...continuação
A vila de Alcântara permanecia bela e calma. Pouco me
lembrava da última visita vinte e cinco anos antes. Apreciamos a atmosfera
local no nosso ritmo. Várias construções de alto valor histórico e
arquitetônico, algumas em ruínas com apenas as colunas e fundações, outras
restauradas e bem preservadas, usadas como residência ou escritórios públicos.
Muitas as praças e a localização, no alto da colina, propiciavam belo visual da
cidade e do mar. As poucas pousadas e restaurantes mantinham o estilo e o bom
gosto da decoração local. O restaurante escolhido reservava mesas ao ar livre
com coberturas de palha, em local situado no alto da escarpa com vistas para o
mar. A cachaça artesanal, curtida no cravo, ajudou a escancarar o apetite.
Optamos pela peixada com arroz de cuxá e farofa, servidas em vasilhas de
madeira feitas a mão. Comemos a sobremesa na vendinha mais adiante, o chamado
doce-de-espécie, bolinho à base de muito coco, ovos e açúcar.
Regressamos a São Luís no último barco. Ficamos do lado de
fora, na beirada do convés, para evitar os enjoos dos passageiros sentados nas
dependências internas. A maré estava subindo e o mar bastante agitado.
Seguramos firme nas hastes verticais, nos embalando no forte balançar do barco,
em cujas embicadas recebíamos banhos de água, ficando ensopados da cabeça aos
pés. Na parte interna, especialmente na sala reservada aos mais sensíveis, os
seguidos vômitos formaram a atração principal. Apesar do horário avançado, a
maré ainda não subira o suficiente e o barco não chegou ao porto da Praia
Grande. Ônibus gratuitos da prefeitura nos esperavam na praia da Ponta da
Areia. Preferimos retornar a pé, em longa e agradável caminhada.
À noite os bares do projeto Reviver estavam cheios e
animados, ao som de música popular brasileira na voz e violão. Os bons
intérpretes imitavam ou tentavam imitar o intérprete original, inclusive nos
gestos e trejeitos. Perdiam a espontaneidade e a possibilidade de fazerem leitura
própria, mais criativa.
Era hora de partir. Comprei passagem em ônibus noturno
para o Ceará. Encontrei a revista Caros Amigos. Enrolei durante o dia, assisti
a filme no cineclube do centro histórico, comi alguma coisa e rumei para o
terminal rodoviário.
O ônibus saiu lotado. Dormi bem antes de desembarcar em
Tianguá no começo da manhã. Esperei o segundo ônibus no meio das lojinhas de
artesanato, comidas típicas, queijos e doces. Aproveitei o tempo comendo queijo
de cabra. O ônibus me transportou por rodovia estreita e acidentada. A
vegetação, desde o Piauí na base de caatinga esverdeada pelas chuvas, tornou-se
mais verde e de maior porte, com palmeiras e florestas.
A pequena Ubajara se movimentava pela feira de domingo,
típico comércio do interior do nordeste, vendendo de tudo e informalmente. Só
paravam para me ver passar abaixado por entre cobertas das barracas. A pousada
cobrava a fortuna de seis reais pela diária. Entrei no quarto amplo, limpo, de
frente para a praça, com banheiro espaçoso. Ao acordar do cochilo, a feira se
encerrara e a cidade dormiu no domingo à tarde.
À noite praticamente não havia pessoas com mais de dezoito
anos pelas ruas. E a maioria dos moradores ainda me considerava bicho estranho.
Olhavam assustados como se nunca tivessem visto coisa parecida. Nos altos da
serra de Ibiapaba, Ubajara esfriava durante a noite e início da manhã. Desconfortável
se permanecesse muito tempo nas mesinhas de bar ao ar livre.
A cidade tinha ritmo sonolento. Parece que nada acontecia.
O jeitão de cemitério se acentuava na hora da sesta e sob o sol a pino. E me
impressionava a quantidade de moscas. Chegavam em nuvens, em todos os lugares.
Eram tantas que até trombavam comigo. Pousavam cinco ou seis juntas, quase
grudadas.
Caminhei até a portaria do parque nacional de Ubajara. Os
guias obrigatórios aguardavam na portaria. A trilha, em declive e calçada com
pedras, atingia desnível de quatrocentos metros da serra de Ibiapaba, em meio à
vegetação de grande porte, muitos pássaros, quedas d’água, macacos, mangueiras,
babaçus, jatobás, escarpas rochosas. No fim da caminhada, a boca da gruta com pequeno
circuito à visitação com iluminação artificial.
Pegamos o bondinho para a parte alta do parque, com outra
portaria, revelando visão completa da serra, para além dos limites do parque.
Paredões de calcário cinza, diversas quedas d’água, vales verdes, formações
rochosas sobressaindo acima das copas das árvores e, ao fundo e à direita,
vilas esparsas. Manchas de chuva, rodeadas de trechos ensolarados alternavam-se
em constante movimento por toda a planície. Pouco abaixo, procurando comida, o
casal de mocós, o lagarto e a lenta caninana.
