quarta-feira, 6 de abril de 2011

Sertões de Minas e Bahia (parte 2/5)

...continuação
Ele me convidou para jantar costela com mandioca. Cansado, sujo, faminto, sem pique para procurar restaurante pela noite da cidadezinha, topei na hora. Tomei duas doses generosas de cachaça guardada em dorna no balcão. Esperei quase duas horas antes de cair de cabeça na comida feita na hora. Alcoólatra convicto, mas sem jamais perder o prumo e o controle da situação, o dono passava constantemente pela dorna de cachaça, enchia a cuia de cabaça e mandava para dentro num gole só. Desabei de sono na cama do quarto. Nem me lembrei de sacudir os lençóis para tirar a poeira e eventuais aranhas ou besouros.
Em passeio matinal de barco pelas águas do Velho Chico, o barqueiro proferiu frase simples e profunda sobre a importância do São Francisco:
“O rio é pai e mãe para nós”.
Botei o pé na estrada beirando o rio. O calçamento logo ficou para trás. Entrei em estradinha de chão pela zona rural do município, sem direção, sem pressa, sem expectativas. Casinhas simples, isoladas. As antigas, de adobe, telhas, janelas e portas de madeira, charmosas. As mais novas, feias, estilo caixote, portas e janelas minúsculas, horríveis, sufocantes, feitas de ferro, alumínio ou sei lá o quê de mais desumano que os fabricantes e lojas de construção empurram aos pobres coitados. Raras casas de taipa ou pau-a-pique, especialmente nas encostas do rio, abrigavam famílias miseráveis que mal sobreviviam de pequenas hortas e pescarias artesanais. Atingi o ponto onde cruzavam balsas de carga pelo rio em direção a Jaíba e Janaúba. Um bar, uma casa, uma vendedora ambulante de pastéis e refrescos, a rampa de terra, e mais nada.

Almocei no centro da cidade no horário em que quase toda a cidade fazia a sesta, deixando as ruas vazias e silenciosas. Independente do horário, porém, Itaracambi oferecia tranquilidade de dia e de noite, quebrada apenas quando da passagem de carros de som dos candidatos às eleições municipais. Sentei no jardim da pousada para escrever, ler, relaxar, conversar, apreciar o rio São Francisco, assim à toa, lutando contra os borrachudos. A situação se agravou quando nuvens escuras e ameaçadoras surgiram no céu. Os borrachudos se irritaram e se multiplicaram.
A pequena Itacarambi, que ganhou notoriedade em novembro de 2007 devido ao tremor de terra, assustando a população, rachando e derrubando paredes de poucas casas, guardava urbanismo arrojado para a região. Largas avenidas de paralelepípedos, com canteiro central decorado por palmeiras, ruas arborizadas, praças aconchegantes, cais amplo e funcional. As opções de comida não eram lá essas coisas, mas eu entrava de cabeça nas cachaças artesanais.
Optei por caminhada à comunidade do Brejo, via estradinha de terra. O início desanimou pelos cubículos padronizados voltados às famílias pobres, cinicamente chamados de habitações, e dois lixões, sendo o segundo ativo, queimando e fedendo. Pastos vazios de gado ou com ossadas de animais mortos compunham o trecho em seguida. A paisagem melhorou por entre casinhas simples e moradores sorridentes. Carroceiros, motos, bicicletas, raros veículos maiores surgiam de vez em quando pelo caminho. Mais à frente, conversei com sitiante que me convidou a conhecer o gado, a plantação de cana, a casa principal. Caminhei até o pé da primeira serra calcária, provavelmente recheada de grutas e cavernas pertencentes ao parque nacional das Cavernas do Peruaçu, ainda fechado a visitações.

No começo da noite, o dono da pousada e o ajudante entraram em discussão acalorada. Levantaram a voz, apontaram dedos, tudo em ritmo lento e empapado pela embriagues avançada de ambos. Perdi a conta dos goles de cachaça que tomaram durante o bate-boca. Os argumentos perdiam o sentido. Nenhum dos dois ouvia ou raciocinava direito. Vira e mexe um chamava o outro de bêbado. O ofendido negava veementemente a acusação, a discussão voltava ao ponto inicial e assim por diante. E haja goles de cachaça. A cena durou horas. Subitamente se abraçaram e, totalmente mamados, se declararam:
“Eu gosto d’ocê!”.
“Eu também gosto d’ocê!”.
E cada um foi para lados diferentes, não sem antes beber outro gole de cachaça.
A barulheira das campanhas eleitoreiras, despolitizadas e despolitizadoras, não dava sossego. As passeatas, carreatas, buzinas, refrãos insistentes, uma tortura que penetrava nos ossos, não paravam um minuto sequer.
Arrisquei restaurante improvisado e ponto de encontro de uma das alas da disputa eleitoreira. A poluição sonora vinha dos carros de som, vomitando refrões musicais do candidato, todos ao mesmo tempo, em volume ensurdecedor. Comi bastante e bem o espeto de picanha acompanhado de feijão tropeiro, vinagrete, arroz e batata, entre conversas com fregueses que passavam pela minha mesa.
O sol ardia na parte da tarde. Esgueirando-me pelas paredes, sob as marquises das casas, tentando me livrar da chapa quente, voltei ao hotel, mais por falta de opção que propriamente vontade. O dono ligou a sauna seca da pousada no final da tarde. Fiquei lá meia hora entre entradas e saídas para a ducha fria.
A praça em frente à igreja Matriz, moderna e tenebrosa, mais parecendo ginásio de esportes, lotou na noite estrelada, principalmente após a missa. Os moradores ocuparam as mesas dos restaurantes e sorveterias ou simplesmente se sentaram nos bancos do jardim.
O ônibus podre partiu lotado com cinco horas de atraso. A empresa privada e monopolista Gontijo humilhava os passageiros com péssimos serviços, a preços altos, enquanto centenas de ônibus dormiam nas garagens. O motorista, contudo, era educado, simpático e seguro ao volante.
O longo trecho de terra não estava tão mal assim. Após a cidade de Manga, sobraram poucos passageiros e a estrada tornou-se mais estreita. O traçado com curvas e relevo acidentado empolgava. Dezenas de caminhões com excesso de carga, muito alta e totalmente instável, transportavam carvão vegetal para as siderúrgicas transnacionais do centro de Minas Gerais. O desmatamento avançava a passos largos no noroeste mineiro provocando impactos socioambientais inimagináveis. No mais, paisagem ressecada, com arbustos acinzentados, raras plantações de milho, feijão, banana, cereais. E muitas mangueiras concentradas ao longo dos vales mais férteis.

