...continuação
Buritis ficava entre serras alongadas, bem urbanizada e
arborizada, mais com cara de centro-oeste do que interior mineiro. O rio
Urucuia banhava a parte norte da cidade. Barcos nas margens indicavam maior
relação da população com o rio. A somente quatro horas de ônibus de Brasília, a
cidade respirava o planalto central e exibia jeitão goiano. A maioria das
placas dos veículos era de Brasília, para onde partiam inúmeros ônibus da
rodoviária. Apresentava comércio intenso e diversificado de insumos, máquinas e
implementos agrícolas, materiais de construção, madeireiras, revelando o perfil
agropecuário da região. A cidade vivia para o agronegócio, o que se comprovava
pela presença de transnacionais de sementes, agrotóxicos, maquinários.
O ônibus lotou ainda na zona urbana, levando alguns
infelizes a se segurarem de pé pelo corredor central do ônibus. O trajeto se
estendeu em verdadeira e excitante estrada de terra, quase sempre estreita, com
a vegetação esbarrando nas janelas do ônibus, subidas e descidas, curvas
acentuadas, tendo as serras em ambos os lados, pontes frágeis de madeira sobre
dezenas de rios e riachos, inclusive o próprio Urucuia. A poeira cobria tudo,
olhos, boca, nariz, a cada cruzamento com outros veículos. O ônibus se deparou
com carros de boi, um deles puxado por oito animais. Em outro pedaço, vaqueiros
conduziam o gado, obrigando o ônibus a parar rente ao barranco, esperar a
boiada passar calmamente, sem estouros ou sustos maiores. Inúmeros desembarques
em caminhos laterais e porteiras de vastas fazendas de gado, onde passageiros
eram recepcionados pela família e pelo providencial carrinho de pedreiro para
carregar as malas. O ônibus parou em dois vilarejos para descanso, matar a
sede, tirar água do joelho, lavar rosto e braços cobertos da poeira acumulada.
Santa Inês, o primeiro, já se chamou Passa Três. Goiás-Minas, o segundo, se
erguia sobre a divisa entre Minas Gerais e Goiás.
Apenas três passageiros permaneceram até o fim. Na mesma
rua principal de Formoso onde o ônibus estacionou, entrei no hotel cujo dono me
entregou a chave do quarto, me apontou o acesso e voltou para o sofá da sala. As
várias portas do hotel para a rua jamais se fechavam. Não havia porteiro. A
cidade não oferecia riscos.
Retirei outro carrapato, oriundo das trilhas pelo parque
nacional Grande Sertão Veredas.
Na manhã seguinte caminhei pelas estradas de acesso e pelas
ruas e pracinhas da cidade, levemente inclinada rumo à vereda ao norte, já
quase na divisa com o estado de Goiás. Raras casas antigas ou velhas, ruas
novas e arborizadas, pequeno comércio, bares e lanchonetes na rua principal.
Formoso era ideal para parar, relaxar, puxar assunto com os moradores, deixar o
tempo passar sem pressa, tomar cachaças de primeira. E o hotel, sem o dono ou
qualquer funcionário, se mantinha de portas abertas, permitindo o acesso a
todos os interessados e curiosos.
Após o almoço me recolhi ao hotel a fim de, acompanhando
boa parte dos formosenses, fazer a sesta como se deve.
Bem cedo deixei a chave na porta do quarto, não acordei
ninguém e andei até o ponto de partida do ônibus. Durante o embarque, um rapaz
mudo, popular na cidade, morador de Brasília, descrevia do jeito que podia as
aventuras sexuais durante o fim de semana. Com ruídos guturais, gestos com as
mãos, trejeitos e caretas, entrava em detalhes da abordagem, das danças, dos
abraços e beijos. Os passageiros prestavam atenção com curiosidade.
O veículo saiu lotado com passageiros em pé, que logo
desembarcariam para serem substituídos por novos, também de pé, espalhados ou
esmagados pelo corredor central. De vez em quando eu ouvia os gemidos do
mudinho sentado mais no fundo, provavelmente continuando as descrições das
cenas picantes com as paqueras. Logo após a partida entramos em Goiás, em Sítio
d’Abadia. As cidadezinhas começaram a aparecer, invariavelmente pequenas,
arrumadas, limpas. Ao redor, o cerrado e fazendas de gado.
Após parada em Mambaí, desembarquei na rodoviária de Alvorada
do Norte à espera do segundo ônibus. Belisquei qualquer coisa e esperei sentado
nos bancos de cimento da estação. Aproveitei para observar os dormitórios nas
imediações, dos quais saíam casais ou mulheres com pouca roupa e muita
maquiagem.
O ônibus partiu e logo parou para almoço em restaurante
sujo na divisa entre Goiás e Bahia. Optei por meia dúzia de bananas maçã,
oferecida logo na entrada. Eu e muitos passageiros nos indignamos com a
cobrança pelo uso do banheiro local e utilizamos o do ônibus mesmo.
Já na Bahia, a rodovia subiu a serra, em cujo alto, ao
longo do chapadão, entrou novamente no sinistro e assustador mundo do
agronegócio, desta vez no sudoeste baiano. Monoculturas sem fim e sem
trabalhadores rurais, devastação total do cerrado, trechos com eucaliptos ou
pinus, enormes galpões de metal, propagandas de transnacionais como Bunge, New
Holland, Syngenta, entre outras, além de anúncios de agrotóxicos de vários
tipos. Quase não se viam pessoas, tudo mecanizado e apenas o mínimo do mínimo
de mão de obra. Os duzentos quilômetros do ramal para Correntina se mostraram
de uma monotonia sem igual. Monoculturas de ambos os lados, deserto humano,
tristeza e desolação. Nenhuma cidade ou vilarejo. Nada. Somente pouco antes da
chegada o cerrado voltou a predominar, com vegetação retorcida e de pequeno
porte.
O quarto da pousada em Correntina estava infestado de nuvens
de muriçocas. Pó preto se acumulava nos cantos do piso decorrente de fissuras
nas paredes. A pia do banheiro estava entupida. A ducha do chuveiro espirrava
água para todos os lados, menos para baixo. Coloquei o repelente de tomada e
não surtiu efeito. As muriçocas reinavam absolutas no quarto e no banheiro. Mantive
as janelas fechadas, o ar condicionado ligado, o repelente na tomada, e saí
para dar uma volta.
Os fundos da pousada davam para a margem do rio das Éguas,
com corredeiras, pedras, curvas, correnteza forte, belíssimo naquela luz de fim
de tarde. Não poderiam faltar os bares na beira com direito a som alto de
música para lá de descartável. Em competição, veículos estacionados detonavam,
dos alto-falantes instalados nos porta-malas abertos, mais lixo comercial.
Pessoas se banhavam nas águas entre as pedras. Lavadeiras esfregavam e
enxaguavam roupas. Os mais chapados requebravam o esqueleto, dentro e fora
d’água.
A frente da pousada dava para a praça da Matriz, atrás da
qual subiam ruazinhas estreitas, casario antigo, tudo em terreno inclinado,
morro acima. Ali Correntina era mais calma, mais humana. Troquei frases com
morador histórico da cidade, de mais de 80 anos de vida, cheio de “causos” para
contar, desde a emancipação do município, os garimpos de ouro, os indígenas, os
animais de caça. Muito simpático e falante, rendeu bons momentos de aprendizado
sobre a cultura local naqueles dias.
E enfrentei novamente a nuvem de muriçocas no quarto do
hotel. Voavam e esbarravam em mim, mas até aquele momento ainda não tinham me
picado. Cheguei a me barbear, lavar roupas, tomar banho, e nada de ataques.
Correntina acalmou-se assim que escureceu. Os bares na
beira do rio fecharam, os veículos de porta-malas abertos debandaram, o local
se esvaziou tornando-se mais bonito, apenas com o som das águas agitadas do rio
das Éguas. As ruazinhas estreitas e inclinadas nas imediações da praça da
Matriz ficaram desertas, valorizando o casario, os becos, o conjunto
arquitetônico.
