...continuação
Falante e comunicativo, o proprietário do restaurante me
convidou à roça. Em meio a mil ideias e planos de cultivar frutas variadas na
terra, por enquanto apenas rascunhos de ameixeiras, pessegueiros, bananeiras,
mangueiras, gravioleiras, quase todas atacadas impiedosamente por formigas
substanciosas. Vacas paridas cambaleavam no fundo do terreno fortemente
inclinado, onde corria vale de rio seco, mas do qual se obtinha água a menos de
um metro de profundidade. No terreno vizinho, marmeleiros semiabandonados entre
hortas bem cuidadas.
O lixão da cidade de Morro do Chapéu, implantado no alto
do morro, bancado pela administração municipal, inclusive pelo prefeito eleito,
gerava chorume e contaminava nascentes de água que cruzavam roças, inclusive as
que abasteciam comunidade quilombola.
A rodovia estreita, asfaltada e cheia de buracos subiu
mais a colina, ultrapassando a altitude de Morro do Chapéu, percorrendo o
altiplano em solo pedregoso com vegetação acastanhada e monótona. Plantações de
sisal predominaram na segunda metade da viagem. O ônibus entrou na pobre e
triste Várzea Nova antes de descer a serra íngreme e sinuosa, já com a visão da
cidade de Jacobina ao fundo do vale, cercada por enormes paredões de rocha,
serras alongadas, vales estreitos e profundos. Muitas ladeiras e morros, casas
nas encostas abruptas, escarpas rochosas, o traçado sinuoso da cidade, faziam
de Jacobina local instigante para explorações. Subiu e desceu muita gente durante
o percurso por vales férteis, verdes, mas pouco plantados. Corria água nos rios
e riachos.
O ônibus entrou em Senhor do Bonfim no meio da tarde. Saí
imediatamente às ruas, pois queria encontrar, antes de fechar o comércio,
colega dos tempos em que morei na cidade quase trinta anos antes. De loja em
loja, de casa em casa, me deparei com a mãe dele me informando que ele saíra.
O amigo apareceu no hotel antes de escurecer. Magro e
envelhecido demais, completamente calvo, adoentado, mas feliz em me rever
depois de tantos anos. Sentamos em bar ao ar livre, dos poucos quase intactos
desde que deixei a cidade, a fim de tomarmos goles e matarmos as saudades. Após
descrevermos por alto a vida de cada um, perguntei pelos amigos e amigas. A
maioria ainda morava e trabalhava em Bonfim, casados, separados, com ou sem
filhos. Outros se mudaram. Três casos, no entanto, me chocaram.
Um tornara-se caminhoneiro com o pai. Anos antes, quando
cruzavam o oeste baiano, foram assaltados nas proximidades de Barreiras. E assinados.
Pai e filho permaneceram desaparecidos por muito tempo. O caminhão e a carga
jamais foram encontrados. Pedaços irreconhecíveis dos corpos apareceram tempos
depois. Farrapos de roupas e restos dos calçados auxiliaram no reconhecimento
das ossadas e da carne em decomposição.
Um homossexual famoso na época, além de se relacionar com
meninos, intermediava mulheres casadas que queriam pular a cerca. Um dos
maridos descobriu o esquema, encomendando a execução do agenciador. Mas não uma
morte qualquer. O tal foi esquartejado em dezenas de pedaços.
Uma garota também tivera fim trágico. Meu amigo não soube
precisar quando, mas ela, que jamais se casou, se suicidara ateando fogo ao
corpo embebido em álcool.
Naquela noite, eu e ele marcamos ponto em três bares, bebemos
bem, comemos, enchemos a barriga. A emoção do reencontro com a cidade de
Bonfim, com o colega, as doses e mais doses nas mesas dos bares, a carne de sol
no ponto, as bonfinenses sensuais, no entanto, não conseguiam afastar as
imagens dos destinos tenebrosos daquelas três histórias.