Após a cidadezinha de Montalvânia, o sol se pôs na divisa com a Bahia, através de frágil ponte de madeira sobre as águas convidativas do rio Carinhanha, e a vila de Pitarana do lado mineiro. Conversas animadas e descontraídas aconteceram entre os passageiros remanescentes enquanto apreciávamos a paisagem sertaneja pelas janelas do ônibus. Nem nos preocupávamos com a poeira que cobria bagagens, assentos, rostos, olhos, cabelos, tudo.
Penetramos na cidade de Coribe à noite depois de passar por Cocos.
Na primeira opção de hospedagem percebi que não estava mais em Minas Gerais e sim na Bahia. Assim que entrei, as pessoas me notaram, mas continuaram sentados com olhar de peixe morto. Esperei bastante até a senhora vir com passos de tartaruga me mostrar um quarto pavoroso, com colchão sujo, sem lençóis, sem toalhas, sem banheiro privativo, paredes descascadas, fechadura quebrada na porta. Ao pedir lençol, ela me perguntou se era para embrulhar. Mais lenta e abobada que nunca, não sabia se voltava a sentar ou procurava me atender. Agradeci e voltei para a rua escura. A segunda opção, semelhante à primeira, estava lotada, para meu alívio. A terceira, e aparentemente a última, revelava aspecto menos decrépito. A dona sentava na calçada ao lado de homens deitados no cimento. Demorou a se levantar e me perguntar o que eu desejava. O que desejaria uma pessoa, à noite, com bagagem, na entrada de um hotel? Mostrou-me quarto também sem banheiro, sem roupas de cama, sem toalha. A digníssima me trouxe lençol de baixo, colcha como lençol de cima, toalha encardida e mofada. No caminho ao banheiro coletivo no fundo do corredor me deparei com senhor derretido no sofá, com a perna e o braço caídos no chão.
Coribe mais parecia o cu do mundo. Bares repugnantes, dentro dos quais prateleiras improvisadas e sujas ofereciam bebidas de quinta categoria. E era um parto alguém se prontificar a atender. Bêbados perambulavam pelas ruas, em meio à música alta, carros de som de candidatos oportunistas. Numa praça desolada, do alto de um palanque de madeira, alguém pregava fundamentalismo religioso para as ovelhas obedientes.
Não poderia ter sido pior a recepção que a Bahia me oferecia. Se não fosse a aproximação da estação chuvosa eu retornaria ao noroeste mineiro na manhã seguinte.
A ausência de forro no hotel trazia o som de toda a casa. Mosquitos davam rasantes no meu rosto. Por outro lado, a ventilação natural e o frescor da noite garantiram temperatura agradável para dormir sem grudar nas roupas de cama.
No café da manhã, pão, margarina, café adoçado e leite. Da porta da cozinha me ofereceram ovos fritos e aceitei com prazer. A televisão da recepção do hotel semeava pânico com notícias sobre a crise do capitalismo nos países imperialistas. Os hóspedes de olhar bovino se impressionavam com a queda das bolsas e a subida do dólar.

O ônibus partiu no meio da manhã por asfalto em estado desesperador devido aos buracos, cruzando o cerrado, a caatinga, áreas desmatadas contendo nada ou pouco gado, raríssimas plantações irrigadas de mamão, banana, melão. O trajeto incluía entrada na cidade de Jaborandi que, de bonito, só tinha o nome e o rio cristalino antes das ruas.
O veículo trocou de passageiros várias vezes pelos incontáveis embarques e desembarques no meio da estrada. Dois homens, um deles do oeste baiano, outro de Salvador, descreviam com era a vida, os costumes, e principalmente a comida, em cada local de origem. O do oeste baiano se surpreendia com o quê e como se comia na capital do estado, onde jamais botara os pés, assim como a maioria dos demais passageiros. O oeste baiano se relacionava mais com Brasília e arredores, menos com a própria capital Salvador, distante cerca de mil quilômetros. Daí a presença de músicas sertanejas, violeiros, duplas goianas de qualidades duvidosas, soando nas caixas de som de bares e carros.
No meio do dia, o ônibus cruzou a ponte sobre o rio Corrente que dividia as cidades de São Félix do Coribe e Santa Maria da Vitória. O moto-táxi me entregou em frente à porta do hotel. Só queria comer comida depois de dois dias na base de salgadinhos. Enchi o bucho com carnes, batatas, saladas, sobremesas mineiras.
À noite, a despeito dos comícios e passeatas eleitoreiras, a praça na beira do rio em Santa Maria da Vitória atraiu bom número de frequentadores. A garçonete quarentona adorava se sentar ao meu lado para conversar na mesa ao ar livre. O dono do estabelecimento lhe lançava broncas pelas outras mesas a serem atendidas. Ela se levantava, atendia, e voltava a sentar comigo.
continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário