...continuação
O vulcão Altar erguia-se imponente ao pegar a estrada logo
cedo. A paisagem tornava-se menos dramática para o sul, mais abaulada, embora
ainda montanhosa e vistosa.
Em Alausi desci de trem a cordilheira ocidental através de
ferrovia sinuosa, repleta de abismos e montanhas, descidas acentuadas, curvas
fechadas, sobretudo ao redor de Sibambe. Durante os trechos mais íngremes, a
composição se desmembrava, não seguindo todos os vagões na mesma linha,
descendo em ziguezague, para frente e para trás, sempre trocando de trilhos.
Turistas e equatorianos viajavam em cima dos vagões.
Após desembarcar em Huigra, subimos os Andes no veículo
quatro por quatro, ziguezagueando por estradas de terra e asfalto. Cenas de plantações,
habitações simples, muito verde. Paramos nas ruínas de Ingapirca apreendendo noções
de como foram o império Inca e de outras etnias indígenas, como os Cañaris.
Almoçamos em Azougues, em restaurante simples na beira da
estrada, onde serviam porcos grelhados ao ar livre. Depois de pendurados em
varais para secar ao sol, as tiras eram servidas acompanhadas de milho cozido e
bolinhos de batata. A poeira da estrada e a fuligem dos escapamentos dos
veículos reforçavam os temperos.
O relevo manteve-se acidentado até Cuenca. Em trecho a
cerca de 3.800 metros de altitude, a paisagem guardava vales profundos e nuvens
mais baixas que a estrada. Casas e sobrados novos, com telhados vermelhos ou
verdes, se estendiam próximos à rodovia. Cruzamos área baixa e densamente
habitada que ficara debaixo d’água no ano anterior. O desbarrancamento da
garganta à jusante da cidade impediu o fluxo das águas do rio que abastece a
região, inundando o vale durante seis meses. Praticamente tudo teve que ser
reconstruído e ainda se viam casas soterradas ou submersas na lama.
Chegada em Cuenca. Pechinchei e consegui reduzir os altos
preços da diária do hotel em estilo colonial. Dali o guia retornaria a Quito.
Com ele conversei muito sobre tudo durante os quilômetros percorridos pela
rodovia panamericana, estradas vicinais, pavimentadas, de terra, vilarejos,
vulcões, cidades, mercados indígenas. Os assuntos evoluíram de política,
futebol, cultura, turismo, ecologia a temas sociais e pessoais. Companhia mais
que instrutiva e agradável.
Cuenca pertencia à região muito religiosa do Equador. Os
devotos costumavam ir todos os dias às igrejas, até duas vezes ao dia, para
assistir a missas ou simplesmente rezar. A catedral nova contava com várias e
enormes abóbadas com acabamentos em mármore e colunas grossas e altas em
mármore avermelhado se estendendo pelos interiores. Vitrais pequenos e
coloridos iluminavam o ambiente com feixes oblíquos de luz natural. O altar,
todo dourado, compunha-se de quatro colunas sustentando outra abóbada sob a abóbada
principal. As belas ruas coloniais de Cuenca conservavam o barroco, exibiam
sacadas e marquises esculpidas e sustentadas por colunas sobre as calçadas. O
paralelepípedo do calçamento realçava o charme da cidade. Enormes sobrados,
antigos e novos, se estendiam nas margens do rio.
Pichações se espalhavam pelas paredes das casas, sobretudo
contra o governo expansionista do Peru. E também contra o terrorismo ecológico
das transnacionais de petróleo, principalmente as estadunidenses. Os
equatorianos se davam muito bem, no entanto, com a Colômbia e os colombianos,
com quem havia tratado de livre comércio e de quem os equatorianos ouviam a
maioria das músicas.
As mulheres de Cuenca ganhavam, disparadas, como as mais
atraentes do altiplano equatoriano. Mas paqueravam menos, sorriam menos, se
incomodavam com olhares. E se superavam as demais equatorianas, as mulheres de
Cuenca humilhavam as turistas estadunidenses e europeias, invariavelmente mal
encaradas, com rostos e corpos assustadores.
Na manhã seguinte saí com a mochila rumo à estação
rodoviária. Logo na chegada, a surpresa. Devido à aprovação de lei federal
altamente prejudicial à comunidade, os indígenas bloquearam as principais
rodovias do país, inclusive a que me levaria a Guayaquil, sem previsão de liberação.
Ninguém poderia sair da cidade por terra.
Imediatamente fui ao aeroporto a fim de comprar passagem
aérea para a capital. Não se vendiam bilhetes no aeroporto, apenas na loja do
centro da cidade. Voltei ao centro e corri para a empresa aérea. O sistema
estava fora do ar. Nada poderia ser feito. As funcionárias me aconselharam a ir
diretamente ao aeroporto e aguardar na fila. Parti para o aeroporto. Avistei a
fila, curta ainda. Coloquei a mochila para marcar lugar e me sentei em banco
lateral. Todo o aeroporto estava às escuras durante o almoço. Longa espera pela
frente.
13:40h: Só me restava sentar e esperar as horas passarem.
Avisos nas paredes lembravam a proibição do porte de armas.
13:50h: Começou a chover. Um casal de jovens mochileiros
europeus sentados do outro lado do saguão trocava olhares nada amistosos entre
si. Deviam estar brigados e a reconciliação parecia difícil. Ele lia, ela
reclamava. Não brigavam, mas o clima estava visivelmente frio e pesado.
14:50h: Parou de chover. Apenas nove pessoas chegaram
depois de mim e guardaram o lugar com mochilas e malas. Uma estrangeira tentou
furar a fila com a bagagem. O guarda do aeroporto firmemente a impediu. Com a
cara amarrada, ela se postou no final da fila.
16:00h: O saguão do aeroporto começou a encher.
16:45h: Os funcionários do balcão iniciaram a chamada da
lista de espera. O suspense prendia as respirações e esbugalhava os olhares.
Comunicaram que só chamariam vinte. Eu era o décimo sétimo. De repente surgiu
uma senhora residente nos Estados Unidos. Vinda do final da fila e se dirigindo
aos demais, a perua reclamava do Equador. Culpava os indígenas por tudo. Arrotava
que o país onde vivia era muito melhor e que precisaria viajar naquele dia de
qualquer maneira. Ostentava a prepotência estadunidense e o desprezo aos povos
da América. Alguns sugeriram que, em vez de discursar para a fila, ela
procurasse as autoridades aeroportuárias. Foi. Poucos minutos depois retornou
com intenções de subornar as pessoas e furar a fila. Ninguém aceitou e lhe
perguntavam por que não chegara mais cedo como a maioria. Os equatorianos davam
mostras de boa educação, solidariedade e respeito. Palmas para os equatorianos,
vaias para a estadunidense.
17:30h: Fui bem atendido no balcão e peguei o cartão de
embarque.
17:55h: Embarquei no avião de tamanho médio.
18:05h: O avião decolou para voo de cerca de meia hora,
sem escalas. A perua estadunidense não conseguiu embarcar. Mereceu! As nuvens
abaixo impediam de apreciar o visual. Nem o fascinante Chimborazo deu o ar da
graça.
18:40h: Chegada em Quito.
Reservei a manhã para circular pelas ruas becos da cidade
velha lotada de gente. Igrejas permaneciam em reforma ou simplesmente fechadas
em função do terremoto de 1987. Por dentro, somente a igreja de Santo Domingo e
a El Sagrário. As igrejas La Campaña e a Catedral mantinham-se interditadas.
Uma manifestação pacífica perto do palácio do governo
protestava contra desaparecimentos e assassinatos pelo regime de mais de vinte
equatorianos. Exibiam fotos das vítimas e gritavam duas vezes cada mandamento.
A tropa de choque fortemente armada e acompanhada de brucutus ameaçava de
perto.
A parte antiga de Quito exibia o Equador real e bem
conservado. O principal da capital funcionava ali, escritórios, comércio
diversificado, restaurantes, escolas, repartições públicas, ambulantes, hotéis.
As praças e ruas do centro possuíam dois nomes. Os antigos, escritos em
azulejos, homenageavam as origens locais com termos pitorescos. Os novos, como
na maior parte do Brasil, lembravam nomes obscuros da história oficial do país.
A praça Independência se destacava como a mais bonita do centro. A catedral, o
palácio do governo, a prefeitura em construção moderna, o palácio do arcebispo,
dispunham-se ao redor. Bem cuidada e limpa, o lugar tornava-se ponto de passagem
e descanso.
