...continuação
Do outro lado do rio, em São Félix do Coribe, barulhenta
passeata e comício de determinada candidatura agitava as ruas e praças da
cidade. Passei ao lado de comício na zona central da cidade onde o orador
estava completamente bêbado. Mal se aguentava em pé ou concluía as frases.
Se não fosse o rio Corrente, dividindo-a da irmã São Félix
do Coribe, nada atrairia em Santa Maria da Vitória. Os moradores não aguentavam
mais a campanha eleitoreira, nem os insuportáveis cabos eleitorais, chatos por
definição. Todos faziam contagem regressiva até o dia das eleições a partir do
qual ficarem livres da tortura comercial e sonora. Fogos, carros de som no
último volume, locutores histéricos, refrões musicais de vomitar, buzinas.
Questões sociais, políticas, culturais passavam longe, muito longe daquilo
tudo.
Belo fim de tarde com o sol se pondo atrás da cidade,
iluminando o rio Corrente e a cidade de São Félix do Coribe. Pescadores sem
maiores pretensões, lavadeiras, crianças se banhavam. Barcos esparsos trocavam
de margem.
No início da noite, após passeata pelas ruas da cidade, os
apoiadores do candidato da esquerda organizaram comício na praça da Matriz, que
lotou de simpatizantes e curiosos. A música, a dança e a irreverência baianas
não poderiam faltar. Foram quase duas horas e meia de comício, rojões,
assobios, buzinas, discursos. Haja resistência para aguentar tanta falação,
especialmente a do primeiro orador, que usou e abusou de entonação, vocabulário
e conteúdo típicos de antes da revolução de 1930.
O monopólio da empresa Novo Horizonte desrespeitava os
usuários, certa da impunidade e da falta de concorrência. A estrada estadual em
péssimo estado, cheia de buracos e irregularidades no asfalto, impedia o ônibus
de desenvolver velocidade em região sob o risco de assaltos. Pela janela, bois
mortos nas fazendas que devastaram a vegetação original, pouco gado e nada
plantado em terreno plano com serrotes isolados. Na parada na beira da BR-242,
mais carreata de campanha eleitoreira ao som de lixo comercial em ritmo de
carnaval baiano, em lugar sujo e poluído, cercado de caminhões, carretas.
Repeti a hospedagem de três anos antes ao desembarcar no
meio da noite em Ibotirama. No caminho ao hotel, pelo acostamento da rodovia,
três meninas menores de idade desfilavam exageradamente maquiadas, usando
roupas curtas, brilhantes, provocantes. Do distante cais da cidade, na margem
esquerda do São Francisco, se ouviam rojões e fogos de mais um comício
despolitizado.
Estufei de tanto comer no farto café da manhã do hotel. Na
primeira metade do percurso do ônibus, ninguém, nenhuma casa, apenas a caatinga
de tons acastanhados, raros pastos vazios, serrotes alongados ao fundo do
horizonte. A partir das águas esverdeadas do rio Grande, as casas e as pessoas
deram sinal de vida. A vegetação, porém, continuava seca e monocromática.
Desembarquei na minúscula rodoviária de Barra, bem no meio da feira e dos vendedores
ambulantes.
Hospedei-me em quarto com sacada ampla, de frente para o
encontro das águas esverdeadas do Grande e as barrentas do São Francisco, com
direita à brisa suave que soprava sempre.
Barra é completamente plana, espalhada, guardando ruas
estreitas e casario do início do século XX na porção central. E o oeste baiano
era mais ligado à região de Goiânia e Brasília do que à própria capital do
estado. A autêntica música sertaneja e o lixo descartável que se apoderou do
gênero predominavam nos ambientes.
À noite, em frente à catedral de São Francisco, houve
missa ao ar livre, lotando a praça de féis e curiosos. O frei Dom Luís Cápio,
bispo regional que por duas vezes fez greve de fome contra a transposição do
rio São Francisco, não poderia faltar.
Acordei ao som de fogos e rojões, antes mesmo do
amanhecer. Centenas de pessoas se aglomeravam na murada da orla a fim de
assistirem à procissão de barcos pelas águas do rio. Era dia de São Francisco e
o barco da frente, o maior e mais tomado de fiéis, carregava a imagem do santo.
