...continuação
Segui ao bar com música ao vivo, onde diversos artistas
regionais prestavam homenagem a Cláudio Barris, músico uauaense talentoso, dono
de voz e ritmo suaves, rico melodicamente. O ambiente frequentado pela elite da
cidade mergulhou no excesso de álcool, gritarias, danças histéricas e delírio
geral.
Os quiosques e as praças novas e peladas da cidade enchiam
de gente de todos os tipos e idades, movimentando e alegrando a noite de
domingo, sempre a mais prestigiada dos interiores.
Acordei cedo em tempo de circular pela feira semanal. As
comunidades urbanas e rurais afluíam para vender e comprar em meio à abundância
de produtos frescos, animais, vegetais, manufaturados, contrastando com a
carência e miséria geral da região. O orgulho de se depararem com gêneros
diversos tornava a feira acontecimento grandioso e ansiosamente esperado.
Embarquei no meio da manhã cruzando o sertão ressecado
pela estrada de chão até o entroncamento em Bendegó. O ônibus tomou então o
asfalto, por entre caminhões e carretas em tráfego pesado. Chegada a Euclides
da Cunha a qual, de atraente, só tinha o nome. Nem deu tempo de tirar água do
joelho. O outro ônibus encostou e embarquei imediatamente. A estrada cruzou
paisagem similar ao agreste, em meio a ouricuris, arbustos verde-acinzentados.
Nada de água em riachos ou lagoas. Os animais padeciam na busca do que comer no
terreno sem capim. Bodes e cabras, normalmente resistentes ao clima semiárido,
mordiscavam tocos de madeira queimada. O ônibus passou reto pela aparentemente
abandonada estação rodoviária de Monte Santo, me deixando na praça central da
cidade.
A visão das ruas estreitas de onde inicia o caminho para
subir a via sacra ao monte santo, o próprio, cortado pela escadaria branca e
íngreme, prometia intensas emoções para o dia seguinte. A praça da Matriz,
ampla, limpa, arborizada, apesar das tenebrosas mutilações geométricas das
árvores, exibia monumento em homenagem aos mortos do massacre da vila de
Canudos pelo exército brasileiro. E foi exatamente Monte Santo a principal base
de suporte às tropas federais e estaduais durante os bombardeios visando
exterminar aquele foco de rebeldia ao sistema dominante do final do século XIX.
Ventou forte e fresco durante a noite. A maioria do
comércio fechou cedo, inclusive bares e restaurantes. A cidade mergulhou no
silêncio absoluto, tendo ao fundo e acima todo o caminho sagrado iluminado,
sobretudo os oratórios, as capelas intermediárias e a igrejinha final, situada
no topo do monte santo.
Tomei café da manhã na improvisada cozinha do hotel. Sendo
o único hóspede, comi ao lado de duas idosas, sisudas e caladas. Mas a ajudante
me preparou dois suculentos ovos fritos.
Por trás da igreja Matriz, desgraçadamente moderna, no fim
de rua estreita e inclinada, iniciava a via sacra para subir o monte santo. O
caminho, calçado de pedras irregulares na primeira parte do trecho, depois
traçado sobre a própria rocha da montanha, media cerca de três quilômetros.
Após o começo em subida puxada, em seguida à primeira capela, o trajeto dobrava
bruscamente e tornava-se mais gradual. Dezenas de oratórios se postavam em
ambos os lados, geralmente com muita vela derretida, cruzes ou pequenas imagens
na parte de dentro. Do lado de fora, ao lado da primeira capela, fotos e
imagens de santos e do padre Cícero apoiadas nas reentrâncias do paredão
rochoso. À medida que subia, o vento aumentava furiosamente, refrescando e
aliviando o esforço, me obrigando a enfiar e segurar com insistência o chapéu
na cabeça. Adiante das pedras que margeavam os dois lados da via, a caatinga
cinzenta mostrava força. Atingi o topo, composto da capela principal, armazém
de mantimentos fechado, gerador de eletricidade, torre de aço. Dali do alto,
bem alto por sinal, se tinha visão privilegiada de Monte Santo, das estradas
que lhe dão acesso, dos campos, de outras montanhas, do imenso sertão.
Permaneci sentado horas na soleira do portão do adro da
igreja, ajustando os pensamentos, liberando-os, sem restrições. O vento
fustigava sem parar de todos os lados. Não havia naquele momento sede, fome,
cansaço, qualquer preocupação com o tempo. Apenas a deliciosa sensação de
liberdade e a completa ausência de compromissos.
Já de volta à cidade, entrei em restaurante e bebi litros
de líquidos antes de pedir algo para o almoço. Da ponta da mesa, eu conseguia
ver o topo do monte santo e a capela branca, cuja alvura se ressaltava com o
sol.
Monte Santo mostrava-se calma demais, revelando, talvez, o
peso religioso do local. Quase nada se encontrava aberto à noite, nem as
padarias, lanchonetes, farmácias. O som do vento predominava enquanto a cidade
se recolhia. Dei voltas pelos becos antigos da parte velha da cidade erguida no
pé da serra do monte santo.
