...continuação
Estava na hora de seguir viagem depois de demorados dias
em Jericoacoara.
No verso do bilhete da passagem de ônibus, a frase
recomendando o uso de agasalhos devido ao ar condicionado exagerado. Fazia
sentido com os demais absurdos impostos à cultura da vila. Novamente me lembrei
da Tailândia, com os mesmos ônibus frigoríficos, os mesmos gringos deslumbrados
e indiferentes à população local, os mesmos bares com músicas estadunidenses, a
mesma destruição cultural. E a mesma vontade de ir embora.
Mochila nas costas e subida na jardineira até Jijoca de
onde partiria o frigorífico noturno a Fortaleza. As cenas dos gringos abrindo
as mochilas e retirando pesados agasalhos, em pleno litoral do nordeste do
Brasil, eram surrealistas, insólitas. E também instrutivas naquela vila
invadida e descaracterizada. Pobre Jericoacoara! O frio dentro do ônibus era
indescritível. As janelas eram parafusadas ou substituídas por vidros fixos. O
espaço para as pernas reduzido.
O ônibus frigorífico estacionou antes de clarear no
terminal rodoviário de Fortaleza. Eu, a paulista e o colega de Niterói,
resolvemos dividir o quarto em hotel na praia de Iracema.
Demos voltas pelo centro da cidade ainda guardando
construções antigas, comércio agitado, centros culturais, o respeitável teatro
José de Alencar, no qual percorremos os interiores, pátios, galerias, plateia.
O moderno centro cultural da cidade anunciava a apresentação gratuita da
Adriana Calcanhoto para o meio-dia. Estranhamos. Mas entramos na fila, pegamos
o ingresso, aguardamos a abertura da plateia, sentamos em boa localização. O
palco estava vazio e sem qualquer instrumento ou microfone. Apagaram-se as
luzes, fez-se o silêncio e a tela grande e branca desceu sobre o palco. A
apresentação, ou melhor, a exibição do vídeo gravado, teve início. Esperamos
cinco minutos. Levantamos, pedimos licença e fomos embora bem quietinhos.
A orla de Iracema a Meireles, apesar do mar bonito,
revelava praias feias, sujas, fedidas, poluídas pelo esgoto lançado diretamente
na areia. Os calçadões fervilhavam. Feirinha com pseudo-artesanato, turistas
brasileiros e estrangeiros, sempre bem vestidos com bermudas e camisetas
novinhas. Travestis e putas perambulavam, paravam nas esquinas ou sentavam nos
bares de turistas, às vezes agarradas aos gringos, várias delas menores de
idade. Menores abandonados erravam ou dormiam pelas calçadas.
Os amigos do colega fluminense nos convidaram para passar
o dia na praia de Cumbuco. Antes, saciamos nossa fome no vasto e diversificado
café da manhã do hotel que, além do trivial, servia iogurte, ovos à vontade,
tapioca, banana frita, sucos, entre outras delícias.
A beleza da praia de Cumbuco estava comprometida pela
infraestrutura para receber os visitantes. As dezenas de restaurantes, com
guarda-volumes e piscinas, eram a única maneira de entrar ou estacionar.
Parecia praia privada. Chegamos à areia e logo encontramos os amigos em meio a
impressionante número de vendedores ambulantes, oferecendo comida, passeios,
roupas, redes, pinturas, pedindo esmolas. Eram insistentes e grudavam como
moscas.
A cunhada de um dos cearenses apareceu e, muito
prestativa, convidou-nos à praia Barra do Cauípe, mais adiante, mais selvagem,
entre dunas, coqueirais, lagoas e riacho de águas claras. Do alto das dunas
escorregávamos ou pulávamos diretamente nas águas do braço de mar. A barraca de
palha, pequena, improvisada e rústica, nos serviu para os comes e bebes.
Ninguém queria sair daquele paraíso. Novamente ela nos convidou a casa dela,
onde comeríamos caranguejo, usaríamos a piscina, conheceríamos o restante da
família. Compramos complementos no supermercado e permanecemos na casa até de
noite.
Já de volta à capital, a paulista partiu para Natal. Eu o fluminense
andamos pelos calçadões da praia de Iracema, em meio a putas, travestis,
estrangeiros em busca de aventuras fáceis e abraçados com adolescentes nativas,
turistas comprando lembranças inúteis, menores de rua largados pelos cantos.
Estávamos de volta à civilização. O fluminense ainda queria jantar e saímos na
busca. Ele tirou a camiseta, se recusando a vesti-la mesmo por exigência dos
estabelecimentos. Fomos convidados a nos retirar em dois lugares. Em frente ao
restaurante com o nome sugestivo de “O Rei do Camarão”, da calçada e sem entrar
para olhar o cardápio, o niteroiense gritava ao garçom:
“tem pizza aí?”.
Acabamos em um bar qualquer e comemos bolinhos de peixe.
O fluminense partiu bem cedo.
A elite de Fortaleza, residente nos bairros próximos à
Iracema e Meireles, calçava tênis pela manhã, caminhava pelo calçadão, jogava
vôlei nas quadras, fazia massagem, bebia água de coco ou suco com pó de
guaraná. Poucos nas areias da praia e menos ainda nas águas do mar. O calor
continua implacável e sem sinais de chuva.
Visitei a exposição “Vaqueiros” no centro cultural Dragão
do Mar. O pavimento superior expunha objetos usados pelos vaqueiros em diversas
ocasiões. No pavimento inferior havia imagens e cenas do cotidiano, com sons da
caatinga, pássaros, aboios, gado. Nas ruas ao redor do centro cultural
encontravam-se casarões antigos e bem preservados. Alguns funcionavam à noite
como bares, com mesas nas calçadas, música popular ao vivo e boa frequência
local. E em outras ruas os casarões transformaram-se em oficinas de pintura,
onde artistas locais exibiam, vendiam, ensinavam.
A Ponte Metálica se projetava sobre o mar com bares e
bancos para sentar. Muito procurada para contemplar o pôr-do-sol, nascer da
lua, namorar, conversar, meditar, relaxar. Dali chegava-se ao calçadão na beira
do mar de Iracema, sem praia, com muitos bares e música ao vivo. A frequência
predominante de gringos atraía putas. Muitas delas esfregavam-se satisfeitas
aos clientes.
Segui à extensa praia do Futuro, com mar agitado e a
infinidade de barracas, quase todas vazias naquele dia útil. Estrangeiros
velhos e gordos agarravam-se com meninas adolescentes. Os garçons do bar
ajudavam no contato, a quebrar o gelo. Mas muitos daqueles estrangeiros vieram
com o uso e abuso das meninas já incluído no pacote de viagem, em puro turismo
sexual.
Fortaleza era simpática, o povo acolhedor, as cearenses
bonitas e sensuais. Mas a imagem que ficaria era das adolescentes se entregando
a estrangeiros grotescos, putas e travestis pelos calçadões da praia, menores
de rua abandonados, turistas de pacote, vendedores insistentes, edifícios altos
na orla urbana.
Comprei passagem para Quixadá em ônibus gelado,
confortável, espaçoso. A vegetação de caatinga predominava da janela. Da
estação rodoviária local, caminhei poucos metros até o hotel, simples, barato,
limpo, mas infestado de muriçocas no quarto e na sala do café da manhã.
Rochedos de diversos formatos e tamanhos rodeiam a Quixadá
das muitas praças. Algumas ruas ou casas eram construídas coladas às paredes
rochosas. As praças, como regra nas cidades quentes, ficavam vazias e
desinteressantes durante o dia, devido ao sol e pouca sombra. À noite exibem o
charme pela amplidão e iluminação, atraindo os moradores para passear,
conversar, namorar, sentar, olhar o movimento.
Jantei espetinhos de carne com baião-de-dois e farofa,
servidos na calçada do bar.
Inúmeros grupos cearenses se reivindicavam do forró, mas
todos apavoravam de tão ruins. Alguns gravavam versões do lixo estadunidense em
ritmos que passavam longe do que se acostumou chamar de forró ou outra música
de qualidade. Eram tantos grupos e tão parecidos que, para se diferenciarem,
tinham que gritar os próprios nomes no meio das músicas.
O café da manhã do hotel, servido na copa, era bom e
farto. Mas quem estava com muita fome eram as muriçocas, insaciáveis, atacando
pernas, pés, calcanhares.
Caminhei em direção ao açude do Cedro. Durante o percurso,
mais formações rochosas interessantes de ambos os lados da estrada, entre elas
a pedra da Galinha Choca, fazendo jus ao nome. Pequenas propriedades rurais com
áreas plantadas davam sinal de vida. Carroças transportando barris com água
potável indicavam a gravidade da seca. Após a entrada oficial na área pertencente
ao açude, a estrada tornou-se alameda de mangueiras e a sombra aliviou.