As informações recebidas sobre o bloqueio das rodovias não
eram animadoras. O movimento se intensificava e se alastrava por todo o país.
As comunidades indígenas e trabalhadores rurais protestavam contra a nova lei
agrária, aprovada irregularmente no congresso nacional. Considerada
inconstitucional, a lei atacava os direitos dos povos originais, as pequenas
propriedades, responsáveis por 75% da produção de alimentos do país E favorecia
a concentração de terras e os grandes latifundiários, tradicionais parasitas do
Estado e detentores de imensas propriedades improdutivas. Como no Brasil.
E, como no Brasil, campanhas dirigidas pelas empresas
transnacionais, em aliança com os grandes meios de comunicação, a classe
dominante local e os partidos de direita, defendiam as privatizações e a
entrega do patrimônio público aos monopólios privados, sobretudo estrangeiros.
O sucateamento das empresas estatais e serviços públicos, arquitetado e
conduzido por esses mesmos senhores, agora era usado como pretexto para justificar
as tais privatizações.
E eu permanecia em Quito, impossibilitado de visitar
outras regiões do Equador. Os trechos de estrada que me interessavam, na
direção de Baeza, Latacunga, Cayambe, continuavam bloqueados. E os estudantes
engrossavam o movimento, protestando contra a alta do custo de vida e as
privatizações do patrimônio público. A CONAIE, Confederação das Nacionalidades
Indígenas do Equador, conclamava a todos os explorados, estudantes,
trabalhadores da cidade e do campo a se juntarem na luta.
Do norte da cidade me encantei com a imagem do vulcão
Cotopaxi. E também com a visão do vulcão Cayambe, limpo, sem nuvens, imponente,
coberto de neve.
Lia os jornais diários a fim de tentar me informar. Nada noticiavam
nada sobre as lutas populares. Apenas insistiam na suposta divisão do comando
nacional indígena. Nenhuma referencia à violência constante de policiais e
exército. Era nítida a cobertura da mídia a serviço do grande capital. E
ninguém sabia o que acontecia nos interiores do país. Como no Brasil.
A movimentação em torno dos preparativos para a copa de
mundo de futebol era enorme. Televisores espalhados nos restaurantes, bandeiras
hasteadas, gente pelas ruas em euforia. Mesmo fora da copa, um equatoriano fez
questão de exaltar a vitória do Equador sobre a Argentina em amistoso recente.
Os equatorianos não escondiam que torceriam entusiasticamente pelo Brasil. A
publicidade enaltecia a seleção brasileira, elegendo Bebeto e Romário como os salvadores
da pátria. Mas a agitação da mídia burguesa visava desviar a atenção da grave
crise social que o Equador enfrentava.
Mesmo proibidas pelo regime, pichações políticas se
espalhavam pelo país. Dezenas de pichações contra a transnacional estadunidense
Texaco apareciam nos muros da cidade, denunciando os crimes ambientais na
Amazônia equatoriana.
Finalmente consegui encontrar aberta a igreja de La Merced
no centro histórico, interditada desde o terremoto de 1987. Pelos interiores,
plásticos e tapumes nas colunas douradas, quadros e altar, rachaduras no teto e
estrutura, madeiras do piso soltas e rangentes. Por trás dos plásticos podia se
ver ouro nas molduras dos quadros, nas paredes, nas colunas do altar. Os fieis
entravam, se entristeciam com o estado lastimável dos interiores, umedeciam os
olhos. A situação piorava na igreja de La Compañia. As abóbadas e cúpulas se
perderam. Andaimes ocupavam todas as alas. Plásticos cobriam pinturas, colunas,
altares. Ouro até dizer chega se escondia atrás das coberturas de proteção.
O justo movimento de bloqueio e paralisação das estradas
não cedia. A população organizada ocupara prédios públicos e dois poços de
petróleo. Grupos paramilitares de extrema direita assassinaram um indígena em
Tungurahua e feriram mais vinte em outras províncias. O movimento demonstrava
coesão, confiança.
