O nível baixo das águas do Solimões exibia barrancos
desfeitos nas margens. O constante processo de desmoronamento e redesenho do
curso do rio obrigava os moradores ribeirinhos a abandonarem as casas em risco
e se mudarem para outro local mais dentro da floresta.
O almoço foi servido na mesa retangular do piso Superior,
a mesma para todas as refeições, e as três incluídas no preço da passagem.
Salada de legumes, batata com maionese, arroz, feijão, macarrão, farinha grossa
de mandioca, carne com osso, frango assado, mexido de pirarucu, suco de goiaba
exageradamente doce. Fartura para abastecer a fome dos mais desesperados.
O pernambucano radicado em Manaus conduzia projeto que
consistia em escolher as sete maravilhas do estado do Amazonas e o símbolo de
cada um dos 62 municípios amazonenses. A secretaria estadual da cultura apoiava
o projeto, mas só liberaria verbas para a publicação do livro que prometia
juntar textos e fotos. Ele jurava que agia sozinho, bancando os gastos do
próprio bolso ou originados de eventuais patrocínios dos comércios locais. Planejava
visitar cada município elegendo, com alunos das escolas, o símbolo local. Em
seguida confeccionaria cartaz com a foto escolhida e a lista dos patrocinadores
abaixo, afixando-o na entrada da cidade, normalmente no porto fluvial.
Impressionante os efeitos danosos do uso compulsório dos
celulares. Várias pessoas num mesmo ambiente, o barco. Quase ninguém se
comunicando entre si. Mas nos celulares, sozinhos, cutucando, ouvindo músicas,
vendo imagens, vídeos, jogos, raras ligações, ou apenas olhando os aparelhos,
bestificados, de olhos esbugalhados. Pareciam em transe. Ignoravam tudo e todos
ao redor. E assim rasteja a humanidade sob os fetiches tecnológicos.
A parte da tarde seguiu nublada. O vento devido ao barco
em movimento era de fresco a frio. Quanta diferença da chapa quente em Manaus!
O jantar repetiu as opções do almoço.
Nem bem tinha escurecido e a maioria dos passageiros já se
recolhia às redes, encolhidos sob os cobertores. Evitando o vento frio,
permaneci dentro do camarote e li mais um pouco.
Lá pelo meio da madrugada os motores pararam. Sob a névoa
espessa, quase não se via nada à frente. Uma balsa parecia que seguia pelo rumo
errado, desorientada, muito próxima, quase em choque com o barco. Tentavam desviar
um do outro, ao mesmo tempo em que evitavam encalhar nos bancos de areia ou nas
extensas praias. O impasse perdurou por quatro horas em meio à forte neblina.
Nos casos de saúde mais complexos os pacientes dos
interiores precisavam se deslocar a Manaus, por conta da prefeitura ou do
próprio bolso. Na capital ele poderia se hospedar nas casas de apoio que cada
município amazonense disponibilizava para emergências. No caso de Japurá havia imóvel
com capacidade para até quarenta pessoas, incluindo as três refeições e o
transporte até os centros médicos. Tudo por conta da administração municipal.
Mas havia críticas ao serviço. Em certos casos não detalhados pelos reclamantes
e inviáveis de generalizações, direitos dos cidadãos municipais se
transformavam em moeda eleitoral, pavimentando o acesso aos correligionários,
bloqueando-o aos desafetos.
O passageiro idoso, paciente com insuficiência renal
crônica, agora de volta para casa, se encaixava nessa situação. Vira e mexe
necessitava ir a Manaus, para acompanhamento, tratamento, exames. A gravidade
da situação o obrigou a entrar na fila para transplante de rins. Viajava com o
filho e ocupava o camarote oposto ao meu, justamente de onde vinham os roncos
noturnos. Outros passageiros, colegas e conterrâneos dele, o desenganavam,
prevendo o fim para breve, muito em breve.
Peguei cadeira e me sentei na proa do piso de Lazer,
contemplando a paisagem, as praias extensas, os barrancos desmoronados, as
comunidades, as casas isoladas dos ribeirinhos, lanchas e balsas que subiam ou
baixavam o rio, aves dos mais diversos tipos. Dialoguei muito com o professor
maranhense, com o adolescente recém-formado do ensino médio, com o marítimo e
agora espécie de faz-tudo em Manaus.
Antes do almoço o barco passou por trecho pedregoso e raso.
O motor de luz foi desligado. A velocidade diminuiu ao mínimo. Passageiros e
tripulantes se amontoaram ao redor da cabine de comando a fim de auxiliar e
palpitar ao prático. O proprietário, a frente de todos, na proa. Uma das
voadeiras atracadas na popa saiu na frente com o tripulante munido da zinga
para checar a profundidade, independente do que a sonda da cabine de comando
informava. A tensão durou longa meia hora. Uma balsa dupla com o rebocador se
postava à nossa frente. Passava pelo mesmo problema, apesar de menor calado.
Percorríamos o trecho mais raso do Solimões, em período seco do ano.
Almoço nos mesmos moldes das refeições anteriores. Frango
assado e desfiado com legumes, carne com tomate e cenoura, peixe frito, arroz,
feijão, macarrão, farinha grossa de mandioca, a famosa farinha d’água, suco
artificial e muito doce. Os passageiros avançavam com vontade e preparavam
pratos montanhosos, com direito a repetições também volumosas.
