segunda-feira, 23 de maio de 2011

Patagônia - Chile e Argentina (parte 1/2)

Era alta temporada na Patagônia, ainda mais com as festas de natal e ano novo. Decidi encarar roteiro incluindo o lado chileno e argentino, com longas caminhadas às montanhas nevadas, visitas a vilas, glaciais e lagos.
Desembarquei em Buenos Aires em dezembro, justamente na noite seguinte às manifestações populares que expulsaram o presidente Fernando De La Rua. O povo argentino chamou a responsabilidade para si, se organizou e lutou, exigindo a renúncia de mais um fantoche do imperialismo, depois de sucessivos protestos de ruas, greves e passeatas. As ruas da capital se encontravam vazias. Vidros frontais de algumas instituições financeiras mostravam-se parcialmente quebrados. Pedaços de madeiras e tecidos queimados espalhavam-se pelas avenidas.
Em Rio Gallegos, extremo sul da Argentina, o furgão esperava no aeroporto. Apesar do sol e céu azul, o vento constante deixava tudo muito frio.
O veículo percorreu as estradas planas argentinas, cruzamos a fronteira do Chile, até Punta Arenas, na margem do estreito de Magalhães. Nem precisaria ressaltar o frio polar que baixava por ali. As altas latitudes, o vento que não sossegava um instante, transformavam o verão local em inverno. E a visita às areias escuras do gelado estreito de Magalhães durou o mínimo possível, o suficiente para olhadelas e registros fotográficos.     
No caminho ao parque nacional Torres Del Paine, uma reserva de pinguins. Na margem oposta do lago em Puerto Natales se erguiam as montanhas da cordilheira dos Andes.
Em área pertencente ao parque nacional, desembarque ao lado do refúgio Torres. O furgão ficaria por ali. De mochilas nas costas seguimos a trilha montanha acima, contra o vento e suave queda de neve.

Básico e de madeira, o refúgio Chileno garantiu o conforto necessário. Quartos amplos com beliches, sobre os quais eram desenrolados os sacos de dormir, banheiros coletivos com água quente, limpeza razoável, comida boa encomendada previamente. Mas o melhor, e o que eu já presenciara no Nepal, era o ambiente coletivo na sala de estar. Ao lado da lareira, turistas do mundo inteiro se distribuíam nas cadeiras e almofadas. Bancos de madeira do lado de fora, ao lado de rios encachoeirados vindos das geleiras acima, poderiam ser boas opções. Mas vento cortante e constante afugentava os oriundos de países tropicais.
O roteiro proposto era o chamado de “W”. A subida do refúgio Torres, passando pelo refúgio Chileno, até a base das Torres, compõe a perna oriental do “W”.
Bem cedo colocamos o pé na trilha em direção às famosas torres que dão nome ao parque nacional. Embora em subida constante e com trechos sobre blocos rochosos, a caminhada não chegou a cansar. As trilhas da Patagônia não atingem grandes altitudes, não provocam dificuldades de respiração ou prejudicam o rendimento físico. Atravessaram bosques, pequenas cascatas, campos abertos com visões de picos nevados, rios com corredeiras. A última subida, pela morena glacial, exigia mais cuidados para não escorregar nos enormes blocos de rochas justapostas. No alto, o relevo volta a descer ao lago do degelo e subir novamente a partir de onde se erguiam as três torres de pedra. Ao atingir a parte alta da morena, as nuvens cobriam as torres e os paredões ao lado. Mas em questão de minutos o vento as dissipou, e as torres se apresentaram imponentes bem à frente. Três enormes formações de rocha clara e maciça, pontiagudas, com pequenas nesgas de neve, se exibiam acima das águas acinzentadas do lago, desenhando imagem deslumbrante, chocante. E bem distinta dos Andes centrais.
Tempo de sobra no alto da morena. Comemos o lanche reparador. Inicialmente apreciamos aquela imponência sem mais ninguém, somente acompanhados da natureza. Depois o local se encheu de turistas. A maioria se calava diante das belezas naturais, não comprometendo a paz essencial à contemplação.  
Descida pela mesma trilha da subida, passando batido pelo refúgio Chileno. Parada no refúgio Torres, onde ficaríamos justamente a noite da véspera de natal. O refúgio serviu jantar no sistema de bufê, enriquecido de vinhos, espumantes e doces.
Bem cedinho, a travessia seguiu pela trilha na beira do lago. O visual se diversificava com bosques, campos, riachos cheios de pedras, pontes de madeira, morenas, encostas nevadas, picos rochosos, lagos de águas azuladas. As temperaturas durante o dia beiravam o agradável, sobretudo com o corpo em movimento. Eventualmente fazia calor, sob o sol, ou leve frio ao nublar e ventar.