Andamos sem rumo e sem pressa pelo centro comercial, pela
feira ao ar livre, extensa, variada, uma das maiores da região. Tentamos
encontrar outro amigão das antigas, mas de cuja casa ninguém tinha o endereço,
nos obrigando a vagar a esmo e esperar a sorte de encontrá-lo nos lugares mais
prováveis.
Mais à noite reencontrei o colega completamente bêbado,
não falando coisa com coisa, ziguezagueando. Ainda assim, insistiu em novas explorações
etílicas. Ao ar livre houve festa organizada pelo prefeito eleito, para a qual
foi convidada banda de axé sobre gigantesco trio elétrico. A galera mais jovem,
catalisada pelo álcool e outros aditivos, pulava e atendia obediente aos apelos
do vocalista:
“sai do chão!”, “tire o pé do chão!”, “levanta a mãozinha
e bate na palma da mão!”.
Suportei pouco aquela mesmice do lixo descartável da
indústria cultural.
No dia seguinte, implorei ao colega para repetir a
história triste da amiga que se suicidara. O danado repuxou da memória e acabou
lembrando que aquele fim trágico ocorrera com outra mulher, de nome diferente,
nem era morena, nem usava cabelos curtos, nem nada. Porra...
Inaceitável era a poda criminosa e de extremo mau gosto
das árvores ao longo de ruas, avenidas e praças da maioria das cidades
interioranas. Tratava-se de mutilação, sem falar que o bem mais procurado e
precioso, a sombra, ficava comprometido. As administrações municipais reduziam
árvores frondosas a minúsculos cubos, cones, esferas, corações e outras formas
ridículas. As cidades, por conta disso, continuavam tórridas, feias, cinzentas,
sem as tão desejadas sombras.
Outro amigo antigo apareceu com o colega. Demos voltas
pela cidade nos lembrando dos velhos tempos. E, afinal, quem aparecia em foto
histórica tirada durante as festas juninas da época, com seis de nós, era ele e
não o tragicamente assassinado com o pai, como eu supunha inicialmente.
No início da noite encontramos outro colega. A conversa ia
bem até ele desandar a matraquear sobre os conchavos e traições durante a
campanha eleitoral. O tema simplesmente o obcecava. O primeiro colega se
antecipou e picou a mula. A situação tornou-se insuportável quando sobraram
apenas eu, ele e o antigo correligionário da campanha eleitoreira. Nada de projetos
ou propostas políticas para a população. Apenas quem ajudou quem, quem traiu
quem, quem se aliou a quem, quem debandou. Baixa politicagem, nada mais.
A caatinga e a poeira das estradas de chão me chamavam. Os
colegas apareceram para se despedir. Prometemos manter contato.
A lotação saiu rumo à vila de Pilar. A rodovia penetrou de
vez no coração da caatinga, acinzentada e ressecada, cortada por rios e riachos
completamente secos. Serras e serrotes revelavam encostas pedregosas.
Cidadezinha planejada para atender à empresa de mineração
quase ao lado, Pilar horrorizava em praticamente tudo. Espécie de rascunho em
miniatura e mal feito de Brasília, com traçado quadriculado e quadras de
apartamento na parte central, a vila guardava aspecto desolador no meio daquele
sertão. Nada de verde, nada de praças, nada de acolhedor, nada de nada. Pilar
mais parecia cenário de filmes de horror nos quais o personagem, desesperado,
se vê em pesadelo, sem saída, perdido pela vila deserta, morta, cinzenta, sem
habitantes ou alma viva sequer. Sentei no meio daquela pasmaceira aguardando o segundo
transporte.
Após o ônibus passar ao lado da entrada da mineradora, o
asfalto acabou e a estrada de chão fascinou pelo contato mais próximo com a
paisagem e povoados esparsos. Xiquexiques, facheiros, mandacarus, umbuzeiros,
umburanas, favelas, muito espinho, vegetação de médio porte ressecada, exibiam
sem disfarces o semiárido nordestino. Bodes e cabras, pouco gado, vaqueiros de
gibão e chapéu de couro conduziam rebanhos. Nas imediações de Caldeirão da
Serra, serrotes cobertos de pedras e vegetação rala me aguçaram a curiosidade
de caminhadas.