A trilha do parque nacional, ainda utilizada pelos
moradores dos vilarejos vizinhos, depois de acordo com o IBAMA, garantia assim
a preservação da natureza e a manutenção do caminho anterior à criação do
parque.
Ao partir de Ubajara, passei o dia subindo e descendo em transportes coletivos, três ônibus e uma jardineira. Cedo embarquei a Sobral ao lado da cearense que trabalhava com a irmã no comércio de confecções. Após Tianguá a rodovia sinuosa cortou várias montanhas. A abafada Sobral, situada no pé da serra, fervia como caldeirão. Esperei na rodoviária velha, cheia e suja. Forrei o estômago antes de embarcar para Cruz. A rodovia passou por campos de caatinga esverdeados e extensos buritizais. As cidades, pequenas, sonolentas e tórridas, apresentavam aspecto melhor que as do interior maranhense. Logo após descer em Cruz, estacionou o ônibus vindo de Fortaleza. Me sentei ao lado de uma idosa cearense. Os demais bancos eram ocupados por turistas, sobretudo estrangeiros. No outro lado do corredor, uma mineira e uma norueguesa que arranhava o português. Desembarquei em Jijoca e joguei a mochila na cobertura da jardineira que levaria até Jericoacoara, a quarta é última etapa do itinerário do dia. A jardineira, na verdade veículo potente e adaptado a terrenos arenosos, com longo reboque, parecia vagão de bonde. Sentei-me ao lado da mineira e da norueguesa. As dunas surgiram apenas no final, pouco antes da chegada.
Ao partir de Ubajara, passei o dia subindo e descendo em transportes coletivos, três ônibus e uma jardineira. Cedo embarquei a Sobral ao lado da cearense que trabalhava com a irmã no comércio de confecções. Após Tianguá a rodovia sinuosa cortou várias montanhas. A abafada Sobral, situada no pé da serra, fervia como caldeirão. Esperei na rodoviária velha, cheia e suja. Forrei o estômago antes de embarcar para Cruz. A rodovia passou por campos de caatinga esverdeados e extensos buritizais. As cidades, pequenas, sonolentas e tórridas, apresentavam aspecto melhor que as do interior maranhense. Logo após descer em Cruz, estacionou o ônibus vindo de Fortaleza. Me sentei ao lado de uma idosa cearense. Os demais bancos eram ocupados por turistas, sobretudo estrangeiros. No outro lado do corredor, uma mineira e uma norueguesa que arranhava o português. Desembarquei em Jijoca e joguei a mochila na cobertura da jardineira que levaria até Jericoacoara, a quarta é última etapa do itinerário do dia. A jardineira, na verdade veículo potente e adaptado a terrenos arenosos, com longo reboque, parecia vagão de bonde. Sentei-me ao lado da mineira e da norueguesa. As dunas surgiram apenas no final, pouco antes da chegada.
Em Jericoacoara os funcionários das pousadas abordaram
oferecendo quartos “bons, baratos e bem localizados”. Era baixa estação.
Pechinchamos com insistência e fechamos o quarto por preço baixo para três
pessoas, eu, a mineira e a norueguesa.
A turística Jericoacoara reunia uma infinidade de
pousadas, bares, restaurantes, lojas, lojas e lojas, por onde desfilavam casais
bem vestidos, famílias, grupinhos. Os estabelecimentos contavam com energia
elétrica, exceto ruas e praias.
Embora desejasse ficar na preguiça ou em leves
reconhecimentos da vila, aceitei, junto com as colegas de quarto, o passeio
pelas praias e lagoas próximas a Jijoca. A mãe e o filho gaúchos, a família
cearense residente no Acre e o paulista estudante de psicologia nos
acompanharam na caminhonete. A primeira parada foi na praia do Preá, vila de
pescadores com a construção das primeiras pousadas, espécie de Jericoacoara de
ontem. Passamos pela praia do Riacho Doce. Paramos para relaxar, observar,
beber, comer, nas barracas da lagoa Azul e da lagoa Paraíso, bucólicas,
bonitas, refrescantes.
Peregrinações diárias aconteciam na grande duna de
Jericoacoara para assistir ao pôr-do-sol. Moradores e forasteiros aproveitavam
para exibir os dotes naqueles esportes denominados de radicais, deslizando duna
abaixo sobre pequenas pranchas de madeira amarrada aos pés. Repetiam isso
dezenas de vezes. E quando executavam completamente as manobras, a plateia
aplaudia aos gritos de yeah, yeah. Era o custo para apreciar o
belíssimo pôr-do-sol, exatamente em frente ao mar.