Dezenas de outros barcos o seguiam. O povo, em terra e nos barcos, aplaudia a
passagem da imagem saída do cais em frente ao mercado municipal, tanto na ida
como na volta. A imagem foi reconduzida em procissão pelas ruas até a catedral
de São Francisco, em frente da qual, a céu aberto, foi rezada missa na praça.
Pela margem esquerda do rio Grande, ao acabar a rua
calçada, peguei trilha na beira das águas esverdeadas. Conversei com pescador que
recolheu da linha apenas um piau e um curimatã. Concordamos sobre a necessidade
de revitalização sustentável do vale do São Francisco, contra a transposição do
rio que manteria a concentração de água e da terra em poucas mãos, as mesmas
causadoras da miséria da região. Me refugiei sob a cobertura de telhas de
cerâmica do restaurante da beira do rio. Bebi umas e outras, comi surubim frito
com salada e arroz, observei o fraco movimento da tarde. Voltei me derretendo
sob o sol absurdo, ao longo de ruas vazias e do silêncio geral.
A missa principal em homenagem ao padroeiro da cidade, São
Francisco, ocorreu à noite em frente à catedral, na praça repleta de fiéis, a
maioria vestida caprichosamente, a caráter, com direito a roupas sociais,
vestidos longos, maquiagens, penteados e tudo mais. Aniversariante também, o
frei Dom Luís Cápio discursou e foi muito aplaudido. No final, várias crianças
leram dedicatórias da escola referentes ao papel social e ambiental
desempenhado pelo bispo.
A cidade acordou cedo para a votação do primeiro turno.
Escolhi seção eleitoral menos cheia em escola na praça da catedral e
justifiquei a ausência.
Caminhei pela beira do São Francisco até próximo ao porto
da balsa que liga Barra à rodovia federal, a Xique-xique e à capital baiana. Na
barranca do rio parcialmente habitada, casas pobres e casebres de taipa
miseráveis. Poucos barcos levavam pescadores debaixo de sol implacável.
Nenhum restaurante, bar ou lanchonete, abriu para o almoço
no domingo de eleição municipal. A salvação foi um mercadinho, onde apelei para
bolacha, achocolatado e iogurte. Sentei sob a sombra da árvore na calçada alta
do rio e enganei o estômago diante do visual encantador.
Após o fechamento das urnas, a cidade se deslocou para o
local das apurações. Em frente ao fórum municipal, centenas de barrenses
acompanhavam pelos alto-falantes as parciais de cada seção eleitoral. Os bares
ao redor entupiram de bêbados. Os moradores fecharam as ruas. Os partidários de
cada candidatura comemoravam as vitórias ao pronunciamento dos números. Os
apoiadores do candidato vencedor prometiam muitas e animadas festas após o
resultado definitivo.
Tomei lotação matinal a Xique-xique que, após cruzar de
balsa o São Francisco, pegou estrada arrebentada, pedaços de asfalto, buracos,
cinco pontes em reconstrução, obrigando a desvios de terra cheios de poeira. O
veículo partiu lotado e eu mal conseguia mover os braços e as pernas. O asfalto
estreito e sem acostamento virou alameda de calumbis, traiçoeiros pelos
espinhos ao longo dos galhos flexíveis. Atrás deles, favelas, mandacarus,
facheiros, arbustos ressecados e retorcidos pela seca extrema e, é claro, o
símbolo do município, o xiquexique. Paisagem autenticamente de caatinga, puro
semiárido brasileiro. A rodovia dobrou para sentido norte e cruzou parte de
serrotes pedregosos, ainda mais pobres em vegetação. Blocos e mais blocos
rochosos, soltos, fragmentados, como se a região tivesse passado por forte
tremor de terra.
E a perua entrou em Xique-xique sob um calor incomensurável.
Plana e de traçado quadricular, na margem direita do São Francisco, a cidade
mostrava-se dinâmica comercialmente. O prefeito eleito mandou distribuir
centenas de caixas de cerveja à população, que não parava de cantar, gritar,
buzinar, debochar do adversário derrotado ao som de gravações de choros de
crianças nos alto-falantes dos carros, mais músicas que o satirizavam. A
prefeitura e as repartições públicas, aí incluídas postos de saúde e escolas,
não funcionaram.