A cidade contava com empresas de transportes oferecendo
linhas de ônibus clandestinos a São Paulo e arredores. Nas paredes dos cubículos
onde se emitam as passagens apreciam pintados os destinos exatos, detalhando os
bairros aos quais seriam transportados os corajosos passageiros, principalmente
às zonas sul e leste de São Paulo, periferia de Guarulhos, demais subúrbios.
Surpreendentemente, pela primeira vez naquela viagem,
consegui me deslocar entre duas cidades em ônibus direto, sem necessidades de
trocas ou conexões. A paisagem aplainada pela janela do ônibus, seca, sobre
terreno arenoso e esbranquiçado, cobria-se de ouricuris ao longo de campos
cinza-esverdeados, entre esparsas plantações de sisal.
Após a passagem por Cansanção, desembarquei na praça da
Matriz em Queimadas. Nada de hotel ou pousada nas proximidades. O funcionário
da agência de ônibus me indicou duas possibilidades na saída da cidade. Peguei
moto-táxi e optei, por absoluta exclusão, por pousada básica na beira da
estrada. A placa em destaque na entrada, ressaltando o funcionamento 24 horas,
não deixava dúvidas quanto a real utilização do estabelecimento. Embaixo,
estacionamento e depósito de bebidas, a rodovia em frente, bar e ponto de putas
do outro lado do asfalto. Meninas, escandalosamente menores de idade,
entornavam copos de cerveja com olhares perdidos. E o relógio ainda apontava
meio-dia.
Queimadas, a mais jeitosa e urbanizada das cidadezinhas
pelas quais passei a trabalho quase trinta anos antes, tornou-se pura decepção.
Até mantinha casarões antigos, mas ficou feia, suja, sem cara de nada,
desorganizada, largada, abandonada. Árvores esparsas e absurdamente mutiladas
não ofereciam a sombra tão almejada. Pobres e miseráveis se amontoavam nas
praças peladas a espera de não sei o quê. Talvez esmolas da administração
municipal, da qual não notei sinais de atuação. Encontrei o hotel no qual eu
costumava me hospedar naqueles tempos. O casarão defronte à pequena praça
estava vazio, abandonado, à venda.
Assim que retornei à pousada, debaixo de sol abrasador, no
bar do piso térreo, entre tijolos à vista e ares de inacabado, duas putas
acompanhadas dos respectivos proprietários me lançavam olhares interessados
entre olhadelas compulsivas aos telefones celulares. Matei a sede no bar do
outro lado da estrada e a situação era a mesma.
Nem precisaria informar que aquela cidade catastrófica não
possuía rodoviária. Na agência de ônibus, funcionando também como ponto de jogo
do bicho, conversei com o senhor responsável pela emissão das passagens e pelas
apostas. Segundo ele, Queimadas já não era a principal produtora de sisal da
América como no início da década de 1980. Os proprietários trocaram as
plantações, que tão bem se adaptaram ao clima local, por capim e gado. E se deram
muito mal. A seca prejudicava e secava o capim. O gado, sem o capim, morria.
Incompetência estúpida do capital privado e ausência total de políticas
públicas para nortear a economia regional. E, para complicar a situação, os
proprietários de terra desmatavam sem critérios a vegetação nativa, inclusive
árvores frutíferas como o umbuzeiro, vendendo-as como lenha na cidade. Os latifundiários
davam tiro no próprio pé ao lado da omissão criminosa do Estado. Sucessivas
administrações municipais desastrosas abandonaram Queimadas à própria sorte,
permitindo que ela chegasse ao caos que chegou. E o povo de Queimadas assistia
a tudo sem dar um pio.
Depois de atravessar a pequena e simpática cidade de
Itiúba, aos pés da serra de mesmo nome, entre outras imagens de destaque, o ônibus
me deixou no centro de Jacobina, cidade rodeada de montanhas rochosas, com
escarpas íngremes e trilhas instigantes a serem exploradas, ideal para me reter
por bons dias.
O principal da noite de Jacobina acontecia no Alto da
Missão. Bares e restaurantes ofereciam o que eu precisaria nas próximas noites.
Faminto e carente da boa comida, eu me aconcheguei em mesa sob as árvores
frondosas, comi picanha na chapa com arroz e feijão tropeiro. Parei na segunda
caipirinha somente porque acabara a cachaça do estabelecimento. O vento uivava
e deixava o ar fresco.
Logo pela manhã encarei a escadaria do morro do Cruzeiro,
via degraus altos, exigindo impulso para superá-los. Milhares de fiéis
costumavam subi-los na noite de quinta para sexta-feira santa, fornecendo
imagem impressionante de velas e tochas acesas por todo o trajeto, conforme
foto na portaria da pousada. O topo valeu pela vista panorâmica de toda a
cidade, dos vales estreitos e profundos cortando as montanhas, pelas quais me
empolguei a explorar.
