segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 5/6)

...continuação
Atingi os pés da estátua branca do Padre Cícero com vinte e cinco metros de altura. E logo fui cercado por guias, vendedores de pulseiras, correntes, anéis, lembranças, imagens religiosas, miniaturas relacionadas ao tema, a maioria crianças com menos de dez anos de idade. Quem não tentava vender, pedia esmola. Tudo com muita insistência. Não desgrudavam. A base da estátua estava coberta de plástico e tapumes aguardando verbas para a restauração e contenção da estrutura abalada pelas chuvas. Romeiros escreviam mensagens e nomes na tinta branca da estátua onde já não havia espaço livre. Escreviam sobre os textos antigos e ninguém conseguiria ler nada. Do topo do Horto, ampla visão da cidade de Juazeiro.
Perto dali o museu, reproduzindo cenas da vida do Padre Cícero, mais a exposição dos objetos e fotos dos devotos em agradecimento às graças alcançadas. Imagens fortes e tristes. Também estava sendo construído o novo santuário de estilo exageradamente moderno e de gosto duvidoso. Do lado do museu saía longa trilha até o Santo Sepulcro. Já trilhava os primeiros passos quando as senhoras do casebre ao lado me advertiram para não prosseguir desacompanhado, em virtude do risco de assaltos. Comentaram que naquela mesma semana uma senhora havia sido assaltada à faca.  
Parado ali na praça, um ônibus escolar muito velho, amarelado, frases em inglês na carroceria, em péssimo estado, aparentando mais de quarenta anos. O país original se livrou daquela sucata e ainda recebeu por isso.
Retornei à cidade pelo mesmo caminho, agora com sol e intenso mormaço. Não me apressei, a fim de observar melhor as casas e moradores.
Comovia o comportamento dos fieis diante das imagens do Padre Cícero, espalhadas pela cidade, estátuas e oratórios, admirando-as, tocando-as com as mãos antes de se persignarem e rogarem pela salvação. Alguns se ajoelhavam, lamuriavam, rezavam, veneravam as imagens, em atitudes cotidianas dos moradores, romeiros, visitantes.

As ruas da cidade viviam cheias de gente e com esgoto correndo a céu aberto. Menores de rua ofereciam insistentemente serviços de engraxate, vendas de bugigangas. Se nada funcionasse, pediam esmolas, qualquer quantia. Se não tinha trocado, respondiam que podia ser graúdo também. Pareciam gravadores, pior que mosca antes de chuva, não desistiam facilmente. A rua Padre Cícero concentrava as clínicas, os consultórios médicos e odontológicos, atendendo as cidades e vilas da região. Com esse nome de rua, devia ser grande a garantia de bom atendimento e, principalmente, da cura dos pacientes.
Visitei o memorial de Padre Cícero no centro, com fotos e pinturas relatando a história do santo. Próximo dali o oratório com a imagem em frente à igreja do Socorro, onde foi enterrado. Muitos paravam em frente ao oratório, ajoelhavam-se, pediam, choravam, imploravam, tocavam, se esfregavam nos panos da imagem. Uma idosa derrubou a pequena estátua do alto do oratório, que não se quebrou ao bater no chão. Pronto! Todos os demais se emocionaram e atribuíram a resistência ao Padre Cícero. Ao redor, lojinhas e barracas vendendo lembranças religiosas, além de muitos dormitórios simples para abrigar romeiros. No piso do altar da igreja de Socorro, local pequeno, simples e despretensioso, encontra-se a lápide da tumba com as últimas palavras dele antes de morrer e, é claro, a lista de parasitas da elite regional que exigiram a inclusão dos nomes ao lado.
Incalculável o número de pousadas, hotéis, dormitórios, abrigos, voltados aos romeiros, espalhadas pela cidade e principalmente nas imediações dos locais sagrados. Recebiam, na maioria dos casos, o nome de Padre Cícero, alterando apenas o antes, isto é, pousada, hotel, dormitório, hotel e pousada, pousada e restaurante, dormitório e refeitório e assim por diante. O mesmo acontecia com os demais pontos comerciais, sobretudo os mais simples.
O tempo abriu na parte da tarde e finalmente a noite foi limpa e estrelada. Aproveitei para andar bastante, sentar em barzinho da praça, Padre Cícero obviamente, para observar o vaivém dos moradores. No centro da praça arborizada e agradável, a estátua de cor dourada do padroeiro, bastante venerada e tocada pelos devotos.
Acordei cedo para ir a Santana do Cariri, aos pés da chapada do Araripe e sede de um dos principais museus de paleontologia do país. Peguei o ônibus urbano ao Crato onde subi na primeira caminhonete lotação da fila. O percurso subiu toda a chapada do Araripe, cruzou já no topo a floresta nacional do Araripe, efetuou rápida parada na cidade de Nova Olinda, desceu novamente a encosta da chapada, atingindo a cidadezinha de Santana do Cariri, incrustada no vale entre as escarpas da serra. Desconfortável foi manter a posição curvada enquanto sentado na carroceria coberta da caminhonete, ao lado de outros passageiros. Mesmo assim debati com o comerciante ilegal de fósseis da região, que coletava e vendia as preciosidades, clandestinamente e a preço de banana, aos grandes traficantes. Alertei sobre os malefícios da atividade predatória que, além de agredir a natureza, em pouco tempo esgotaria essa fonte de renda regional.
De Santana do Cariri se avistavam as imponentes montanhas da chapada, o Pontal da Cruz, localizado no topo da serra, composto da igreja e da cruz branca. A Chapada do Araripe é uma das maiores concentrações de fósseis do mundo, guardando espécies de peixes, plantas, insetos, ptetossauros de grandes de dimensões. E a maioria em ótimo estado de conservação. O museu de paleontologia, embora pequeno e básico, mostrou a história geológica da região em mais de cem milhões de anos.
Crato, Juazeiro e inúmeras cidades nordestinas exibiam linhas de trem e estações ferroviárias ainda intactas, grandes, bonitas, mas, infelizmente, desativadas. As linhas estavam abandonadas e cobertas pelo mato. Triste desperdício para o Brasil e os brasileiros na desativação premeditada para beneficiar as transnacionais do transporte rodoviário.

Embarquei em ônibus para Sousa na Paraíba. O trajeto cruzou campos e caatingas esverdeadas, serrotes, buritizais rodeados de aguapés coloridos, açudes quase cheios, cidadezinhas. Praticamente nada de plantações ou uso da terra. Na cidadezinha na beira da estrada, a faixa em frente ao bar e restaurante alertava “é proibido o uso de som do carro”. Perfeito! Se todos agissem assim, a paz voltaria a reinar nos espaços públicos e ficaríamos livres da ensurdecedora poluição sonora dos veículos.
Saía da pobreza do Ceará e entrava na miséria da Paraíba. Desolava o aspecto das vilas e cidades paraibanas. Ruas esburacadas, casas ou barracos em péssimo estado, semblante desesperador dos moradores na beira da estrada, escancaravam cenas reais do sertão nordestino devastado pelo latifúndio, autoritarismo, indústria da seca. Os paraibanos são ainda mais claros que os cearenses, alguns aloirados, e o sotaque mais carregado e rústico.
Em Sousa me hospedei em hotel velho e decadente, de propriedade de família tradicional da cidade, cujos funcionários pareciam fantasmas. O quarto era amplo e com cama de casal. Mas o hotel dava espetáculos de abandono e má gestão. A iluminação do quarto mal iluminava, sem falar na lâmpada queimada do banheiro. A janela do quarto tinha menos de meio metro de largura e a persiana estava emperrada, impedindo a entrada de luz. Os imundos tacos do piso se soltavam por nada. O chuveiro, mal instalado e direcionado para a torneira, vazava, ao lado do registro danificado. O telefone ainda era de disco e estava mudo. O supérfluo ar condicionado apresentava todos os seletores quebrados, tornando impossível regular temperatura, direção dos jatos, etc. O teto mofado denunciava vazamentos em outros andares. As formigas tomaram o poder no quarto, ocupando a maioria dos lugares, subindo e descendo da cama sem pedir autorização. E o paradoxo de tudo isso, o televisor, novíssimo, último tipo.
A área central de Sousa era organizada, com a praça principal rodeada de residências, sombreada pelo verde das árvores frondosas, a nova e imponente catedral ao lado da antiga igreja, pequena e charmosa. Os moradores saíam para caminhadas vespertinas pelas ruas e praças, usando uniformes esportivos, sobretudo as mulheres. Uiraúna, cidade natal de Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo, fica a cinquenta quilômetros ao norte.
Descobri restaurante familiar muito simples, com serviço informal e atencioso, no quintal coberto de uma casa. As carnes desejadas, nas quantidades desejadas, no ponto desejado, vinham diretamente da grelha. Também serviam caldo de ovas de curimatã. O ambiente estava repleto de universitários da classe dominante local, de peles claras, bem vestidos, gordinhos, bem alimentados, com celular na cintura, rindo alto.
Caminhei quatro quilômetros em estrada asfaltada sem acostamento e mais um quilômetro na estrada de terra. Além do centro de visitação, logo na entrada, o parque dos Dinossauros reservava museu com fotos, amostras, gráficos explicativos sobre os dinossauros e as pegadas de mais de 120 milhões de anos, encontradas em vários municípios da região e figurando entre as mais importantes do mundo. Passarelas facilitavam a observação dos cerca de cinquenta metros de enormes pegadas dos dinossauros no leito seco do rio ao lado.
À noite, o salão coberto e ventilado do clube de Sousa, onde ocorria o festival de violeiros e repentistas, lotava com centenas de pessoas, da cidade e regiões vizinhas. Ninguém estava ali para se exibir, e sim para se encontrar e principalmente ouvir os artistas mostrarem as qualidades de poeta e cantador. A idade era variada, tanto dos repentistas como da plateia. A maioria das orgulhosas mulheres presentes estava acompanhada.
O festival consistia do concurso de improvisação para duplas de violeiros, provenientes da Paraíba, Pernambuco, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte. O corpo de jurados sentado em frente ao palco avaliava o desempenho das duplas em quatro categorias distintas. No intervalo do desempenho dos concorrentes, havia apresentações da dupla de emboladores Beija Flor e Vem Vem, com cocos ao som dos pandeiros, e também de poetas que recitavam versos engraçados. Barraquinhas vendiam fitas cassete e CD’s.

A primeira categoria do concurso era a estrofe com seis versos, com tema sorteado na hora para cada dupla, as quais tinham um minuto de preparação e seis minutos de apresentação. Entre os temas sorteados, política, futebol, mulher, amizade, negócios. A segunda categoria sorteou o mote de sete sílabas, a ser repetido no último verso de cada estrofe improvisada. A terceira categoria, análoga à anterior, exigiu o mote com doze sílabas. A quarta categoria pedia tema livre, mas em cima de estilos sorteados, entre embolada, coco, galope à beira mar, reino da canoa.
Durante as apresentações, a plateia se manifestava conforme o efeito produzido pelos versos. Mas todos ouviam com atenção e ovacionavam os prediletos. Nos temas improvisados que remetiam a temas políticos, de segurança, pobreza, saúde, o calor dos versos contagiava e recebia apupos, gritos, palmas. Não havia truques, era improviso puro. Algumas duplas se sobressaíram, mas todas tinham valor.
Na parte externa do salão, o bar do clube vendia o trivial. Mas um ambulante oferecia espetinho de queijo ou carne com coberturas de creme de farinha de mandioca e outros ingredientes, por preço irrisório. O processo de preparo demorava, abrindo e fechando a chapa quente, jogando repetidas camadas de creme enquanto girava os espetos. Entrei duas vezes na fila para variar o sabor.
O hotel em que me hospedei possuía piscina no primeiro piso. Mas, considerando o desleixo em tudo, não estranhei a água suja, amarelada, coberta de uma variedade de bichos. Na última vez que foi limpa e tratada, provavelmente os dinossauros ainda circulavam na região. Entrei em acordo com as formigas, as legítimas proprietárias do quarto, e consegui dormir.
Embarquei em lotação rumo ao distrito de São Gonçalo, onde se encontrava açude de mesmo nome, cercado de colinas. Na primeira delas, havia gruta com oratório e oferendas, além de restaurantes e bares. Permaneci horas por ali, sentado, contemplando o visual do açude, as ilhas, barcos, casas, tomando caipirinhas, detonando tucunaré frito com baião-de-dois.
O percurso de ônibus se Sousa a João Pessoa cruzou a caatinga, verde pelas chuvas recentes, mas caatinga, com árvores espinhentas, galhos retorcidos, serras pedregosas com vegetação rala, nas proximidades de Santa Luzia. Após Campina Grande, a vegetação passou à agreste com trechos de mata atlântica. Poucas áreas plantadas, geralmente de milho e palma. O banheiro do ônibus logo apodreceu, exalando odor impraticável. Passageiros passaram mal e vomitaram devido ao mau cheiro. Exigimos que o motorista parasse no primeiro posto e providenciasse a limpeza interna, no que fomos prontamente atendidos. Tudo ficou limpo e cheiroso. A viagem prosseguiu em paz.
Cheguei na capital no horário de pico. O trânsito não fluía.
Ao descer do ônibus urbano vindo da rodoviária, avistei uma pousada de frente para o mar. Foi o achado da viagem. O quarto no pavimento superior era amplo, claro, com três camas, duas grandes janelas de vidro basculantes, propiciando ventilação natural e vista deslumbrante da praia de Tambaú. Ao lado do quarto, varanda com mesa, cadeiras e redes. O preço era razoável, a localização ideal, o aspecto satisfatório. Arriei a mochila e fiquei.
Dei volta rápida de reconhecimento pela praia. Pequeno movimento de pedestres, poucos bares abertos, lojinhas para turistas, raros prédios altos. A chuva desabou. Abri as janelas basculantes e entrou a brisa fresca. O supérfluo ar condicionado permaneceu desligado durante toda a minha estadia. Segunda-feira à noite, chuva, e a avenida da praia de Tambaú ficou completamente deserta, num silêncio total.
continua...

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