O imponente açude, construído no final do século XIX,
exibia o eixo todo em granito, sobre o qual se caminhava de uma extremidade à
outra. As poucas e fracas chuvas da época refletiam na marca abaixo de um metro
no paredão do açude, que sangrou pela última vez em 1984. Nos bons tempos havia
canais de irrigação para as plantações e pequenos vagões sobre trilhos para o
transporte das colheitas. Espalhados pelas imediações, agora bares propiciavam
a vista panorâmica com as onipresentes formações rochosas. A música ao vivo
animava os poucos frequentadores. Estacionei por ali, entre goles e
contemplações dos arredores.
O sol forte durante a caminhada da volta não deu tréguas.
Estava abafado e sem vento. A rápida pancada de chuva refrescou no meio da
tarde. E animou os pequenos agricultores na possibilidade de salvarem as
plantações. As funcionárias do hotel ficaram surpresas com a extensão da minha
caminhada de ida e volta. Mas logo se retiraram para os fundos com receio do
patrão, que as proibia de conversar com os hóspedes.
A praça da matriz fervia durante a noite com gente bem
arrumada, olhares insinuantes, vaivém de mulheres bonitas, aliás, adolescentes.
Lançavam olhares assustados e curiosos, na tentativa de adivinhar de qual
planeta eu viera.
Tomei ônibus para Juazeiro do Norte. A rodovia tornou-se
sinuosa logo após a saída de Quixadá. A paisagem reservava serras, rochosas ou
com cristas cobertas de vegetação. Mais ao sul o relevo rebaixado estava verde
e úmido. Nas proximidades de Crato, no fértil vale do Cariri, as nuvens
anteciparam a tempestade que desabou em seguida.
Juazeiro do Norte possuía centro comercial alongado,
movimentado. As imagens e referências ao padre Cícero proliferavam pelas lojas
e nas lembranças vendidas pelos ambulantes. Crianças pediam esmola com
insistência irritante nas ruas do centro e nos interiores da estação
rodoviária.
Fiz a minha romaria solitária ao Horto, local da
estátua e museu do padre Cícero. Como não era nenhuma das quatro grandes datas
de romarias, quando a cidade transborda de visitantes, pude percorrer o caminho
com calma. Iniciei na parte plana e baixa da cidade em rua calçada de paralelepípedos.
No final da rua surgiram as primeiras imagens da via sacra. No começo da subida
as ruas se estreitam, o traçado se torna sinuoso, o calçamento de pedras
irregular. Casas e casebres ladeiam todo o caminho. Algumas minúsculas, com
portas de até um metro e meio de altura, parecendo miniaturas, muito pobres, algumas
de taipa, com cômodos entupidos de imagens religiosas, cobrindo cada milímetro
das paredes. O esgoto corria impunemente pelas guias. Crianças nuas se
aproximavam pedindo esmolas. Imagens da via sacra em pequenas capelas e
oratórios se alternavam entre as moradias. Ninguém me acompanhava na subida,
mas muitos apareciam nas janelas para me observar, cumprimentar, puxar prosa.
Mulheres e crianças nos interiores das casas trançavam palha para cestos e
outros objetos artesanais.
continua...
Estive em Quixadá há exatos oito dias. Adorei a cidade, que me inspirou a assistir o filme Área Q. Talvez por não ter passeado muito a noite, não tive a visão das adolescentes em busca de algo além do frescor da noite. Adorei o açude do Cedro e o Santuário, onde tive o privilégio de assistir o por-do-sol.
ResponderExcluirFiquei curioso com esse filme que citou. Vou procurar.
ResponderExcluirSempre preferi os interiores do nordeste, os sertões, a caatinga, ao litoral, exageradamente turístico e descaracterizado.
Quixadá, apesar das secas inclementes, reserva povo bastante acolhedor e bom de prosa.
Abraços!
"O moderno centro cultural da cidade anunciava a apresentação gratuita da Adriana Calcanhoto para o meio-dia. Estranhamos."
ResponderExcluirTava bom demais para ser verdade, né? hahaha
Oi Jafé, obrigado pela visita e pelos comentários.
ResponderExcluirEntão, todos tem a sua própria cota de micos a pagar nesta vida...rssss.
Abraços e comente sempre!