Escolhi a esmo um dos vales avistados e botei as pernas
para trabalhar. O calçamento acabou após ruas em desnível. Segui pela
estradinha acima. Para minha sorte, movimento zero de motos, carros ou outros
veículos incômodos. A estradinha estreita e margeada de perto pela floresta
quase tropical subia sem tréguas pelo fundo do vale. Cercas e casinhas muito
simples, somente no alto da serra. Íngremes paredões rochosos marcavam o
contorno do vale. Após o passo, optei pela trilha que conduzia à cachoeira com
queda pequena e convidativa sobre poço escuro. Entrei pelado para me refrescar
e apreciar o vale por onde descia a água e os paredões de rocha exposta. A água
fresca tirou o suor e a poeira do corpo, repondo as energias para prosseguir a
caminhada. Retornei à estradinha e acessei a trilha de outra cachoeira, trilha
esta merecedora do nome. Longa, fechada, em descida sobre encosta abrupta
mergulhando ao fundo do vale, entre arbustos e pedras soltas. Atingi o fundo da
garganta pela qual corria razoável volume de água. Andei sobre as pedras no
sentido da correnteza até o ponto onde se formava a queda d’água em poço bem
abaixo, prosseguindo pelo vale estrangulado pelos paredões.
Ao retornar, meus pés cobriam-se de poeira preta, as
papetes escorregavam nos pés pela transpiração, as pernas bambeavam, eu pingava
de suor. Entrei sem fome na primeira lanchonete que encontrei no calçadão do centro
de Jacobina e liquidei em segundos a garrafa de um litro e meio de água. Na
mesa ao lado, três idosos relembravam fofocas e intrigas das últimas eleições
municipais. Um deles, o mais velho da mesa, desconsolado, lamentava os parcos trinta
e oito votos recebidos para vereador. Os outros o aconselhavam a se preparar
melhor para a próxima, se aproximando das pessoas certas e influentes da
cidade.
Jantei novamente no Alto da Missão com mais movimento que
na noite anterior. O vento incomodava, não pelo frio, mas pela violência das
rajadas. A maioria dos frequentadores, no entanto, não se importava e curtia a
noite, animada com música ao vivo ao lado da igreja.
O quiosque de informações turísticas, mantido pela
prefeitura de Jacobina, foi estranhamente cedido à agência privada de turismo
de outra cidade. Em flagrante promiscuidade entre o público e o privado, usando
dinheiro público, a raposa da agência nada informava de interesse geral. Os
guias adolescentes não dispunham de mapas, croquis ou qualquer dica útil sobre
as trilhas ou cachoeiras dos arredores. Por outro lado, a tal agência vendia
serviços de guias a preços salgados.
Deixei o quiosque privatizado e caminhei a outro vale. A
estradinha coberta de cascalhos subia gradualmente ao lado do rio do Ouro, córrego
com pedras, corredeiras e águas avermelhadas. Passei ao lado de duas pequenas
represas pertencentes à antiga Companhia de Força e Luz de Jacobina. A
estradinha se estreitava, ora no mesmo nível do rio, ora metros acima, até
cortá-lo mais à frente, onde havia blocos de pedras de antigos trabalhos de
garimpo ou pesquisa mineral. Poucos metros adiante do riacho, a trilha se
fechou de vez, praticamente desapareceu. De ambos os lados do vale, encostas
íngremes e rochosas das serras que cercam a zona urbana, gargantas estreitas
cortando os paredões.
De volta à cidade, relaxei sob as árvores em frente ao
bar, entre caipirinhas, desgraçadamente coadas e com gelo picado, saborosa
carne de sol, sombra refrescante, visual preguiçoso do final de tarde. O céu
limpo e a luz inclinada do sol imprimiam belos tons de cores nos paredões das
serras.
Justifiquei rapidamente a minha ausência no segundo turno
das eleições municipais no cartório eleitoral. E imediatamente botei o pé na
estrada, a mesma de dias antes.
A cachoeira menor recebia uma família acolhedora, com
panelas, fogo, comida. Decidi pegar o caminho longo com visual estonteante das
montanhas e das gargantas. A trilha bastante inclinada levou ao poço no pé da
cachoeira, bela apesar do pouco volume de água. Sombras em meio a árvores
garantiam o conforto necessário. Depois de horas de banhos, preguiça e
conversas soltas, refiz a mesma trilha da ida, peguei a estradinha de volta e
mergulhei de cabeça em comida substanciosa na cidade.
Decidi encerrar no ápice aquela viagem pelos sertões de
Minas Gerais e Bahia. Comprei passagem para São Paulo na única empresa que
atendia Jacobina, a monopolista Gontijo.
O assento livre ao lado me permitiu esticar as pernas e
ficar mais à vontade. Os homens do fundo do ônibus vomitavam chavões machistas,
previsíveis, sem qualquer humor. Preferi cochilar e apreciar a paisagem,
especialmente nas imediações do vale do Jequitinhonha, guardando relevo
acidentado, montanhas, esquisitas formações rochosas.
Desembarquei no terminal rodoviário do Tietê em São
Paulo, em finais de outubro, depois do sempre crônico congestionamento ao longo
da marginal Tietê. Mas ainda carente de mais incursões ao norte de Minas
Gerais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário