...continuação
A cidade baiana mais distante da capital Salvador, Cocos contava
com várias praças arborizadas e alongadas, vida noturna com as galeras enchendo
as ruas, praças, bares, lanchonetes, sorveterias. O restaurante de frente à
simpática praça era frequentado pela elite local, famílias e casais arrumadinhos.
As mulheres se produziam como se fossem a casamentos chiques, com roupas, maquiagem,
cabelos preparados por horas. Quase todos os clientes vinham com as respectivas
caminhonetes de cabines duplas, mais parecendo item de identificação e
ostentação daquela camada social. Uns imitavam os outros numa espécie de
concorrência em busca da melhor aparência. Seria vergonhoso saber que o colega
adquirira caminhonete nova, invariavelmente da cor preta, e não providenciar
uma também, tão ou mais cara, para poder desfilar na cidade e baixar naquela
churrascaria com o brinquedinho de exibição. Os casais entravam, cumprimentavam
os conhecidos, sentavam, raramente conversavam entre si, mais se preocupando em
analisar os das outras mesas. Como não poderia deixar de ser, eu passei à
atração extraterrestre naquela noite.
Cocos atraía mais à noite, pelo movimento dos moradores e
também pelo urbanismo mais voltado à iluminação artificial. As casas antigas
sobreviventes, em meio a construções mais modernas, chamavam atenção,
especialmente as menos cuidadas. As pintadas e retocadas perdiam o charme
original.
Soava como mantra o CD da banda de forró eletrônico de
sempre durante a viagem. Mantra porque ouviam sempre, a toda hora, em todos os
lugares, repetidas vezes, uma atrás da outra, sem parar. Parecia que não
existia outro CD no mundo, por isso restava tocar aquele CD, somente aquele CD,
sempre aquele CD. E aquilo entrava nos ossos, no cérebro, nas células, não
queria mais sair. A música descartável sempre funcionou assim, em todos os
lugares do mundo onde reinava a indústria cultural que transforma tudo em
mercadoria. Tocava-se à exaustão, rumo ao limite do insuportável, até brotar a
repugnância, para repeli-la de uma hora para outra, substituindo-a por outro
lixo descartável. E assim por diante. Massacre sobre povo sem oportunidade de
ouvir diferenças e de desenvolver o gosto. O tal do axé baiano torturava. Como
se não bastassem as péssimas letras, os ouvintes eram obrigados a aturar as
chamadas de incentivo dos vocalistas, sempre as mesmas, em todas as faixas ao
vivo, em todos os CD´s, de todas as bandas do gênero, há anos sem novidades, de
minuto a minuto:
“tire o pé do chão”, “levanta a mãozinha e bate na palma
da mão”, “eu quero ouvir”.
A pousada de Cocos contava com varanda em frente à
recepção, cadeiras e deliciosa sombra da cobertura de telhas de cerâmica. Local
ideal para trocar ideias com o recepcionista, hóspedes que passam por ali,
moradores, conhecidos. Assuntos diversos iam e vinham. A hora passava voando. E
todos se alegravam com o ambiente formado, tão simples e acolhedor.
Acordei de madrugada, ainda escuro, e sentei na estação
rodoviária para aguardar o ônibus. A estrada de chão, cortando terrenos
ondulados cobertos pela caatinga e raras manchas de cerrado, sob a luz do
início da manhã, valorizava a paisagem rústica e me animou diante das possibilidades.
Veio a divisa entre Bahia e Minas Gerais sobre o rio Carinhanha e a vila de
Pitarana do lado mineiro. Logo surgiu no horizonte a cidade de Montalvânia.
O hotel era afastado do centro, em mau estado, com quartos
ruins e caros. O proprietário, o irmão, colegas em volta, não conseguiam
acreditar que eu viajava pela região a passeio. Insistiam que eu era comprador
de gado, de terras, ou algum industrial. Mudavam de estratégia e sugeriram que
eu passasse em escritórios de contabilidade ou da prefeitura e averiguasse a
possibilidade de emprego. Não houve jeito de convencê-los.
Fundada por Antônio Montalvão, filósofo e visionário, a
cidade guardava relevo ondulado, nenhuma construção interessante ou antiga,
tudo desleixado, sem urbanismo atraente. Talvez a única coisa que chamasse
atenção fossem as placas das ruas da cidade. Eram nomes de filósofos,
pensadores, cientistas, escritores, músicos, artistas, do mundo inteiro. O
hotel ficava na avenida Confúcio, o mercado na praça Platão, a travessa da
rodoviária chamava-se Marx, a avenida era Lao Tsé, e assim por diante.
Além de dois ou três restaurantes, bares e trailers de
lanches abriram naquela noite. A churrascaria do almoço seria ideal se as mesas
não estivessem em fila, lembrando escola primária. Os frequentadores de frente,
não para a professora, mas para o televisor, se massacravam e se idiotizavam
durante as refeições.
No mapa de Montalvânia, afixado na entrada do hotel, notei
uma estrada mais estreita marcada apenas com a expressão “para fazendas e montanhas”.
Era a minha cara e exatamente o que buscava.
Cruzei a ponte sobre o rio Cochá, dobrei à esquerda na rua
Luis de Camões e logo andava sobre a estradinha de chão, rumo aos confins do
noroeste da cidade. A caminhada não oferecia cenários estupendos, mas o tráfego
de veículos era mínimo, de tal maneira que eu permanecia no meio da via sem
sobressaltos. Habitações, currais e terrenos abandonados na primeira parte, tudo
caindo aos pedaços, materiais apodrecidos, deixados para trás, sem ninguém por
perto. Mais à frente as áreas mostravam-se utilizadas por pequenas plantações,
criações de gado e galinha, entremeadas por vastos campos vazios. Praticamente
nada restava da vegetação original, da caatinga ao agreste, sobre o relevo
ondulado.
Cumprimentei inúmeros moradores, troquei palavras com
outros, inclusive com garoto que vendia bijuterias femininas de casa em casa. Reencontrei
a mulher que viajara com a criança no colo no mesmo ônibus vindo de Cocos. E
acenava para os motoqueiros e ciclistas que passavam em sentido contrário. Aquela
estradinha seguia ao distrito de Capitânia.
Retornei à cidade após mais de quatro horas de caminhada
sob o sol do sertão mineiro. Somente um litro de água depois é que pedi a
comida para recuperar as energias. Ao pagar a conta no balcão precário, sobre a
prateleira ainda mais precária, ao lado de outras bebidas vagabundas, avistei
cachaças de alambique produzidas na região. Prometi saboreá-las à noite.
E o mantra sonoro do momento continuava a massacrar
corações e mentes. Não havia saída. Eu começava a desconfiar que todos os
demais CD´s desapareceram da face da Terra e aos pobres ouvintes restava apenas
aquilo. Daí a necessidade de tocá-lo o dia todo, repetidas vezes, sem
interrupções, para deleite de uns e tortura de outros.
Nada como dar tempo ao tempo, dar crédito ao local e a mim
mesmo. O quarto do hotel, no final das contas, não era de se jogar fora. O bom
colchão e o silêncio da noite me proporcionavam ótimo sono. A ampla janela,
atrás das cabeceiras das camas, garantia claridade e prazer nas leituras de Noites do Sertão de Guimarães Rosa. O
café da manhã era substancioso. Os dois irmãos proprietários foram gentis
comigo de acordo com a rusticidade deles. A comida na churrascaria disposta
como sala de aula me satisfazia. Os moradores sorriam, cumprimentavam e, se eu
parasse ou mesmo diminuísse o ritmo da caminhada, puxavam prosa divertida e sem
compromisso.
Em manhã de caminhada leve, comecei pela avenida Confúcio,
dobrei na rua Pitágoras, peguei a avenida Lao Tsé. Experimentei a margem
direita do rio Cochá, antes de cruzar a ponte, e dei de cara com trecho
bastante degradado. Tubulações de esgoto, ainda que temporariamente secas, na
cara do rio, murada em mau estado, rua mais parecendo canteiro de obras, mas
sem obras, dois bares decrépitos, um deles com amplo espaço coberto e
ventilado, um quiosque de frente à minúscula queda d’água.
Segui adiante da ponte e entrei na menos usada das vias
para a cidadezinha de Juvenilha. Estradinha estreita de chão, cruzando campos e
fazendas com a serra ao fundo. A luminosidade do sol e do céu sempre azul, sem
nuvens, o chão arenoso claro, valorizava mesmo as coisas sem beleza.
Embarquei à tarde na rodoviária. Horas depois, em meio à
estradinha de chão, furou o pneu do ônibus. O motorista encostou ao lado da
borracharia mais próxima, permanecendo ali por quase uma hora e meia para
colocar o estepe e tapar o furo na câmara. Caminhões e mais caminhões carregados
até o topo de carvão para as siderúrgicas passavam no rumo sul. Trafegavam
inclinados, tal o excesso de carga.
Depois de passar por Manga, Itacarambi e pela vila de
Fabião I, o ônibus entrou em Januária.
Na orla do centro da cidade, de onde antes ancoravam os
vapores que transportavam passageiros, o São Francisco se afastava mais de cem
metros. Desci as escadas, caminhei pela areia e atingi o barranco que descia às
águas.
A população se entristecia diante da situação calamitosa na
qual se encontrava o São Francisco. O que antes fora referência de transportes,
fonte de água e peixes, lazer, se degradara a ponto de quase morrer. O
desmatamento, sobretudo das matas ciliares, causando a extinção de afluentes, o
assoreamento, aliada à poluição urbana e industrial que despejavam efluentes
sem controle, matava o tão famoso rio de integração nacional. Tímidas faixas
nas praças e avenidas da cidade pediam à população que salvasse o rio.
Insuficiente. O São Francisco necessitava urgentemente de profunda
revitalização ao longo dos cinco estados por onde corria. Movimentos sociais
organizados lutavam pelo envolvimento de todos no processo, responsabilizando o
grande capital, ou seja, as indústrias, o agronegócio, o latifúndio, pela
degradação socioambiental do vale. E denunciavam o projeto de transposição das
águas do baixo São Francisco como mais uma obra a favorecer os capitalistas em
detrimento da maioria pobre e miserável que dependia do rio.
A vida noturna fervia nas imediações da orla fluvial.
Pizzarias, churrascarias, peixarias se distribuíam pela região.
Estabelecimentos espalhavam mesas pelas praças e calçadas. Garçons eram
obrigados a atravessar a rua com bandejas para atender os fregueses das mesas
na outra calçada.
Pela manhã, encarei o caminho a pé ao povoado de Brejo do
Amparo, berço da cidade de Januária. Pequeno, acolhedor, simpático, tranquilo,
bucólico. Casas antigas, típicas do interior do Brasil, se dispunham ao pé de
serrotes de calcário escuro. A vegetação transitava do cerrado à caatinga.
Árvores frondosas de flores avermelhadas coloriam o conjunto de casas.
Logo surgiram crianças que me pediram para
fotografá-las. Agradeceram, não pediram nada, seguindo com os afazeres diários.
Conversei com moradora sobre a vida e a seca prolongada. Entrei em boteco
composto pelo balcão de madeira, uma prateleira velha e nada mais, tudo caindo
aos pedaços, mas, ainda assim, fascinante. O dono pretendia reformar o
estabelecimento, mas o faturamento e o dinheiro herdado da família iam todo
para a bebida. Nem era meio-dia e o sujeito não se aguentava em pé.
continua...
Achei o seu roteiro e suas sensações muito interessantes. É sempre importante que os brasileiros viajem pelos nossos interiores, especialmente por paradas não badaladas pela indústria do turismo. Parabéns!
ResponderExcluirO roteiro é interessante mas, ao mesmo tempo, mostra as dificuldades e misérias de lugares onde não acontece a interferência do poder público para melhoria de vida desta população tão sofrida.
ResponderExcluirÉ uma pena!
Bjus!
Concordo e acho que somente a população organizada e mobilizada permanentemente pode fazer o poder público ser realmente público. Valeu...beijos!
ResponderExcluirParabéns, acho muito bom esses relatos, uma verdadeira viagem.
ResponderExcluirOi Marcos!
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
Além desse publiquei dezenas de outros relatos referentes a diversas viagens pelos interiores do Brasil e outros países. Conto com os seus comentários.
Abraços!