O voo lotado e cheio de chineses saiu atrasado de São
Paulo devido ao excesso de aeronaves nas pistas e às mudanças de local de
decolagem.
Comi o sanduíche seco servido a bordo. Reli páginas de Arraia de Fogo, de José Mauro de
Vasconcelos, depois de mais de trinta anos da primeira leitura. O ar
condicionado exageradamente frio e sem possibilidades de ajustes incomodou.
O avião pousou em Manaus no meio da noite.
Apelei para táxi caro em razão do adiantado da hora,
inconveniente para ônibus urbano. O motorista salientou a névoa permanente
sobre a cidade devido a sucessivos incêndios urbanos e a queimadas constantes
nos arredores. A falta de ventos e as altas temperaturas, anunciando a próxima
estação das chuvas, só aumentavam a concentração da fumaceira.
Larguei as bagagens no quarto do hotel e saí para dar uma
volta. Apenas o antológico bar do Armando, com música ao vivo e mesas cheias,
dava sinal de vida na região do entorno do Teatro Amazonas e do Largo São
Sebastião.
Escrevi poucas linhas antes de apagar tudo e adormecer.
Raros turistas no café da manhã. Muitos hóspedes a
trabalho, mandando ver em notebooks, celulares, tablets, nas mesinhas da entrada. Até reuniões profissionais
rolavam por ali.
Desci a rua Joaquim Nabuco rumo à margem do rio Negro, nas
imediações da Manaus Moderna, a famosa Escadaria. Avistei o barco desejado.
Desci à margem seca, ultrapassei as areias emporcalhadas de lixo, subi na balsa
flutuante e entrei na embarcação.
Acertei a ida e a volta de Japurá no camarote do piso
Superior, sem banheiro privativo, mas com ar condicionado. Deixei meu nome como
única necessidade de reserva.
O calor, mesmo sob o sol pálido pela névoa seca e
amarelada, massacrava. Eu sentia o suor escorrer pela nuca, peito, costas,
pernas. Me ensopava instantaneamente. Andar se tornava um sacrifício.
Encostei o esqueleto dentro do mercado Adolpho Lisboa,
reformado e turístico, para descansar e matar a sede. Fiquei horas olhando o
vaivém, derretido no banco, sem forças para sair dali. Local simpático, porém
menor e menos fascinante que os congêneres em Belém.
O centro de Manaus, para variar, continuava em reformas
infindáveis. Duravam anos e administrações públicas das mais diversas. Não
acabavam nunca. Tapumes, obras, areia, pedras, terra solta, ruídos de máquinas,
desvios, trechos interditados, inacabados, meio destruídos. Tudo pelo meio,
nada pronto. Nenhum local aprazível para relaxar ao ar livre, nenhuma sombra
natural, nenhum banco ou qualquer coisa para se sentar em área pública. Em
outros bairros, a mesma tristeza. A anti-amazônica e anti-indígena cidade de Manaus,
conforme já lamentara nas visitas anteriores, permanecia desumana, feia, suja,
tórrida, entupida de concreto e asfalto. Andar pela cidade durante o dia era uma
temeridade. Alto risco de insolação, desmaios, grudar no asfalto em fusão. Nada
de agradável pela zona urbana. Em muitos anos de visita à cidade, nenhuma
novidade, infelizmente.
A avenida Eduardo Ribeiro, nos dois últimos quarteirões, entre
o teatro Amazonas e a praça do Congresso, se encontrava fechada com tapumes
metálicos de uma calçada à outra. Obras, mais obras, obras sem fim, na Manaus
do concreto e asfalto.
À noite, a lua quarto-crescente apareceu desimpedida e
prateada. Circulei pelo Largo São Sebastião, então com roda de samba amazonense,
tradicional das quartas-feiras. E apresentações gratuitas de óperas no Teatro
Amazonas, com direito a longas filas pelo público que prestigiava os eventos
públicos. Fui de caldeirada de tambaqui, suculenta, bem temperada com coentro,
alho e cebola, acompanhada de arroz e pirão. Escolhi mesa ao ar livre. A
caldeirada empolgou sob todos os aspectos, a despeito da transpiração abundante
e generalizada, compensando as duas caipirinhas medíocres.
O samba corria
solto com público vibrante e participativo, bem ao lado da banca de tacacá. Tentei
relaxar em banco do largo. Não deu. A temperatura noturna superava os 30 graus.
O suor da caldeirada secara. Mas começaram a escorrer outros filetes causados
pelo calor absurdo da noite manauara. Passei pelo bar do Armando. Música ao
vivo na base de banquinho e violão, frequência interessante, como sempre.
Não consegui sair à rua depois do café da manhã.
É certo que eu só contava os dias até a partida do barco
rumo ao rio Japurá. Nada me atraía na zona urbana. Mas o que decididamente me
reteve no quarto do hotel foi o calor tenebroso daquela manhã. Não o calor
normal de Manaus, já exageradamente intenso. Mas um muito pior, mais tórrido,
mais abafado. O sol brilhava e queimava violentamente quem se movia na
superfície. Tudo parecia que iria se derreter sob o sol, a começar por mim e
especificamente meu cérebro. A cinzenta Manaus, a cidade do concreto e asfalto,
a Manaus sem árvores ou sombras em pleno coração da floresta amazônica,
conseguia se superar a si mesma no calor indecente. A cada ano que eu a
visitava a situação se tornava mais insuportavelmente quente. O vento era bafo
pegando fogo na pele e nas vias respiratórias. Doía e ardia para inalar aquele
ar em chamas.
O extremo desconforto pelas temperaturas indecentes
atingiam os manauaras também, talvez até com mais intensidade do que para mim.
Mesmo acostumados ao caldeirão, os moradores viviam se lamentando, sofriam os
efeitos na saúde, exibiam expressões fatigadas, fugiam desesperados para locais
refrigerados.
Me arrastei lentamente pela curta caminhada ao almoço. Aterrissei
com as roupas grudadas ao suor do corpo. Mas o restaurante compensou.
Caipirinha, picanha grelhada, arroz com brócolis, farofa, vinagrete, suco de
cupuaçu.
À noite as temperaturas se mantiveram elevadas. Mesmo
parado, eu suava e sentia a roupa lixando meu corpo. Jantei sorvetão de
cupuaçu, açaí e tucumã. Sentei no banco do largo. Nada de brisa. Me sentia
pegando fogo.
Pela manhã desci a rua Joaquim Nabuco rumo à Manaus
Moderna, a única região interessante da cidade, a beira do rio Negro, da
Escadaria, do comércio, do mercado e adjacências.
Cruzei a areia seca e suja da beira do rio. Subi na balsa
e no barco. Eu nem precisava confirmar a reserva. Cumprimentei tripulantes,
troquei frases com o proprietário. Observei o carregamento de itens dos mais
variados tipos, provenientes de fora de Manaus, rumo a cidades e comunidades do
vale do rio Japurá, as quais, como regra nos interiores amazonenses, nada
produzem, nem comida, nem nada.
Saí para jantar a fim de encarar novamente a caldeirada de
tambaqui. Não me importei de esperar bastante por mesa do lado de fora, sob a
lua quarto-crescente e o céu coalhado de estrelas, nem de me ensopar de suor
por aquela maravilha da culinária amazonense. Delícia das delícias. O calor do
meio-dia prosseguia à noite.
Mas eu estava feliz da vida. Pela caldeirada precedida de
duas caipirinhas, pela expectativa da partida do barco.
Após o café da manhã fechei tudo e saí do hotel.
Ao subir no barco, peguei a chave do camarote com a cozinheira.
Larguei as bagagens no cubículo limpíssimo, com lençóis nas duas camas do
beliche.
Subi ao piso de Lazer, vazio e silencioso, para escrever
diante do vento quente e constante. A estação das chuvas se aproximava. Não era
comum aquele vento incessante com o barco parado e atracado na balsa flutuante.
Conversei bastante com o professor de história em escola
municipal de Japurá. Maranhense de nascimento e recém-separado em Manaus, o
cinquentão tentava recomeçar a vida em cidade pequena. Parecia deprimido. Levantei
as questões dos municípios do interior do Amazonas não produzirem nada para o
próprio sustento e dependerem de tudo de fora, inclusive verduras, legumes,
frutas, ovos, carnes, etc. As respostas não diferiam muito dos demais a quem
costumo indagar. Falta de interesse dos governos, entre tantas desculpas. Mas e
daí? Ninguém tenta nada?
O barco partiu mergulhando imediatamente na escuridão da
noite, rumo à foz do rio Negro, ao rio Solimões, ao rio Japurá. Observei o
negrume interrompido pelas raras luzes dos vilarejos e comunidades ribeirinhas.
Entrei no camarote levemente refrigerado pelo ar
condicionado que eu regulara a um terço da potência. Apenas fresco. Nada de
frio ou congelamento. No camarote oposto ao meu, um senhor roncava impunemente.
Os vãos das madeiras liberavam o som diretamente nos meus ouvidos. Sublimei e
adormeci com relativa facilidade.
Me levantei ao começar a clarear. Navegávamos em águas do
Solimões. Tomei banho completo no cubículo que fazia vezes de latrina e
chuveiro frio. A água vinha do próprio rio e puxada para as caixas d’água no
piso de Lazer.
A névoa seca e a fumaça das queimadas ofuscavam o
horizonte. Dava para sentir o cheiro, embora não se notasse focos de fogo ou
chamas. O céu, de um amarelado bizarro. A margem direita do Solimões, a mais
próxima, exibia barrancos estratificados de lama ressecada. Acima deles,
eventuais casas isoladas ou comunidades, abastecidas por energia elétrica
instalada pelo programa Luz Para Todos
do governo federal. Abaixo, canoas transportavam madrugadores para pescar o
alimento diário.
O café da manhã a bordo ofereceu pão, margarina, ovos
mexidos, tapioca com margarina, bolo, leite com achocolatado, café, leite, tudo
à vontade. Dava para repetir até matar a fome.continua...
Tomei uma excelente caldeirada de tambaqui neste último fim-de-semana, regada a suco de araçá - um dos maiores privilégios de morar na Amazônia é desfrutar da nossa culinária. Em sua próxima visita a Manaus, avisa-me para comermos peixe assado ou outra caldeirada. Também será uma boa oportunidade de conhecer as cachoeiras de Presidente Figueiredo que, penso eu, ainda não visitaste.
ResponderExcluirAbraços
att, Jafé Praia.
Oi Jafé, obrigado pela visita e comentários.
ResponderExcluirNunca tomei suco de araçá. Já me deu água na boca...
Certamente nos encontraremos para mergulhar nas paisagens e culinária amazonense. Me aguarde...
Abraços!