E teve início a copa do mundo de futebol de 1994. As
transmissões pelas redes de televisão equatoriana eram tenebrosas. As
irritantes entradas comerciais, a cada trinta segundos, reduziam a tela a fim
de exibir textos e figuras. Então nada se via do jogo. Todos os canais faziam
praticamente a mesma coisa. Pelo menos não havia o criminoso monopólio de
apenas uma rede de televisão como no Brasil.
No sábado à noite, pós-adolescentes desfilavam com carros
em ambos os sentidos da avenida Amazonas. Prostitutas perambulavam pelos bares
distribuindo panfletos ou cartões de convite para os respectivos puteiros. O
frio caía com tudo tarde da noite.
Último dia no Equador. Matei o tempo no parque Ejido,
caminhando, sentado, observando o movimento dos frequentadores.
Cheguei ao aeroporto no final da tarde, ainda às moscas,
sem voos naquele horário. Somente após a chamada para o despacho das bagagens o
saguão se animou de gente em circulação.
Então os funcionários do balcão comunicaram o cancelamento
do voo noturno. E seríamos encaminhados a um hotel cinco estrelas, como de
direito.
Passei o dia seguinte coçando o saco nas dependências
impessoais do hotel. À tarde, junto a cinco brasileiros que trabalhavam nas
empresas petrolíferas, assisti à estréia da seleção brasileira na copa. Triste
de doer, ainda mais com a pavorosa transmissão da televisão equatoriana. Os
garçons do hotel torciam mais que os brasileiros.
Finalmente embarquei no horário previsto. Os Andes, os
vulcões nevados, os indígenas conscientes e combativos que se comunicavam em quéchua,
a rica cultura equatoriana, tudo ficaria para trás.
Depois de voo noturno tranquilo, desembarquei em São Paulo
no final de junho.
Estar exatamente sobre a linha imaginária do Equador é um pensamento muito atraente para mim. Nem tanto pela beleza, mas pela dimensão. Pelo sentido, o imaginário. Sei lá... Leva-me a pensar também em equilíbrio.
ResponderExcluirQuando você descreve as plantações de trigo nas encostas das montanhas como se fossem tapetes coloridos, dá pra sentir certo aturdimento por tanta beleza. O enternecimento e a sensação de que existe magia no ar, em torno desta exuberante visão. E também suas impressões sobre Quito, atmosfera de calma, tranquilidade e respeito entre as pessoas. Isso mexe comigo.
E as imagens deslumbrantes, dos contrastes entre rochas, neve e céu. Tons de negro, branco e azul, que cintilam em meus pensamentos ao ler seus relatos.
Você foi tão brilhante ao descrever isso “Esperei pelo pôr-do-sol com direito a camadas espessas de nuvens bem mais abaixo que lembravam o mar. Gradação de cores que iam do amarelo, laranja, vermelho, roxo ao azul não me permitiam nem piscar os olhos.” Que parece ter engolido o próprio sol.
Daria um mês da minha vida para passar algumas horas naquele mercado que você falou. O multicolorido ao ar livre em Saquisili. Só pra ficar observando os indígenas das montanhas que chegam para comprar, vender e fazer trocas. Isso é muito autêntico! Não vou nem falar nos vulcões porque senão vai render demais.
Sobre os Aspectos socioeconômicos e os episódios relatos, penso que embora a princípio tenha parecido importuno devido aos contratempos ,foi um privilegio para você ter estado lá naquela época. ter presenciado importantes movimentos políticos e momentos históricos.
Além do mais, tenho percebido em seus relatos, que você possui enorme habilidade no sentido de ser capaz de apreciar a beleza e o significado de cada situação seja ela adversa ou favorável.
Então...Essa leitura me deu vontade até de ouvir a musica . Hoje vou trocar a poesia pela musica, ao fim desse comentario (gigante)rs.
http://www.ouvirmusica.com.br/caetano-veloso/79058/#mais-acessadas/79058
Obrigadão pelos comentários, Lorena.
ResponderExcluirRealmente, com contratempos daquele, não é para se enfurecer, pelo contrário, mas para se sentir privilegiado de acompanhar a história viva e real.
O Equador me encantou demais. É um país para voltar e mergulhar em explorações pelo interiores físicos e culturais.
A nossa América, vista de qualquer ângulo, enriquece e instiga, fascina e intriga, mas jamais desanima.
Comente sempre, abraços!