sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 4/6)

...continuação
Estava na hora de seguir viagem depois de demorados dias em Jericoacoara.
No verso do bilhete da passagem de ônibus, a frase recomendando o uso de agasalhos devido ao ar condicionado exagerado. Fazia sentido com os demais absurdos impostos à cultura da vila. Novamente me lembrei da Tailândia, com os mesmos ônibus frigoríficos, os mesmos gringos deslumbrados e indiferentes à população local, os mesmos bares com músicas estadunidenses, a mesma destruição cultural. E a mesma vontade de ir embora.
Mochila nas costas e subida na jardineira até Jijoca de onde partiria o frigorífico noturno a Fortaleza. As cenas dos gringos abrindo as mochilas e retirando pesados agasalhos, em pleno litoral do nordeste do Brasil, eram surrealistas, insólitas. E também instrutivas naquela vila invadida e descaracterizada. Pobre Jericoacoara! O frio dentro do ônibus era indescritível. As janelas eram parafusadas ou substituídas por vidros fixos. O espaço para as pernas reduzido.
O ônibus frigorífico estacionou antes de clarear no terminal rodoviário de Fortaleza. Eu, a paulista e o colega de Niterói, resolvemos dividir o quarto em hotel na praia de Iracema.
Demos voltas pelo centro da cidade ainda guardando construções antigas, comércio agitado, centros culturais, o respeitável teatro José de Alencar, no qual percorremos os interiores, pátios, galerias, plateia. O moderno centro cultural da cidade anunciava a apresentação gratuita da Adriana Calcanhoto para o meio-dia. Estranhamos. Mas entramos na fila, pegamos o ingresso, aguardamos a abertura da plateia, sentamos em boa localização. O palco estava vazio e sem qualquer instrumento ou microfone. Apagaram-se as luzes, fez-se o silêncio e a tela grande e branca desceu sobre o palco. A apresentação, ou melhor, a exibição do vídeo gravado, teve início. Esperamos cinco minutos. Levantamos, pedimos licença e fomos embora bem quietinhos.

A orla de Iracema a Meireles, apesar do mar bonito, revelava praias feias, sujas, fedidas, poluídas pelo esgoto lançado diretamente na areia. Os calçadões fervilhavam. Feirinha com pseudo-artesanato, turistas brasileiros e estrangeiros, sempre bem vestidos com bermudas e camisetas novinhas. Travestis e putas perambulavam, paravam nas esquinas ou sentavam nos bares de turistas, às vezes agarradas aos gringos, várias delas menores de idade. Menores abandonados erravam ou dormiam pelas calçadas.
Os amigos do colega fluminense nos convidaram para passar o dia na praia de Cumbuco. Antes, saciamos nossa fome no vasto e diversificado café da manhã do hotel que, além do trivial, servia iogurte, ovos à vontade, tapioca, banana frita, sucos, entre outras delícias.
A beleza da praia de Cumbuco estava comprometida pela infraestrutura para receber os visitantes. As dezenas de restaurantes, com guarda-volumes e piscinas, eram a única maneira de entrar ou estacionar. Parecia praia privada. Chegamos à areia e logo encontramos os amigos em meio a impressionante número de vendedores ambulantes, oferecendo comida, passeios, roupas, redes, pinturas, pedindo esmolas. Eram insistentes e grudavam como moscas.
A cunhada de um dos cearenses apareceu e, muito prestativa, convidou-nos à praia Barra do Cauípe, mais adiante, mais selvagem, entre dunas, coqueirais, lagoas e riacho de águas claras. Do alto das dunas escorregávamos ou pulávamos diretamente nas águas do braço de mar. A barraca de palha, pequena, improvisada e rústica, nos serviu para os comes e bebes. Ninguém queria sair daquele paraíso. Novamente ela nos convidou a casa dela, onde comeríamos caranguejo, usaríamos a piscina, conheceríamos o restante da família. Compramos complementos no supermercado e permanecemos na casa até de noite.
Já de volta à capital, a paulista partiu para Natal. Eu o fluminense andamos pelos calçadões da praia de Iracema, em meio a putas, travestis, estrangeiros em busca de aventuras fáceis e abraçados com adolescentes nativas, turistas comprando lembranças inúteis, menores de rua largados pelos cantos. Estávamos de volta à civilização. O fluminense ainda queria jantar e saímos na busca. Ele tirou a camiseta, se recusando a vesti-la mesmo por exigência dos estabelecimentos. Fomos convidados a nos retirar em dois lugares. Em frente ao restaurante com o nome sugestivo de “O Rei do Camarão”, da calçada e sem entrar para olhar o cardápio, o niteroiense gritava ao garçom:
“tem pizza aí?”.
Acabamos em um bar qualquer e comemos bolinhos de peixe.
O fluminense partiu bem cedo.