Refrescou durante a noite, mas as muriçocas permaneceram
no quarto. O incrível é que centenas delas, que sobrevoavam o quarto e o
banheiro, ou simplesmente estacionavam nas paredes e teto, não me picaram.
Aproveitei para abrir todas as janelas e assistir algumas debandarem para o
frio da madrugada.
A sonoplastia da casa vizinha, naquele início da manhã,
vinha de legítima música caipira da estação de rádio local. Era o oeste baiano
que, assim como os mineiros do noroeste, os gerais de ambos os lados da
fronteira estadual, giravam em torno da cultura goiana e brasiliense.
Caminhei bastante pelas margens esquerda e direita do rio
das Éguas. Parte pelo estreito calçadão, por onde os moradores circulavam em
passeios ou em exercícios físicos, parte pelas trilhas no meio da mata ciliar. O
rio era deslumbrante. As águas cristalinas, as corredeiras, as pedras, as
pequenas quedas d’água, as minúsculas enseadas. Em ambas as margens, de maneira
esparsa, lavadeiras, acompanhadas ou não pela família, faziam o serviço diário.
As águas límpidas eram um convite a entrar, mergulhar, ouvir o som da
correnteza, aqui ou ali, bastando escolher o ponto favorito.
Pena que rio acima surgiam cercas de propriedade privada
impedindo o acesso público. Pelos mapas, o rio das Éguas nascia acima da zona
de monoculturas das transnacionais do extremo oeste da Bahia. Ao utilizarem
agrotóxicos, desmatarem o cerrado, introduzirem plantas exóticas na região,
como eucalipto e outras espécies plantadas, como ficaria o impacto
socioambiental no rio das Éguas, nos demais rios e riachos que correm no mesmo
sentido, todos desaguando no São Francisco? Como estariam as comunidades que
vivem das águas e dos peixes dos rios?
Na região do mercado municipal, mais moderna, mais
movimentada e mais feia que o centro antigo, além dos produtos tradicionais vendidos,
bancas ofereciam almoço com churrasco grelhado na calçada.
Consertei o entupimento na pia do banheiro do quarto do
hotel, retirando o excesso de cabelos acumulados há tempos. A moça da limpeza
lavou o chão e os móveis, deixando o ambiente mais apresentável. O chuveiro, no
entanto, continuava péssimo. Tentei desenroscar a tampa de baixo para limpá-lo,
mas nem se moveu. As muriçocas, em menor quantidade, pela limpeza, pela
utilização do quarto, pelas janelas abertas, continuavam presentes, voando, pousando,
e nada de picadas.
À tarde escolhi pequena enseada na margem direita do rio
das Éguas, a montante da última passarela, e me deixei ficar ali, entre
mergulhos, relaxadas sobre a pedra arredondada, com os pés submersos, até o sol
se esconder atrás das árvores da margem oposta.
Degustei suculenta moqueca de pescada amarela, precedida
de duas doses de cachaça artesanal, e sucedida pela jarra de suco de graviola,
no próprio restaurante da pousada. O dono tinha a mania de colocar sempre o
mesmo CD de cantor brasileiro interpretando canções italianas. E tocava dezenas
e dezenas de vezes.
Os bares na beira do rio fechavam à noite, pelo menos
durante os dias de semana. Caminhar por ali nesse horário era estonteante. O
rio das Éguas corria quase no mesmo nível da rua, emitindo o som relaxante das
águas agitadas. O céu estrelado, o cheiro de natureza, nenhum outro som vindo
da cidade, pouca luz. Eu adorava permanecer ali, sobre uma das passarelas, bem
no meio dela e relaxava, relaxava, relaxava...
Nas trilhas e minúsculas enseadas à montante, encontrei
concentração de embalagens de camisinhas. Os casais sabiam muito bem aproveitar
a vida, escolhendo a dedo o local do amor. Só faltou levar o lixo de volta.