Desembarquei em Uauá no fim da tarde ao lado da praça
nova, alongada, criminosamente sem árvores. Nada de sombra naquele miolo de
caatinga tórrida, onde o sol jamais perdoava. Andei até hotel básico com
quartos altos, duas janelas protegidas por telas antimuriçocas e pelas quais
entrava brisa constante.
Entrei em restaurante que servia carnes da grelha
improvisada na calçada, principalmente a de bode. O vento forte e fresco da
noite afastava o calor. As pessoas animavam bares e espaços públicos. O vento
frio e seco forçava os mais sensíveis a se protegerem com blusas e gorros. A
ventilação natural do quarto do hotel não pediu o ventilador ou o quase sempre
supérfluo ar condicionado. De volta ao clima tipicamente sertanejo, seco,
poucas nuvens no céu, quente durante o dia, fresco à noite.
Caminhei pela manhã por estradinhas de chão e veredas
estreitas em contato íntimo com a caatinga rala, em tons que variavam “radicalmente”
do cinza-acastanhado ao castanho-acinzentado. Bandos de bodes e cabras, raros
jegues, gado apenas ao longo do rio Vaza Barris, praticamente seco e apenas com
poças de água parada, ladeado de várzea fértil e pouco aproveitada.
Afloramentos rochosos cobertos de xiquexiques e outros arbustos espinhosos.
Umbuzeiros floridos garantiam boas sombras e perspectivas de frutos para daí a
meses. Umburanas cujos troncos e galhos pareciam envernizados tal o brilho
polido.
Uauá significa vaga-lume, pirilampo, na língua dos habitantes
originais da região. A pequena cidade, a capital do bode, contava com centro
comercial discreto, sem casario antigo, ruas estreitas, atmosfera sertaneja,
povo recatado. O silêncio e a sesta do início da tarde me convidaram a me
refugiar do calor infernal no hotel.
Codorna frita com farofa e salada encerraram minha noite
em mesas no meio da praça nova, a sem árvores, ventilada, observando o
movimento da noite de Uauá.
Optei em caminhar exatamente de onde vinha poeira
acastanhada que entrava pelas janelas do quarto do hotel. Passei por dentro do
deprimente conjunto de casas populares, gaiolas horrorosas e mal acabadas de
amontoar pobres. A estrada de chão, em meio às curvas contornando lajedos e
blocos rochosos, descia e cruzava várzea fértil de riacho seco, onde a
vegetação se desenvolvia com mais vigor. O verde abundava e até havia gado ao
lado dos onipresentes bodes, cabras e carneiros. O relevo subiu novamente antes
de despontarem casas e hortas isoladas do povoado de Queimada dos Padeiros, com
direito ao cemitério, campo de futebol, capela, plantações de palma, árvores de
grande porte cobertas de flores amarelas, de um amarelo bem vivo. Troquei
frases soltas com moradores do povoado. Bem mais adiante, sob o sol do meio do
dia, após me embrenhar por veredas em meio à caatinga espinhosa, resolvi dar
meia volta. No retorno o sol sem nuvens fundiu a cabeça.
Uauá dormia o horário da sesta. Praticamente ninguém nas ruas. Silêncio quase absoluto. Somente o ruído das solas das minhas botas no piso. Talvez pela curiosidade em saber do que se tratavam aqueles sons, percebi abrirem a janela que dava para calçada, bem próximo de mim, para logo se fechar novamente. Deu para ouvir do lado de dentro a troca de frases entre duas mulheres:
Uauá dormia o horário da sesta. Praticamente ninguém nas ruas. Silêncio quase absoluto. Somente o ruído das solas das minhas botas no piso. Talvez pela curiosidade em saber do que se tratavam aqueles sons, percebi abrirem a janela que dava para calçada, bem próximo de mim, para logo se fechar novamente. Deu para ouvir do lado de dentro a troca de frases entre duas mulheres:
”quem era?’