Não se via o São Francisco das ruas de Xique-xique, embora
fluísse ali ao lado. Alto, extenso e espesso muro de contenção isolava a margem
do rio das ruas do centro da cidade. Em frente e sob o muro, pequenos comércios
se alinhavam amontoados, formando conjunto decadente, sujo, parcialmente em
ruínas em certos pontos, semiabandonado, mas extremamente fotogênico. De
oficinas a salões de beleza, de mercadinhos a puteiros, de lojas de material de
construção a selarias ou peixarias, parede a parede, em ambos os lados da rua
estreita. No final da parte murada, cubículos de mercado de variedades e bancas
de peixes disputavam espaço com outros cubículos minúsculos onde se vendiam
bebidas alcoólicas de última categoria, porém baratas, para alegria dos bêbados
e putas em fim de carreira, essas geralmente no colo daqueles, sorrindo
sorrisos com pouco ou nenhum dente.
Almocei e me refresquei sob a sombra da praça até a
lotação pegar o caminho de volta a Barra, no meio da tarde, quando o sol e o
calor provocaram desmaios de passageiros sufocados no veículo.
Barra se mostrava silenciosa e tranquila. O bucolismo da
cidade enaltecia ainda mais a beleza e a imponência do São Francisco, do
Grande, do casario, das praças e árvores, especialmente durante o silêncio da
noite. A população barrense colocava cadeiras nas calçadas durante a noite ou
sob as sombras do dia e ali conversava, relaxava, observando tudo com olhos
atentos.
Reservei o dia para fazer nada ou quase nada. Ler,
relaxar, comer, descansar, cochilar. Impraticável tomar banho no chuveiro do
hotel durante o dia. A água vinha quente demais da caixa permanentemente
exposta ao sol implacável. Mesmo à noite, eu esperava a água fluir antes de me
molhar. E o vento diurno não refrescava o bafo quente. À noite, sim, sobretudo
na margem do rio, praticamente vazia, o vento valorizava a calmaria.
As estradas me esperavam. Tomei ônibus com destino a
Irecê, parando em Xique-xique. Daí em
diante o cenário de caatinga se acentuou em meio à paisagem ainda mais
rarefeita e ressecada. A rodovia em péssimo estado passava ao lado de
cidadezinhas miseráveis, nas quais a população se derretia no calor de poucas
sombras. Os prefeitos eleitos, adulados por grandes comemorações pela população
manipulada, certamente ignorariam a situação dramática da maioria e
continuariam a desviar verbas públicas para os capitalistas. Somente nas
imediações de Irecê apareceram terrenos plantados com cultivos variados,
especialmente o feijão. Solos arados e irrigados expunham terra boa e fértil,
comprovando, uma vez mais, que o problema do nordeste nunca foi carência de água
ou de terras agriculturáveis, mas sim a injustiça social, a concentração de
terra e de água na mão de poucos.
Em Irecê subi em lotação rumo a percurso por mais estradas
esburacadas. À medida que se aproximava da serra, as nuvens se concentraram e
escureceram no céu, chuviscando rapidamente. A vegetação da serra revelava o
agreste, pouco mais verde e densa que das planícies abaixo. Na subida, queda de
temperatura e aumento da umidade. A lotação me deixou no centro de Morro do
Chapéu.
Após o banho morno saí para jantar. Garoava. O frio e o
vento incomodavam quem vinha da tórrida caatinga. No restaurante em frente ao
hotel, o corredor estreito e alongado culminava em enorme televisor no alto da
parede. O rebanho das mesas olhava como bois para tela luminosa. Tentei puxar
assunto e nada. Avistei garrafa de cachaça artesanal, branca, purinha, nada de
envelhecimento, no meio da prateleira. Saboreei doses do néctar enquanto
esperava a carne de sol com pirão de leite.
Amanheceu dia nublado, frio, com vento e garoa
intermitente, despertando o apetite durante o farto café da manhã no formato de
bufê, entre frutas, sucos, pães, queijos, cuscuz, mingau, gelatina, bolos,
tortas salgadas e doces.
O vento frio me forçou a usar malha pela primeira vez
desde que deixara São Paulo. Morro do Chapéu contava com casario, ruas e praças
normais de cidade pequena do interior baiano. A altitude e clima atípicos para
o nordeste, as cachoeiras e cavernas distantes compunham as vedetes daquele
setor da Chapada Diamantina. Andei sem rumo pelas ruas até avistar serrotes
pedregosos ao fundo da paisagem. As ruas terminaram, contornei o cemitério e
encontrei trilha estreita no sentido das rochas. E me perdi deliciosamente.
continua...
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