Botos, sobretudos os tucuxis, cinzentos, apareciam acima
da linha da água e voltavam a mergulhar. Vez ou outra, próximos às margens,
cardumes de peixes saltavam centímetros acima da água, brincando em família,
entre amigos, sem medo de nada.
As nuvens aumentavam e adensavam no céu. As temperaturas
fora das zonas naturalmente ventiladas esquentavam e me faziam transpirar
continuamente. A tarde ardeu de tanto calor.
No começo da tarde a cidade de Coari se aproximou na
margem direita do Solimões. Os passageiros aproveitaram o sinal das operadoras
de celular para usarem e abusarem do brinquedinho. Com ou sem necessidade. O
importante era usar. O barco nem parou. Apenas reduziu parcialmente a força dos
motores. A voadeira levou alguns passageiros e bagagens para a cidade.
Passamos ao lado da refinaria da Petrobrás, nos espantando
pela enormidade do complexo em plena floresta.
E foi de uma hora para outra. Após série de relâmpagos e
trovões, um deles lembrando explosão tal a violência e a intensidade. A pancada
de chuva com muito vento veio transversalmente do lado direito, fustigando o
barco por quase quinze minutos. O vento e os jatos d’água foram tão intensos no
piso de Lazer que arrastaram cadeiras, mesas e pias empilhadas, tubos
plásticos. Ajudei a segurar alguma coisa e me ensopei, refrescando
deliciosamente o corpo. Tão de repente veio a chuva, tão de repente ela se foi,
clareando o céu, cessando o vento, acalmando o banzeiro no rio. Passado o
susto, os tripulantes recolocaram de volta o que se deslocara, entre botes
salva-vidas e a antena da televisão, enquanto nos secávamos ao sol e à brisa do
movimento, sentados na popa sobre as tampas das caixas d’água.
Nem pelas chuvas e pela apreensão dos riscos, os vídeos de
música descartável deixaram de vomitar o lixo costumeiro pela imensa televisão
de tela plana do piso de Lazer. As letras faziam apologia ao consumo de bebidas
alcoólicas, energéticos, ao sexo mecânico, ao machismo escancarado. Os astros
do gênero desciam a nível mais baixo que cu de cobra. No embalo, mães solteiras
e sem rumo, a fim de qualquer coisa para errarem novamente, entornavam latinhas
de cerveja e chacoalhavam o esqueleto, lançando olhares com terceiras
intenções. Os membros da tripulação, familiarizados com os tipos em viagens
anteriores, se animaram e deram o bote. Redes e camarotes iriam tremer mais do
que o costume aquela noite.
Áreas indígenas, com as devidas placas da FUNAI afixadas
no barranco, apareciam esporadicamente. Abrigavam cabanas mais simpáticas que
as dos brancos, envoltas por mais vegetação que as dos brancos, mais ecológicas
e sustentáveis que as dos brancos. Quem os invasores europeus chamavam, e
chamam, de selvagens mesmo?
Depois de acompanhar, minuto a minuto, o estupendo por do
sol à esquerda, refletido em toda a largura do Solimões, fiquei em estado de
graça. Espetáculo inesquecível numa gradação de cores, tons, brilhos, luzes,
sombras.
E logo em seguida surgiu a lua cheia do lado oposto,
barranco acima, entre as árvores, enorme, amarelada, brilhante, imponente.
Belíssima. Permaneceria ali, diante daquela maravilha, até não sei quando. Mas
tive que debandar. Um enxame de carapanãs, proveniente da margem tão próxima,
atacou todos impiedosamente. Nem as áreas naturalmente ventiladas pelos ventos vindos
da proa escaparam. Vieram ferozes e famintos. Para agravar a situação, o
televisor do piso de Lazer vomitava o lixo travestido de telejornal. Parte do
rebanho se achegou ao aparelho despejando o olhar bovino, olhar típico de quem aceita
a manipulação imposta pelas classes dominantes. Eu até driblaria os carapanãs,
mas aquela lavagem cerebral sob a máscara de informação não daria para
aguentar. Aproveitei para descer e tomar banho reconfortante.
Acordei cedo, ainda no escuro. Pude apreciar o por da lua
bem à frente e os primeiros clarões da alvorada atrás do barco. Ambos os
efeitos se refletiam nas águas do Solimões. Tirando a tripulação da cabine de
comando, o barco inteiro ainda dormia. O silêncio era total ali na proa do piso
de Lazer. Momento mágico, único, imperdível. Valia a pena, sempre valia a pena,
navegar pela Amazônia e assistir a espetáculos daquela qualidade. Longe de aquela
ser a primeira ou a última incursão à minha região favorita do Brasil.
O sol surgiu numa bola avermelhada por trás das árvores.
Nem bem despontou, o sol esquentou imediatamente o ar, prometendo mais um dia
ensolarado e quente, muito quente.
continua...
Olá, Augusto
ResponderExcluirNão fiz a quantidade de viagens que você nem pelo Brasil e nem pelo mundo. Mas tenho certeza que dificilmente há lugares tão belos quanto o continente de águas que é a Amazônia.
Att, Jafé Praia
Oi Jafé, tudo bem?
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Concordo com você em gênero, número e grau. Tanto que enfatizo essa verdade para todos com quem me relaciono. Mas parece que a maioria que viaja prefere gastar tempo, dinheiro e oportunidade em lugares exageradamente turísticos e previsíveis. Pena...
Mas vamos continuar divulgando a Amazônia. De repente eles se tocam...rsssss.
Em paralelo com isso precisamos aumentar a luta pela preservação social e ambiental da região.
Abraços e comente sempre!