“aquele doido que fica de chapéu andando sem parar debaixo
do sol”
Bastava caminhar de chinelo ou papete, me aproximar do
clima local, para a rachadura do meu calcanhar desabrochar. Somente quando
incomodava demais e eu apelava para tênis e meia, ela dava para trás. Do
contrário, o calcanhar dialogava com a caatinga e, assim como o dos sertanejos
do local, rachava e abria em verdadeiro intercâmbio físico e cultural.
Apesar da terra de boa qualidade, a ausência de políticas
públicas voltadas à democratização do acesso à água e a terra, irrigação de
lavouras, armazenamento descentralizado da água, relegava os sertanejos à
miséria e ao clientelismo, forçando-os ao êxodo rural e a entupir as periferias
urbanas. Enquanto isso, menores de idade se prostituíam nos quiosques do centro
de Uauá em troca de presentinhos e agrados diversos, lícitos e ilícitos.
Unidade especial da Policia Militar da Bahia, a Policia da
Caatinga utilizava veículos, uniformes e armamentos próprios. Contava com carta
branca para perseguir supostos fugitivos da lei, supostos acusados disso ou
daquilo, normalmente achados no meio do sertão. A tal unidade jamais prendia ou
recolhia os suspeitos vivos. Executava sumariamente e os enterrava lá no mato
mesmo. Mas recusava comparações aos esquadrões da morte e às tropas de elite
espalhadas pelo Brasil, que também criaram fama por assassinatos em massa sem
qualquer tipo de julgamento ou o mínimo direito de defesa aos acusados.
A água encanada de Uauá vinha da cidade de Juazeiro,
na margem do São Francisco, através de tubulação de mais de cem quilômetros de
extensão, via a empresa de mineração. O valor do trecho entre a mineradora e
Uauá era pago àquela empresa que repassava à companhia de água da Bahia, recebendo
também da mineradora o valor referente ao trecho entre Juazeiro e a mina. Por
mais que a cidade de Uauá tivesse recebido água canalizada somente em 1991,
após a suposta iniciativa da empresa de mineração privatizada, cheirava mal a
própria empresa privada controlar e agir como intermediário em setor de
serviços essencial e sob o controle do Estado. Não por acaso havia
irregularidade no abastecimento de água em Uauá, com constantes quedas de
vazão, mas jamais com quedas nos pagamentos à mineradora privatizada.
continua...
OI OI OI!!!!
ResponderExcluirJá passei por aqui faz um tempo pra falar com vc. Mas agora tenho notícias legais!!! Estou montando meu roteiro pra fazer um mochilão pelo nordeste e vim aqui dar uma olhadinha! Difícil escolher não é? Pretendo fazer em novembro..será meu primeiro! Me dá umas dicas? Não sei direito por onde começar! primeiro eu sei...a mochila! hahah
bjs!
Dicas e sugestões não faltam para o nordeste, sertão, litoral, capitais, interior. Daria para escrever páginas e páginas de onde ir, onde ficar, quanto ficar. Afinal, fui tantas vezes à essa região que tanto me fascina.
ResponderExcluirPor aqui ficaria muito longo.
Responderei para o seu endereço eletrônico, tá?
Lembrei muito de Guimarães Rosas, lendo os seus relatos sobre Minas... As fotos são de alguém com um olhar diferenciado...Amei...Posso copiar algumas? Darei o crédito ao Vaiajante Sustentável. Dirce Carneiro - fb
ResponderExcluirOi Dirce, obrigado pela visita e pelos comentários elogiosos.
ResponderExcluirNão por acaso li e reli obras de Guimarães Rosa nessas viagens que fiz pelo norte de Minas Gerais.
Além deste, há mais cinco relatos publicados aqui a partir de explorações em diferentes partes dessa região exuberante.
Claro que pode usar as fotos, e os textos também. Basta, como destacou, citar a fonte, http://viajantesustentavel.blogspot.com.br/.
Abraços e comente sempre!