...continuação
Ele me convidou para jantar costela com mandioca. Cansado,
sujo, faminto, sem pique para procurar restaurante pela noite da cidadezinha,
topei na hora. Tomei duas doses generosas de cachaça guardada em dorna no
balcão. Esperei quase duas horas antes de cair de cabeça na comida feita na
hora. Alcoólatra convicto, mas sem jamais perder o prumo e o controle da
situação, o dono passava constantemente pela dorna de cachaça, enchia a cuia de
cabaça e mandava para dentro num gole só. Desabei de sono na cama do quarto. Nem
me lembrei de sacudir os lençóis para tirar a poeira e eventuais aranhas ou
besouros.
Em passeio matinal de barco pelas águas do Velho Chico, o
barqueiro proferiu frase simples e profunda sobre a importância do São
Francisco:
“O rio é pai e mãe para nós”.
Botei o pé na estrada beirando o rio. O calçamento logo
ficou para trás. Entrei em estradinha de chão pela zona rural do município, sem
direção, sem pressa, sem expectativas. Casinhas simples, isoladas. As antigas,
de adobe, telhas, janelas e portas de madeira, charmosas. As mais novas, feias,
estilo caixote, portas e janelas minúsculas, horríveis, sufocantes, feitas de
ferro, alumínio ou sei lá o quê de mais desumano que os fabricantes e lojas de
construção empurram aos pobres coitados. Raras casas de taipa ou pau-a-pique,
especialmente nas encostas do rio, abrigavam famílias miseráveis que mal
sobreviviam de pequenas hortas e pescarias artesanais. Atingi o ponto onde
cruzavam balsas de carga pelo rio em direção a Jaíba e Janaúba. Um bar, uma
casa, uma vendedora ambulante de pastéis e refrescos, a rampa de terra, e mais
nada.
Almocei no centro da cidade no horário em que quase toda a
cidade fazia a sesta, deixando as ruas vazias e silenciosas. Independente do
horário, porém, Itaracambi oferecia tranquilidade de dia e de noite, quebrada
apenas quando da passagem de carros de som dos candidatos às eleições
municipais. Sentei no jardim da pousada para escrever, ler, relaxar, conversar,
apreciar o rio São Francisco, assim à toa, lutando contra os borrachudos. A
situação se agravou quando nuvens escuras e ameaçadoras surgiram no céu. Os
borrachudos se irritaram e se multiplicaram.
A pequena Itacarambi, que ganhou notoriedade em novembro
de 2007 devido ao tremor de terra, assustando a população, rachando e
derrubando paredes de poucas casas, guardava urbanismo arrojado para a região.
Largas avenidas de paralelepípedos, com canteiro central decorado por
palmeiras, ruas arborizadas, praças aconchegantes, cais amplo e funcional. As
opções de comida não eram lá essas coisas, mas eu entrava de cabeça nas
cachaças artesanais.
Optei por caminhada à comunidade do Brejo, via estradinha
de terra. O início desanimou pelos cubículos padronizados voltados às famílias
pobres, cinicamente chamados de habitações, e dois lixões, sendo o segundo
ativo, queimando e fedendo. Pastos vazios de gado ou com ossadas de animais
mortos compunham o trecho em seguida. A paisagem melhorou por entre casinhas
simples e moradores sorridentes. Carroceiros, motos, bicicletas, raros veículos
maiores surgiam de vez em quando pelo caminho. Mais à frente, conversei com
sitiante que me convidou a conhecer o gado, a plantação de cana, a casa
principal. Caminhei até o pé da primeira serra calcária, provavelmente recheada
de grutas e cavernas pertencentes ao parque nacional das Cavernas do Peruaçu,
ainda fechado a visitações.
No começo da noite, o dono da pousada e o ajudante
entraram em discussão acalorada. Levantaram a voz, apontaram dedos, tudo em
ritmo lento e empapado pela embriagues avançada de ambos. Perdi a conta dos
goles de cachaça que tomaram durante o bate-boca. Os argumentos perdiam o
sentido. Nenhum dos dois ouvia ou raciocinava direito. Vira e mexe um chamava o
outro de bêbado. O ofendido negava veementemente a acusação, a discussão
voltava ao ponto inicial e assim por diante. E haja goles de cachaça. A cena
durou horas. Subitamente se abraçaram e, totalmente mamados, se declararam:
“Eu gosto d’ocê!”.
“Eu também gosto d’ocê!”.
E cada um foi para lados diferentes, não sem antes beber
outro gole de cachaça.
A barulheira das campanhas eleitoreiras, despolitizadas e
despolitizadoras, não dava sossego. As passeatas, carreatas, buzinas, refrãos insistentes,
uma tortura que penetrava nos ossos, não paravam um minuto sequer.
Arrisquei restaurante improvisado e ponto de encontro de
uma das alas da disputa eleitoreira. A poluição sonora vinha dos carros de som,
vomitando refrões musicais do candidato, todos ao mesmo tempo, em volume
ensurdecedor. Comi bastante e bem o espeto de picanha acompanhado de feijão
tropeiro, vinagrete, arroz e batata, entre conversas com fregueses que passavam
pela minha mesa.
O sol ardia na parte da tarde. Esgueirando-me pelas
paredes, sob as marquises das casas, tentando me livrar da chapa quente, voltei
ao hotel, mais por falta de opção que propriamente vontade. O dono ligou a
sauna seca da pousada no final da tarde. Fiquei lá meia hora entre entradas e
saídas para a ducha fria.
A praça em frente à igreja Matriz, moderna e tenebrosa,
mais parecendo ginásio de esportes, lotou na noite estrelada, principalmente
após a missa. Os moradores ocuparam as mesas dos restaurantes e sorveterias ou
simplesmente se sentaram nos bancos do jardim.
O ônibus podre partiu lotado com cinco horas de atraso. A
empresa privada e monopolista Gontijo humilhava os passageiros com péssimos
serviços, a preços altos, enquanto centenas de ônibus dormiam nas garagens. O
motorista, contudo, era educado, simpático e seguro ao volante.
O longo trecho de terra não estava tão mal assim. Após a
cidade de Manga, sobraram poucos passageiros e a estrada tornou-se mais
estreita. O traçado com curvas e relevo acidentado empolgava. Dezenas de
caminhões com excesso de carga, muito alta e totalmente instável, transportavam
carvão vegetal para as siderúrgicas transnacionais do centro de Minas Gerais. O
desmatamento avançava a passos largos no noroeste mineiro provocando impactos
socioambientais inimagináveis. No mais, paisagem ressecada, com arbustos
acinzentados, raras plantações de milho, feijão, banana, cereais. E muitas
mangueiras concentradas ao longo dos vales mais férteis.
Após a cidadezinha de Montalvânia, o sol se pôs na divisa
com a Bahia, através de frágil ponte de madeira sobre as águas convidativas do
rio Carinhanha, e a vila de Pitarana do lado mineiro. Conversas animadas e
descontraídas aconteceram entre os passageiros remanescentes enquanto
apreciávamos a paisagem sertaneja pelas janelas do ônibus. Nem nos
preocupávamos com a poeira que cobria bagagens, assentos, rostos, olhos, cabelos,
tudo.
Penetramos na cidade de Coribe à noite depois de passar
por Cocos.