Entre subidas e descidas pouco intensas, chegada ao refúgio Cuernos, na beira do lago, aos pés da imponente montanha de mesmo nome e em cujo topo a neve cobria a rocha negra. Rostos começavam a se tornar familiares devido às semelhanças de roteiro, ao mesmo ritmo. A morena inglesa, bonita e substanciosa, mereceu discretas atenções. E eu também não passara despercebido. Sutilmente, muito rapidamente, começou a me procurar com os olhos. Decidi degustar o flerte. E eu me divertia com os demais brasileiros, entre homens e mulheres, boas companhias de caminhadas. Além de comer bem, não dispensávamos o vinho chileno em todos os jantares. Servido em embalagem longa-vida para facilitar no transporte, a bebida ajudava a recuperar as energias e a descontração, entre goles e garfadas.
O quarto dia de caminhada foi o mais cênico de toda a travessia. Ainda próxima às águas dos lagos ao sul, a trilha ofereceu ramal transversal. Era o vale Francês, a perna central do “W”, que dava acesso ao acampamento Britânico, nas cabeceiras do riacho parcialmente congelado que acompanhava ao lado. Ventava terrivelmente. Nevava esporadicamente. O frio castigava mais à medida que o relevo subia. Imensos glaciais se assentavam nas paredes negras da montanha do lado oposto do vale Francês e atingiam o riacho. A imagem impressionava com o contraste entre o branco da neve e o preto das rochas. A vegetação, inicialmente composta de bosques, tornava-se mais rala vale acima. Pude avistar também a encosta leste do vale, acima da trilha, formada por agulhas rochosas e outras formações inusitadas. As pontas acinzentadas a levemente acastanhadas se projetavam no céu azul e criavam paisagens inóspitas e fascinantes. Sensações de estar em outro planeta. O vento insuportavelmente forte e o frio cortante castigavam sem dó.
De volta à trilha principal, o vento prosseguia a todo vapor, sobretudo nas proximidades do lago Pehoé, local de refúgio de mesmo nome e parada para aquela noite. Porém, inexplicavelmente, o refúgio aceitara mais reservas do que a capacidade normal. E já estava lotado. Um grupo de estadunidenses provavelmente subornara o administrador do refúgio, ocupando integralmente as dependências internas, expulsando os demais caminhantes, ainda que tivessem as reservas confirmadas várias vezes. Os cúmplices chilenos daquele escândalo talvez esquecessem que o regime do país de origem daqueles turistas preparou e organizou o golpe civil/militar de 11 de setembro de 1973, mantendo e financiando a ditadura por dezesseis anos, perseguindo e matando o povo chileno.

