Atingi a casinha que funcionava como saguão do aeroporto,
ao lado de pista asfaltada de mil e quinhentos metros de comprimento. Além da
pista de pouso, outros caminhos seguiam a comunidades afastadas, mas estreitos
e de terra, no caso lama pelas chuvas torrenciais da noite passada.
Retornei à zona urbana. Me enchi de líquidos variados,
sentado sob a sombra ventilada das mangueiras que dão acesso ao porto. Me
hidratava enquanto contemplava o fraco movimento entre a cidade e o barco. O
rio Japurá corria lá embaixo, lento, da esquerda para a direita. O sol mandava
ver, sem dó nem piedade.
Mais tarde reencontrei o pernambucano em busca do símbolo
do município, com quem segui em peregrinação pelas ruas da cidade. Depois fomos
almoçar perto do mercado, o único estabelecimento aberto que servia refeições
diurnas. Encarei o razoável pacu assado com arroz e feijão. As minúsculas
espinhas, em quantidade excessiva, dificultaram a ingestão do assim denominado Hipoglós em Cuiabá, ou pacu assado.
Um sujeito aloirado, de pele clara, quarentão, de sotaque
gaúcho, desfilava pela cidade a macheza e a arrogância. Eu já reparara no
indivíduo na noite anterior quando do frango grelhado. E o tal reaparecera no
restaurante do almoço, acompanhado dos parceiros. Não olhavam para os lados.
Não dirigiam a palavra a ninguém. Comentavam sobre tantas gramas de ouro ali,
um desvio no peso lá, uma tentativa de roubo dos grãos acolá. E sempre no tom
de machos imbatíveis:
- comigo não!
- comigo o cabra não sobrevive!
- eu furo ele todinho!
Entre outras tantas bravatas. Exceto os colegas do tal,
nenhum do entorno dava a mínima.
O calor ia às alturas. Nem pensar em permanecer nas ruas
andando feito doido. Desci a rampa e me alojei no piso de Lazer do barco,
pegando a fresca e escrevendo as impressões e sensações do dia.
O sol inclinava no horizonte. Subi novamente a rampa. Me
hidratei entre águas e refrigerantes regionais de guaraná. Me sentei nos
degraus da escadaria da rampa. Ensebei. Matei o tempo o quanto pude. Desci a
rampa e me instalei definitivamente no barco.
No momento em que me sentava para escrever no piso de
Lazer e dava olhadelas na já familiar rampa sombreada pelas mangueiras, notei
dois rapazes batendo no piso das escadas com pedaço de pau, justamente onde me
sentara tantas vezes, exatamente onde ficara vendo o tempo passar minutos
antes. Uma cobra de mais dois metros de comprimento se debatia no chão e
tentava se livrar das pancadas. Pela distância não identifiquei se venenosa ou
não. Só sei que era marrom e longa. E, mesmo ali no barco, distante, sentado,
seguro, aquilo me assustou.
O piso Superior se ocupava de apenas treze redes. A
maioria chegada à última hora. E também na última hora, parentes, amigos e
anônimos, se aglomeraram na beira do rio, no final inferior da rampa, muitos
vestidos com roupas de domingo, especialmente montados para despedidas e
curiosidades.
Escurecia. O
prefeito apareceu com a comitiva a fim de se despedir do proprietário. Subiram
a bordo e permaneceram no piso de Lazer consumindo latas de cerveja. Os
cilindros de alumínio seriam largados no piso do barco, rolando de lá para cá.
Sabedor de meus comentários sobre o antes e o depois da
situação das ruas da cidade, o proprietário me apresentou ao prefeito em
pessoa. Trocamos impressões sobre Japurá e o que acontecera em mais de sete
anos de administração. Me vendo conversar tão à vontade com o prefeito, assessores
dele vieram depois me procurar, curiosos. Queriam saber quem eu era de
especial. Me apertavam as mãos. Balbuciavam algo nem sempre inteligível pelo
avançado estado de embriagues.
O coquetel corria solto. O barco ligou os motores e soou o
apito. A comitiva e sua excelência desembarcaram, acenando de terra. O barco
manobrou e deu a partida, rio Japurá abaixo, sob o céu negro, limpo,
escandalosamente estrelado.
Nem bem o barco se pôs em movimento, o vento bem-vindo
bateu, espantando os mosquitos e refrescando a noite quente e abafada. O vento
durante as baixadas de rio batiam mais forte em razão da maior velocidade do
barco em comparação com as subidas.
A equipe administrativa do barco desapareceu sob os
efeitos do álcool ingerido no coquetel de despedida. Os tripulantes, ou se
ocupavam das funções específicas, ou curtiam a ressaca da noitada anterior. Os
passageiros, poucos, se mantiveram nas redes. O ambiente mergulhou em silêncio
profundo.
O barco atracou ainda no escuro no flutuante em Maraã. Amanhecia
deslumbrantemente a jusante da cidade, em tons dourados e sanguíneos, atrás de
barquinhos e flutuantes sobre as águas do Japurá.
Não quis desembarcar em cidade já explorada, feia e
desinteressante. Iria somente suar, suar muito, apenas suar. O céu azul, sem
nuvens, liberava o sol para torrar sem piedade o que estivesse pela frente. As
sombras eram muito procuradas. Nelas, a brisa suave garantia parte do frescor
do começo da manhã.
Depois de o proprietário do barco comprar pirarucus e
tambaquis enormes, vendidos nas canoas que encostavam ao piso Principal, mais remessas
de bananas e cana, o barco zarpou rio Japurá abaixo no meio do dia. Entre os
passageiros embarcados em Maraã, reencontrei da viagem da subida o técnico de
telecomunicações, a serviço na cidade, e uma senhora, empregada doméstica em
Manaus e mãe de sete filhos.
O setor de redes do piso Superior encheu bem e, é claro,
quase todos chegaram à última hora para o embarque. Não havia mais vagas em
nenhum camarote ou suíte.
O massacre sonoro do piso de Lazer prosseguia a todo vapor.
Ou eram mil vezes sem parar o vídeo da apresentação de lixos descartáveis da
indústria cultural ou mil vezes sem parar o lixo do fundamentalismo evangélico
que lucra em cima da fé dos otários. Preferia permanecer no piso Superior, para
ler, escrever reflexões e sensações no diário, ou conversar com passageiros. E
reli até o fim, com imenso prazer, Arraia
de Fogo, de José Mauro de Vasconcelos, me causando melhor impressão que da
primeira vez, décadas antes.
A tarde corria solta, modorrenta, tórrida, abafada. A
sombra na baixada, porém, ficara do meu lado. Podia me sentar encostado na
murada de proteção sem o perigo de entrar em fusão.
O cearense tagarela que iria desembarcar em Japurá não
desembarcou. Mudou de ideia para Maraã. Também não desembarcou. Finalmente
decidiu ficar em comunidade horas a jusante de Maraã. Figura impagável!
As paradas ou reduções de velocidade ocorriam à mercê dos
interesses do proprietário, que saía em voadeira com dois tripulantes à procura
de pirarucus e tambaquis baratos a serem revendidos caros em Manaus. Praticamente
sem carga nos porões, os trajetos de baixada eram usados pelos barcos para
comprar matéria prima, abundantes nas comunidades e flutuantes, a preços
irrisórios. A voadeira nos encontrava mais abaixo cheia de sacos carregados ou
o barco encostava a algum flutuante para carregar.
O sol do meio da tarde valorizava as cores das águas e
margens, da floresta, poucas praias, flutuantes, comunidades, casinhas
isoladas. A poluição sonora do piso de Lazer deu trégua, me permitindo ficar lá
na boa. Um grupo ocupava a mesa para jogar caixeta a vinte e cinco centavos a
rodada. Parei para assistir. Outros apenas relaxavam e olhavam a paisagem
dourada pelo sol.
Parada em flutuante na margem esquerda do Japurá para
carregar quilos e mais quilos de pirarucu e tucunaré. Em seguida, o por do sol,
mais uma vez naquela viagem, foi de babar de emoções. Amarelo, dourado,
laranja, vermelho, e muito brilho, bastante brilho. Demais! E bastou o sol
baixar, antes mesmo de se por completamente, para passageiros subirem ao piso
de Lazer a fim de pegar o ventinho fresco antes do anoitecer.
Iniciei o livro Fogo
Morto, de José Lins do Rego, outra releitura depois de quase quarenta anos.
Os primeiros vinte por cento do livro não animaram.
Alguém havia comentado que os trajetos de baixada de rio
costumam ser mais vibrantes e animados que as subidas. Fato. Os passageiros se
integram mais, usufruem mais do piso de Lazer, se movimentam mais.
Por outro lado, a passeio, eu preferia as viagens de
subida de rio. Sempre fugindo do canal para incrementar o desempenho do motor,
os barcos se aproximam das margens, facilitando observações mais apuradas da
floresta, fauna, barrancos, casas, comunidades, flutuantes, barquinhos de
pesca, vida cabocla, eventuais reservas indígenas. E a velocidade mais lenta,
por navegar contra a corrente, por navegar mais pesado, por dispender mais
tempo nas paradas para descarregar, também permitia apreciar tudo com mais
calma. Nas baixadas, por motivos opostos ao da subida, o barco corria mais,
procurando o canal principal do rio, comumente no centro, longe das margens.
Acordei assustado no início da madrugada. Ouvi um som de
pancada, estrondo forte e seco. Um só, mas intenso e apavorante. Nenhum
movimento diferente do lado de fora. Relaxei e adormeci.
Menos de uma hora depois nova barulheira. Meio acordado,
meio dormindo, inicialmente supus espécie de mutirão de limpeza, no qual os
tripulantes varriam os três pisos ao mesmo tempo. Era com se estivem raspando
tudo. O barco todo balançava. As madeiras rangiam ao se retorcerem. Parecia que
a estrutura da embarcação iria se desconjuntar, se separar, se repuxando de um
lado para outro. As águas, já de volta ao Solimões, estavam agitadas formando
ondas irregulares. Por mais que tentasse, não conseguiria adormecer novamente.
Saí do camarote.
Muitos passageiros estavam acordados, de pé, atentos, mudos,
tensos, amedrontados. Chovia. Raios e relâmpagos estouravam a oeste. O proprietário
se encontrava ao lado da cabine de comando. A coisa era séria e preocupava. Afinal,
ninguém esfregava nada em convés nenhum. O barco cruzava chuva, vento, o
banzeiro e o nervosismo do Solimões. O gordão mulato que dividia o camarote ao
lado, também de pé e longe do cubículo, agourava:
- Não gosto de camarote. Vi muita gente morrer assim,
afogado, sem poder abrir a porta.
Outros ao lado emendavam:
- Muitos morrem ali dentro sem saber o que acontece do
lado de fora.
- Morrem dormindo.
- Mas será que não despertam quando estão se afogando?
- Sei não...
Me sentei junto à mesa de refeições da popa do piso
Superior. Muitos ali mantinham os olhos esbugalhados, de sono e de medo. Pouco ou
nada falavam. As redes oscilavam bastante, batendo uma nas outras.
Duas horas depois o tempo se acalmou. A chuva praticamente
parou. As ondas do Solimões se acalmaram. O barco se aprumou e parou de
balançar.
Entrei no meu camarote e tentei adormecer.
continua...
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