Escolhi prainha do rio das Éguas, com sol e grandes pedras
sob a sombra, para me refrescar nas águas frias da manhã. Assim que eu punha o
corpo ou simplesmente os pés dentro da água, peixinhos logo me rodeavam. Alguns
só me observavam, outros tocavam, os mais ousados, ou as mais ousadas, me
beijavam, mordiam.
E começaram a chegar os turistas de fins de semana para
lotar os hotéis e pousadas, em carros com placas da região, mas principalmente
de Brasília. Casais, grupos e famílias prometiam agitação. E eu, nada
interessado nisso, muito pelo contrário, em busca da tranquilidade dos últimos
dias do meio da semana, me preparava para partir na manhã seguinte. Bares,
fechados durante a semana, abriram, plantaram imensas caixas de som na porta, e
dá-lhe lixo comercial baiano.
Ao acordar, ainda sob os lençóis, com a ampla janela
aberta sobre a cabeceira da cama, fui presenteado pela entrada de um
beija-flor. Batendo velozmente as asas, parou no meio do quarto, observou todo
o ambiente e, segundos depois, disparou voando para fora.
Mesmo eu melhorando bastante a qualidade do quarto, entre
pequenos consertos, com a entrada de luz e ventilação permanente, o problema da
pousada residia no desleixo do arrendatário. Embora de família ligada ao ramo
de hotéis e restaurantes em outras cidades, ele não se incomodava com o estado
do estabelecimento e culpava os funcionários por tudo. Ainda reclamava que nada
tinha para fazer, que o tempo demorava a passar. E se criara em Salvador e passara
anos em Goiânia, cidades tradicionais no ramo hoteleiro.
O sujeito me contou como grande proeza ter tomado
anabolizantes na adolescência quando começou a praticar musculação em academias
de Salvador. Os músculos do braço e do antebraço cresceram mais de dez
centímetros em apenas dois meses. Afirmou que na época costumava ter ataques de
calor, suor constante, avermelhamento do corpo, taquicardia, tonturas. Garantiu
que há anos não ingeria aqueles produtos tóxicos, mas, embora em menor grau, os
efeitos colaterais assustadores continuavam e preocupavam.
O ônibus partiu quase vazio para Santa Maria da Vitória,
onde embarquei em outro veículo que, via asfalto para lá de esburacado, ao lado
de caatinga ou de cerrado, me deixou em Cocos.
continua...
Olá!
ResponderExcluirEstou acompanhando seu relatinho rs
Adoro como descreve a paisagem, me vejo tomando banho de rio tão refrescante. Mas não fica só nisto... tem também as monoculturas e os agrotóxicos que tanto prejudicam o solo e a população que vai fazer uso destes alimentos.
Vou parar...
Até a próxima!
Bjinhos!
Tinha certeza que você iria gostar. Tem bom gosto, curiosidade, sensibilidade. Continue acompanhando e comentando...Beijos!
ResponderExcluirMuito bom o seu relato.
ResponderExcluirVocê descreve como ninguém a realidade do oeste baiano. O agronegócio esta devastando o cerrado e o rio de correntina. Em pouco tempo toda aquela beleza irá desaparecer para sempre.
Publicarei parte de seu relato na pagina do facebook Correntina, Rio das Éguas. Estamos tentando sensibilizar e mobilizar a população para acordar para o problema. Infelizmente a população é muito indolente e os politicos e grupos dominantes da cidade fazem de tudo para manter o povo ignorante. Quem se atreve a mostrar este problema ambiental é ameaçado, mas com a internet é um pouco melhor para divulgar estas questões.
Olá, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirNão devemos desanimar. A luta, popular e organizada pelos envolvidos, é a única saída, embora possa parecer inviável nesses tempos virtuais.
Vamos denunciar os crimes do agronegócio. Vamos divulgar as lutas, ainda que pequenas e embrionárias.
Vamos juntar mais e mais gente.
Lutar sempre vale a pena!
Abraços!