A alternativa foi em barracas para duas pessoas na beira do lago. Sempre adorei acampamento, ainda mais em meio à natureza tão privilegiada. Mas ficar em barracas iglu, altas e sem estabilidade, nas margens de lago de onde açoitava vento intenso e constante, não tinha a menor graça. Banheiros, somente os frios do acampamento. As dependências internas do refúgio eram liberadas apenas durante o jantar previamente encomendado. Nem bem acabamos de comer, fomos convidados a nos retirar e liberar espaço aos invasores estadunidenses. Durante a noite, o tecido da barraca, bastante inclinada pelo vento, balançava, vibrava, atingindo e açoitando meu rosto a todo instante.
A caminhada começou bem cedo, sob a neve e chuva fina. Pertencente à perna ocidental do “W”, a longa trilha subia leve, mas sem tréguas, até o alto da colina. O vento, como não poderia deixar de ser, soprava sem parar e com intensidade ainda maior que das outras vezes. Em certos momentos parecia que eu iria flutuar tal as rajadas vindas de todos os lados. A integrante do grupo, baixinha a magrinha, amedrontada com a situação, chegou a recolher duas pedras do chão, passando a caminhar com uma em cada mão, obtendo o lastro para não sair voando. Na descida do morro, em visão panorâmica do lago Grey, blocos de gelo flutuantes nas águas, que se desprenderam das geleiras mais ao fundo. Se não houve moleza durante o esforço físico da subida, o mesmo se repetiu ao longo da trilha de descida. Traçada na encosta do morro que se inclinava nas águas do lago, a trilha era castigada por impiedosas rajadas de vento. As árvores e arbustos estavam definitivamente inclinados e com os galhos todos voltados para um lado só. O vento contra vindo do lago era tão intenso que eu podia me soltar que não cairia. Eu abria os braços, tirava um pé do chão e quase tirava o segundo também. Aquelas flutuações viraram passatempo depois de acostumado com a velocidade do vento. Se por um acaso, repentinamente, o vento parasse de soprar, eu desabaria e me arrebentaria na trilha cheia de pedras pontiagudas.
continua...

12 comentários:

  1. Puxa, depois de 10 anos como mudou a paisagem, principalmente a parte nevada. Também passei entre NAtal e Ano Novo lá, só que desse ano e a parte nevada está totalmente diferente, infelizmente há menos neve... E cada vez haverá menos neve...

    Bjs e Boas Viagens!

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  2. Oi Carla, oi Élio, por onde andam?
    Pois é, menos neve e mais turistas. Será que o turismo lá tem sido manejado de maneira sustentável?
    Abraços!

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  3. Pois é amigo! Muito mais turistas... Pelo menos não ví nenhum lixo jogado pelas trilhas e há muitas lixeiras nos abrigos. Queria saber pra onde esse lixo vai depois...

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  4. Tanto turista que em janeiro de 2009 eu precisei esperar 3 dias para conseguir uma passagem de ônibus de Ushuaia para Punta Arenas e depois Puerto Natales.
    Mas valeu, TDP estava magnífico, mas só tive 2 dias lá e optei atravessar o Lago Pehoe até o refugio, onde fiquei. Muito caro,é verdade. Mas precisava daquele descanso. Pois de lá enfrentei El Chaltén e a Rota 40 até Bariloche e de lá até Mendonza.
    Ainda volto a TDP, para, quem sabe, fazer não o "W", mas o circuito "O"

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  5. A turma que me acompanhava na época fincou pé somente no "W", que é lindo também e faz parte do circuito completo. Um dia quem sabe um dia.
    Haja vento, eim?

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  6. Disseram-me que atingia 100km/h. Não topei com tanto,mas perdi a conta de quantas vezes coloquei e tirei o corta vento, enquanto caminhava ao lado do Lago Gray.
    Sim, é lindo e por isso penso que posso voltar um dia.

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  7. Também pretendo voltar lá. A região vale a pena, os chilenos e argentinos são acolhedores.
    Gostei tanto de Torres de Paine, no Chile, como das trilhas do Cerro Torre e Cerro El Chaltén (Fitz Roy), na Argentina.

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  8. Não fui até o Fitz, pois houve um tempo péssimo e ninguém arriscava. Apenas Laguna Torre.

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  9. Incrível seus relatos, Augusto. A riqueza de minúcias com que descreves tuas aventuras, faz com que nós, leitores, sintamos como se estivéssemos contigo nessas viqgens fantásticas. Parabéns pelo enorme talento. Já pensaste em editar um livro?

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  10. Oi Laura!
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    É justamente essa a ideia, fazer vocês se sentirem lá.
    Quanto ao livro, um dia, quem sabe, um dia... Quem sabe?
    Comente sempre!

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  11. Olá anônimo!
    Obrigado pela visita e pelos comentários.
    Há diversos relatos publicados neste blog, de viagens realizadas pelos interiores do Brasil e de outros paises. Fique à vontade.
    E comente sempre!

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