A elite de Fortaleza, residente nos bairros próximos à Iracema e Meireles, calçava tênis pela manhã, caminhava pelo calçadão, jogava vôlei nas quadras, fazia massagem, bebia água de coco ou suco com pó de guaraná. Poucos nas areias da praia e menos ainda nas águas do mar. O calor continua implacável e sem sinais de chuva.
Visitei a exposição “Vaqueiros” no centro cultural Dragão do Mar. O pavimento superior expunha objetos usados pelos vaqueiros em diversas ocasiões. No pavimento inferior havia imagens e cenas do cotidiano, com sons da caatinga, pássaros, aboios, gado. Nas ruas ao redor do centro cultural encontravam-se casarões antigos e bem preservados. Alguns funcionavam à noite como bares, com mesas nas calçadas, música popular ao vivo e boa frequência local. E em outras ruas os casarões transformaram-se em oficinas de pintura, onde artistas locais exibiam, vendiam, ensinavam.
A Ponte Metálica se projetava sobre o mar com bares e bancos para sentar. Muito procurada para contemplar o pôr-do-sol, nascer da lua, namorar, conversar, meditar, relaxar. Dali chegava-se ao calçadão na beira do mar de Iracema, sem praia, com muitos bares e música ao vivo. A frequência predominante de gringos atraía putas. Muitas delas esfregavam-se satisfeitas aos clientes.
Segui à extensa praia do Futuro, com mar agitado e a infinidade de barracas, quase todas vazias naquele dia útil. Estrangeiros velhos e gordos agarravam-se com meninas adolescentes. Os garçons do bar ajudavam no contato, a quebrar o gelo. Mas muitos daqueles estrangeiros vieram com o uso e abuso das meninas já incluído no pacote de viagem, em puro turismo sexual.
Fortaleza era simpática, o povo acolhedor, as cearenses bonitas e sensuais. Mas a imagem que ficaria era das adolescentes se entregando a estrangeiros grotescos, putas e travestis pelos calçadões da praia, menores de rua abandonados, turistas de pacote, vendedores insistentes, edifícios altos na orla urbana.
Comprei passagem para Quixadá em ônibus gelado, confortável, espaçoso. A vegetação de caatinga predominava da janela. Da estação rodoviária local, caminhei poucos metros até o hotel, simples, barato, limpo, mas infestado de muriçocas no quarto e na sala do café da manhã.
Rochedos de diversos formatos e tamanhos rodeiam a Quixadá das muitas praças. Algumas ruas ou casas eram construídas coladas às paredes rochosas. As praças, como regra nas cidades quentes, ficavam vazias e desinteressantes durante o dia, devido ao sol e pouca sombra. À noite exibem o charme pela amplidão e iluminação, atraindo os moradores para passear, conversar, namorar, sentar, olhar o movimento.
Jantei espetinhos de carne com baião-de-dois e farofa, servidos na calçada do bar.
Inúmeros grupos cearenses se reivindicavam do forró, mas todos apavoravam de tão ruins. Alguns gravavam versões do lixo estadunidense em ritmos que passavam longe do que se acostumou chamar de forró ou outra música de qualidade. Eram tantos grupos e tão parecidos que, para se diferenciarem, tinham que gritar os próprios nomes no meio das músicas.
O café da manhã do hotel, servido na copa, era bom e farto. Mas quem estava com muita fome eram as muriçocas, insaciáveis, atacando pernas, pés, calcanhares.
Caminhei em direção ao açude do Cedro. Durante o percurso, mais formações rochosas interessantes de ambos os lados da estrada, entre elas a pedra da Galinha Choca, fazendo jus ao nome. Pequenas propriedades rurais com áreas plantadas davam sinal de vida. Carroças transportando barris com água potável indicavam a gravidade da seca. Após a entrada oficial na área pertencente ao açude, a estrada tornou-se alameda de mangueiras e a sombra aliviou.