Na primeira opção de hospedagem percebi que não estava
mais em Minas Gerais e sim na Bahia. Assim que entrei, as pessoas me notaram, mas
continuaram sentados com olhar de peixe morto. Esperei bastante até a senhora
vir com passos de tartaruga me mostrar um quarto pavoroso, com colchão sujo,
sem lençóis, sem toalhas, sem banheiro privativo, paredes descascadas,
fechadura quebrada na porta. Ao pedir lençol, ela me perguntou se era para
embrulhar. Mais lenta e abobada que nunca, não sabia se voltava a sentar ou
procurava me atender. Agradeci e voltei para a rua escura. A segunda opção,
semelhante à primeira, estava lotada, para meu alívio. A terceira, e
aparentemente a última, revelava aspecto menos decrépito. A dona sentava na
calçada ao lado de homens deitados no cimento. Demorou a se levantar e me
perguntar o que eu desejava. O que desejaria uma pessoa, à noite, com bagagem,
na entrada de um hotel? Mostrou-me quarto também sem banheiro, sem roupas de
cama, sem toalha. A digníssima me trouxe lençol de baixo, colcha como lençol de
cima, toalha encardida e mofada. No caminho ao banheiro coletivo no fundo do
corredor me deparei com senhor derretido no sofá, com a perna e o braço caídos
no chão.
Coribe mais parecia o cu do mundo. Bares repugnantes,
dentro dos quais prateleiras improvisadas e sujas ofereciam bebidas de quinta categoria.
E era um parto alguém se prontificar a atender. Bêbados perambulavam pelas
ruas, em meio à música alta, carros de som de candidatos oportunistas. Numa
praça desolada, do alto de um palanque de madeira, alguém pregava
fundamentalismo religioso para as ovelhas obedientes.
Não poderia ter sido pior a recepção que a Bahia me oferecia.
Se não fosse a aproximação da estação chuvosa eu retornaria ao noroeste mineiro
na manhã seguinte.
A ausência de forro no hotel trazia o som de toda a casa.
Mosquitos davam rasantes no meu rosto. Por outro lado, a ventilação natural e o
frescor da noite garantiram temperatura agradável para dormir sem grudar nas
roupas de cama.
No café da manhã, pão, margarina, café adoçado e leite. Da
porta da cozinha me ofereceram ovos fritos e aceitei com prazer. A televisão da
recepção do hotel semeava pânico com notícias sobre a crise do capitalismo nos
países imperialistas. Os hóspedes de olhar bovino se impressionavam com a queda
das bolsas e a subida do dólar.
O ônibus partiu no meio da manhã por asfalto em estado
desesperador devido aos buracos, cruzando o cerrado, a caatinga, áreas
desmatadas contendo nada ou pouco gado, raríssimas plantações irrigadas de
mamão, banana, melão. O trajeto incluía entrada na cidade de Jaborandi que, de
bonito, só tinha o nome e o rio cristalino antes das ruas.
O veículo trocou de passageiros várias vezes pelos
incontáveis embarques e desembarques no meio da estrada. Dois homens, um deles
do oeste baiano, outro de Salvador, descreviam com era a vida, os costumes, e
principalmente a comida, em cada local de origem. O do oeste baiano se
surpreendia com o quê e como se comia na capital do estado, onde jamais botara
os pés, assim como a maioria dos demais passageiros. O oeste baiano se
relacionava mais com Brasília e arredores, menos com a própria capital
Salvador, distante cerca de mil quilômetros. Daí a presença de músicas
sertanejas, violeiros, duplas goianas de qualidades duvidosas, soando nas
caixas de som de bares e carros.
No meio do dia, o ônibus cruzou a ponte sobre o rio
Corrente que dividia as cidades de São Félix do Coribe e Santa Maria da
Vitória. O moto-táxi me entregou em frente à porta do hotel. Só queria comer
comida depois de dois dias na base de salgadinhos. Enchi o bucho com carnes,
batatas, saladas, sobremesas mineiras.
À noite, a despeito dos comícios e passeatas
eleitoreiras, a praça na beira do rio em Santa Maria da Vitória atraiu bom
número de frequentadores. A garçonete quarentona adorava se sentar ao meu lado
para conversar na mesa ao ar livre. O dono do estabelecimento lhe lançava
broncas pelas outras mesas a serem atendidas. Ela se levantava, atendia, e voltava
a sentar comigo.
continua...
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