O estudante de psicologia e eu concordamos na avaliação
negativa da situação do turismo em Jericoacoara e no pessimismo quanto às
perspectivas futuras. A vila não exibia vida ou cultura própria. Dominava
música, comida e estilos de vida estrangeiros. Involuntariamente me lembrei
daquelas nefastas ilhas tailandesas, invadidas por gringos que pouco se lixavam
para a cultura local. Os forasteiros ocuparam a vila de Jericoacoara e botaram
os nativos para trabalharem para eles, implantando o trabalho infantil e a
prostituição de menores. Os habitantes originais sobreviviam morando em favelas
nos fundos, longe do mar e da natureza, com quem antes se relacionavam em
harmonia. Segundo moradores antigos, o estrangeiro e também prefeito do
município, dono da maior pousada da época, controlava o tráfico de meninas para
os turistas. E pretendia liberar completamente a especulação imobiliária,
inclusive sobre as dunas. O parque nacional de Jericoacoara, recém-criado,
aliado à conscientização e organização dos moradores, poderia iniciar o
processo de salvação da região.
Depois de dar uma olhada no salão de forró para turistas,
às moscas naquela noite, eu e o paulista fomos ao aniversário do proprietário
de bar na vila, cearense de Fortaleza que morava em mansão com muros altos.
Para transpor os grandes portões, somente com convite. Além dos turistas, os
convidados pertenciam à classe dominante local, donos e gerentes de hotéis,
pousadas, restaurantes, bares, agências de turismo. Ninguém natural de
Jericoacoara ou dos arredores. Cenário emblemático para entender Jericoacoara.
O sol esteve implacável e quente durante todo o dia,
sobretudo durante a curta caminhada até a praia da Pedra Furada.
As comidas típicas do litoral cearense eram cada vez mais
raras nos restaurantes de Jericoacoara. O mesmo poderia ser dito da música e
demais manifestações culturais da região. A culinária predominante era
internacional, servida em espaços moderninhos, ao som de música estrangeira. A
impressão era que eu não estava no Ceará, nem no nordeste, nem no Brasil.
Num bar na beira do mar um senhor nativo da região,
completamente bêbado e de aspecto miserável, gritava desnorteado para o dono ou
gerente do estabelecimento:
“quero a minha parte”,
“eu tenho uma parte nisso”.
Imediatamente, dois policiais o algemaram e o retiraram do
local. Afinal, ele estava constrangendo e perturbando a paz dos turistas.
Os locais com forró permaneciam com frequência pequena, a
maioria de meninas cearenses da região, todas bem pintadas e arrumadas,
chamando os turistas, sobretudo estrangeiros, para dançar. As mais bem
sucedidas saíam abraçadas com os gringos e desapareciam nos becos escuros sem
iluminação pública. A polícia, ágil para reprimir o senhor que reclamou em
frente ao bar de turistas, nada fazia para combater os flagrantes de
prostituição infantil. Na sorveteria na beira da praia, um senhor bem vestido e
de aspecto estrangeiro comprava sorvetes para quatro garotas menores e
sorridentes com tamanha generosidade.
Mas nem tudo estava perdido. Durante a noite e madrugada,
aconteciam apresentações de música popular brasileira em local próximo à praia.
Todos ficavam à vontade, se sentando ao ar livre, na areia, bancos, muradas.
Em cinco decidimos por passeio à cidade de Tatajuba, pela
beira do mar. Passamos pelo vilarejo de Guriú, na margem de extenso braço de
mar, atravessado por balsa manual. O veículo atolou na subida da balsa. Todos
desceram e ajudaram a desencalhar. As praias, extensas, planas, não contavam com
sombras ou morros. Pequena e calma, a nova Tatajuba tinha energia elétrica,
duas pousadas, poucas ruas. A vila pioneira fora coberta pelas dunas que,
longas e altas, não faltavam nas imediações, algumas com encostas bem íngremes,
como a duna do Funil. Paramos na lagoa da Torta, ao lado da barraquinha de
comes e bebes, rodeada de dunas e carnaubais. Mas as águas leitosas
desanimaram.
Os moradores de Tatajuba levavam vida simples, desprovidos
de serviços sociais, completamente abandonados pelos órgãos púbicos. As
crianças, para irem à única escola, precisavam caminhar cerca de dez
quilômetros. E, acompanhadas de pessoas mais velhas, vendiam cocadas e bolos
nos pontos turísticos, com muita insistência, alegando que a renda pagaria o
uniforme escolar.
A paisagem monótona da volta pela praia foi
maravilhosamente quebrada pelos pastos esverdeados e cobertos de pequenas
flores brancas, onde pastavam cabras e bodes. A maré começou a subir, obrigando
o veículo a acelerar e a inclinar exageradamente nas areias. O bugueiro,
natural da região, reclamava bastante do comportamento dos empresários
forasteiros que monopolizavam os passeios, expulsando os nativos do ramo.
Acordei tarde e me entreguei à preguiça. Depois caminhei
pelas praias a oeste, sem vegetação, sem sombra, poucas dunas. O vento
rasteiro, forte e constante carregava fina camada de areia e açoitava violentamente
o corpo. Era entrar no mar ou ir embora.
Almocei em lugar ventilado, simples e barato. Enrolei
até o sol baixar e o calor amenizar. Conversei com uma paulista sentada em
outra mesa. Depois de muito papo descobrimos amigos comuns e até que
comparecêramos às mesmas festas em São Paulo.
continua...
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