O imponente açude, construído no final do século XIX, exibia o eixo todo em granito, sobre o qual se caminhava de uma extremidade à outra. As poucas e fracas chuvas da época refletiam na marca abaixo de um metro no paredão do açude, que sangrou pela última vez em 1984. Nos bons tempos havia canais de irrigação para as plantações e pequenos vagões sobre trilhos para o transporte das colheitas. Espalhados pelas imediações, agora bares propiciavam a vista panorâmica com as onipresentes formações rochosas. A música ao vivo animava os poucos frequentadores. Estacionei por ali, entre goles e contemplações dos arredores.
O sol forte durante a caminhada da volta não deu tréguas. Estava abafado e sem vento. A rápida pancada de chuva refrescou no meio da tarde. E animou os pequenos agricultores na possibilidade de salvarem as plantações. As funcionárias do hotel ficaram surpresas com a extensão da minha caminhada de ida e volta. Mas logo se retiraram para os fundos com receio do patrão, que as proibia de conversar com os hóspedes.
A praça da matriz fervia durante a noite com gente bem arrumada, olhares insinuantes, vaivém de mulheres bonitas, aliás, adolescentes. Lançavam olhares assustados e curiosos, na tentativa de adivinhar de qual planeta eu viera.
Tomei ônibus para Juazeiro do Norte. A rodovia tornou-se sinuosa logo após a saída de Quixadá. A paisagem reservava serras, rochosas ou com cristas cobertas de vegetação. Mais ao sul o relevo rebaixado estava verde e úmido. Nas proximidades de Crato, no fértil vale do Cariri, as nuvens anteciparam a tempestade que desabou em seguida.
Juazeiro do Norte possuía centro comercial alongado, movimentado. As imagens e referências ao padre Cícero proliferavam pelas lojas e nas lembranças vendidas pelos ambulantes. Crianças pediam esmola com insistência irritante nas ruas do centro e nos interiores da estação rodoviária.
Fiz a minha romaria solitária ao Horto, local da estátua e museu do padre Cícero. Como não era nenhuma das quatro grandes datas de romarias, quando a cidade transborda de visitantes, pude percorrer o caminho com calma. Iniciei na parte plana e baixa da cidade em rua calçada de paralelepípedos. No final da rua surgiram as primeiras imagens da via sacra. No começo da subida as ruas se estreitam, o traçado se torna sinuoso, o calçamento de pedras irregular. Casas e casebres ladeiam todo o caminho. Algumas minúsculas, com portas de até um metro e meio de altura, parecendo miniaturas, muito pobres, algumas de taipa, com cômodos entupidos de imagens religiosas, cobrindo cada milímetro das paredes. O esgoto corria impunemente pelas guias. Crianças nuas se aproximavam pedindo esmolas. Imagens da via sacra em pequenas capelas e oratórios se alternavam entre as moradias. Ninguém me acompanhava na subida, mas muitos apareciam nas janelas para me observar, cumprimentar, puxar prosa. Mulheres e crianças nos interiores das casas trançavam palha para cestos e outros objetos artesanais.
continua...

4 comentários:

  1. Estive em Quixadá há exatos oito dias. Adorei a cidade, que me inspirou a assistir o filme Área Q. Talvez por não ter passeado muito a noite, não tive a visão das adolescentes em busca de algo além do frescor da noite. Adorei o açude do Cedro e o Santuário, onde tive o privilégio de assistir o por-do-sol.

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  2. Fiquei curioso com esse filme que citou. Vou procurar.
    Sempre preferi os interiores do nordeste, os sertões, a caatinga, ao litoral, exageradamente turístico e descaracterizado.
    Quixadá, apesar das secas inclementes, reserva povo bastante acolhedor e bom de prosa.
    Abraços!

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  3. "O moderno centro cultural da cidade anunciava a apresentação gratuita da Adriana Calcanhoto para o meio-dia. Estranhamos."
    Tava bom demais para ser verdade, né? hahaha

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  4. Oi Jafé, obrigado pela visita e pelos comentários.
    Então, todos tem a sua própria cota de micos a pagar nesta vida...rssss.
    Abraços e comente sempre!

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