contida em 1 para 1. Os estabelecimentos comerciais aceitavam ambas as moedas.
Durante aqueles dias, vários presidentes argentinos se
sentaram e se levantaram da cadeira oficial. Ninguém fazia previsões seguras. A
incerteza pairava no ar. O garçom sexagenário do hotel, assim que servia a mesa
do café da manhã, se juntava aos demais empregados e colava o ouvido no rádio
da cozinha na busca de notícias alvissareiras. A maioria dos funcionários do
hotel, lojas e restaurantes andava cabisbaixo e preocupado. Os olhares
denunciavam a apreensão com os destinos do país e com o temor da situação
social piorar ainda mais. Não havia espaço para piadas ou brincadeiras.
El Calafate servia como base para visitar o glacial Perito
Moreno, distante poucos quilômetros da cidade. Da entrada, no alto do morro, a
pé pelas passarelas, dava para circular por entre os vários níveis de
observação. Ao descer as plataformas de madeira, mais se aproximavam os
paredões de gelo. A visão era deslumbrante da montanha de gelo, alta, extensa e
larga, que se debruçava sobre as águas. Vez ou outra, enormes pedaços se
desprendiam e despencavam nas águas, causando fortes estrondos. A imensa massa
de gelo, de tons azulados principalmente no miolo, se estendia a oeste, rumo ao
gelo continental e à fronteira chilena. Horas benvindas de contemplação.
Turistas de todos os tipos e idades se espalhavam por ali. Houve passeio de
barco até bem perto dos paredões.
À noite em El Calafate, durante o lauto jantar, não foram
poucas as garrafas de vinho consumidas. Além da qualidade do produto, das frias
temperaturas da noite, a garrafa do precioso líquido custava o mesmo que uma
xícara de café. Então, em vez de café, mais uma garrafa de vinho. Dólares
estadunidenses e pesos argentinos se misturavam na mesa no momento de pagar a
conta.
Pela manhã a caminhonete conduziu à cidadezinha de El
Chalten, às portas do parque nacional Los Glaciares e próxima das principais
montanhas da região.
El Chalten não era propriamente uma cidade. Ainda. Mas
pequeno conjunto de pousadas, hotéis, bares e restaurantes na margem de rio
pedregoso que corria no final de planície árida. Da estrada, mesmo distante, se
via o vilarejo, as montanhas nevadas e pontiagudas ao fundo. Restaurantes de
ótimo aspecto e preços altos apareciam aqui e ali.
Houve tempo suficiente para expedições à laguna Serena, à
base do cerro El Chalten (Fitz Roy), à base do cerro Torre, nos pés dos quais se
instalavam barracas dos acampamentos base, utilizadas principalmente por
escaladores. As caminhadas não cansavam muito, cruzando bosques fechados,
trechos mais secos, riachos parcialmente congelados. Nevou, nublou, garoou,
esfriou muito. De perto vi apenas as bases das montanhas, desimpedidas das
nuvens carregadas. Ventava furiosamente e não consegui permanecer muito tempo
nas proximidades.
As comemorações pelo novo ano ocorreram em hotel próximo.
Tudo simples, animado e espontâneo. Caminhantes se reuniram para beliscar e
beber vinhos.
Em meio a outros turistas, as conversas evoluíram para a
política mundial, com alguns argentinos e quatro suíços. Os quatro europeus questionavam
a ausência de democracia em vários países da América, a miséria, a corrupção, o
narcotráfico, as agressões ao meio ambiente. Avancei o debate no sentido de
analisar as causas e os agentes dos problemas. Citei as transnacionais químicas
e agrícolas suíças que atuavam impunemente pelo continente americano, agredindo
a natureza e explorando a mão de obra barata. Primeiro silêncio e mal estar dos
quatro. Também quis saber a posição deles frente ao então recente plebiscito
sobre a abolição do sigilo das contas bancárias nos bancos suíços. Eram lá que
os ditadores, assassinos, corruptos, megaempresários, traficantes do mundo
inteiro, depositavam as fortunas decorrentes da exploração dos pobres. Com esse
dinheiro os criminosos internacionais abasteciam a economia da Suíça. Os quatro
suíços não responderam e tentaram desconversar. Insisti. E, finalmente, admitiram
o apoio ao sigilo bancário dos bancos suíços. Apoiavam, portanto, a fuga de
capitais, sobretudo dos países mais pobres. Concordaram que mantinham e
desfrutavam do alto padrão de vida na Suíça graças à miséria de milhões de
pessoas pelo mundo afora.
Após o acampamento base do cerro El Chalten (Fitz Roy), trilha
para lá de íngreme rumo à laguna de Los Três, na base da montanha. Nevou na
subida e no nível da lagoa, sem falar no vento gelado. Mas o cenário fascinava.
Lagoa de águas azuladas, rochas negras e cinzentas, trechos de neve branca, a
montanha, faziam qualquer um esquecer a neve, o vento, o frio.
Já de volta a Buenos Aires, houve tempo suficiente para
dar voltas pela cidade, de noite e de dia, pelo centro antigo da capital, as imediações
da Casa Rosada. Esticada a San Telmo e Puerto Madero. Aquele último domingo na
Argentina seria também o último dia da paridade entre o dólar estadunidense e o
peso argentino. As ruas anunciavam informalmente a desvalorização de cinquenta
por cento do peso para o dia seguinte. Mas eu já estaria no Brasil.
Desembarquei em São Paulo em janeiro do ano seguinte. As
imagens da Patagônia, chilena e argentina, das montanhas nevadas, lagos, vales
e bosques impressionantes, do vento intenso sempre presente, não me sairiam da
lembrança. Assim como os rostos preocupados dos argentinos frente às trágicas consequências
do capitalismo no país que, como no mundo tudo, serve apenas a uma minoria,
local e estrangeira, lançando milhões de trabalhadores na pobreza.
Parabéns pelo blog e pelas publicações. Gostei dos relatos críticos sobre a Patagônia. Me animei bastante a conhecer lá, apesar do frio que deve ser de matar. Abraços e publique mais.
ResponderExcluirOlá, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirNo verão patagônico o frio não incomoda tanto, e sim o vento. Mas tudo fica em segundo plano diante daquelas paisagens deslumbrantes.
Fique à vontade para ler, comentar, indicar as demais publicações. Já averiguou os relatos e reflexões das inúmeras viagens que fiz pela Amazônia? Valem a pena serem lidos com calma!
Logo estarei publicando outros relatos. Aguarde.
Abraços