...continuação
Atingi os pés da estátua branca do Padre Cícero com vinte
e cinco metros de altura. E logo fui cercado por guias, vendedores de
pulseiras, correntes, anéis, lembranças, imagens religiosas, miniaturas
relacionadas ao tema, a maioria crianças com menos de dez anos de idade. Quem
não tentava vender, pedia esmola. Tudo com muita insistência. Não desgrudavam.
A base da estátua estava coberta de plástico e tapumes aguardando verbas para a
restauração e contenção da estrutura abalada pelas chuvas. Romeiros escreviam
mensagens e nomes na tinta branca da estátua onde já não havia espaço livre.
Escreviam sobre os textos antigos e ninguém conseguiria ler nada. Do topo do
Horto, ampla visão da cidade de Juazeiro.
Perto dali o museu, reproduzindo cenas da vida do Padre
Cícero, mais a exposição dos objetos e fotos dos devotos em agradecimento às
graças alcançadas. Imagens fortes e tristes. Também estava sendo construído o
novo santuário de estilo exageradamente moderno e de gosto duvidoso. Do lado do
museu saía longa trilha até o Santo Sepulcro. Já trilhava os primeiros passos
quando as senhoras do casebre ao lado me advertiram para não prosseguir
desacompanhado, em virtude do risco de assaltos. Comentaram que naquela mesma
semana uma senhora havia sido assaltada à faca.
Parado ali na praça, um ônibus escolar muito velho,
amarelado, frases em inglês na carroceria, em péssimo estado, aparentando mais
de quarenta anos. O país original se livrou daquela sucata e ainda recebeu por
isso.
Retornei à cidade pelo mesmo caminho, agora com sol e
intenso mormaço. Não me apressei, a fim de observar melhor as casas e
moradores.
Comovia o comportamento dos fieis diante das imagens do
Padre Cícero, espalhadas pela cidade, estátuas e oratórios, admirando-as,
tocando-as com as mãos antes de se persignarem e rogarem pela salvação. Alguns
se ajoelhavam, lamuriavam, rezavam, veneravam as imagens, em atitudes
cotidianas dos moradores, romeiros, visitantes.
As ruas da cidade viviam cheias de gente e com esgoto
correndo a céu aberto. Menores de rua ofereciam insistentemente serviços de
engraxate, vendas de bugigangas. Se nada funcionasse, pediam esmolas, qualquer
quantia. Se não tinha trocado, respondiam que podia ser graúdo também. Pareciam
gravadores, pior que mosca antes de chuva, não desistiam facilmente. A rua Padre
Cícero concentrava as clínicas, os consultórios médicos e odontológicos,
atendendo as cidades e vilas da região. Com esse nome de rua, devia ser grande
a garantia de bom atendimento e, principalmente, da cura dos pacientes.
Visitei o memorial de Padre Cícero no centro, com fotos e
pinturas relatando a história do santo. Próximo dali o oratório com a imagem em
frente à igreja do Socorro, onde foi enterrado. Muitos paravam em frente ao
oratório, ajoelhavam-se, pediam, choravam, imploravam, tocavam, se esfregavam
nos panos da imagem. Uma idosa derrubou a pequena estátua do alto do oratório,
que não se quebrou ao bater no chão. Pronto! Todos os demais se emocionaram e
atribuíram a resistência ao Padre Cícero. Ao redor, lojinhas e barracas
vendendo lembranças religiosas, além de muitos dormitórios simples para abrigar
romeiros. No piso do altar da igreja de Socorro, local pequeno, simples e
despretensioso, encontra-se a lápide da tumba com as últimas palavras dele
antes de morrer e, é claro, a lista de parasitas da elite regional que exigiram
a inclusão dos nomes ao lado.
Incalculável o número de pousadas, hotéis, dormitórios,
abrigos, voltados aos romeiros, espalhadas pela cidade e principalmente nas
imediações dos locais sagrados. Recebiam, na maioria dos casos, o nome de Padre
Cícero, alterando apenas o antes, isto é, pousada, hotel, dormitório, hotel e
pousada, pousada e restaurante, dormitório e refeitório e assim por diante. O
mesmo acontecia com os demais pontos comerciais, sobretudo os mais simples.
O tempo abriu na parte da tarde e finalmente a noite foi
limpa e estrelada. Aproveitei para andar bastante, sentar em barzinho da praça,
Padre Cícero obviamente, para observar o vaivém dos moradores. No centro da
praça arborizada e agradável, a estátua de cor dourada do padroeiro, bastante
venerada e tocada pelos devotos.
Acordei cedo para ir a Santana do Cariri, aos pés da
chapada do Araripe e sede de um dos principais museus de paleontologia do país.
Peguei o ônibus urbano ao Crato onde subi na primeira caminhonete lotação da
fila. O percurso subiu toda a chapada do Araripe, cruzou já no topo a floresta
nacional do Araripe, efetuou rápida parada na cidade de Nova Olinda, desceu
novamente a encosta da chapada, atingindo a cidadezinha de Santana do Cariri,
incrustada no vale entre as escarpas da serra. Desconfortável foi manter a
posição curvada enquanto sentado na carroceria coberta da caminhonete, ao lado
de outros passageiros. Mesmo assim debati com o comerciante ilegal de fósseis
da região, que coletava e vendia as preciosidades, clandestinamente e a preço
de banana, aos grandes traficantes. Alertei sobre os malefícios da atividade
predatória que, além de agredir a natureza, em pouco tempo esgotaria essa fonte
de renda regional.
De Santana do Cariri se avistavam as imponentes montanhas
da chapada, o Pontal da Cruz, localizado no topo da serra, composto da igreja e
da cruz branca. A Chapada do Araripe é uma das maiores concentrações de fósseis
do mundo, guardando espécies de peixes, plantas, insetos, ptetossauros de
grandes de dimensões. E a maioria em ótimo estado de conservação. O museu de
paleontologia, embora pequeno e básico, mostrou a história geológica da região
em mais de cem milhões de anos.
Crato, Juazeiro e inúmeras cidades nordestinas exibiam
linhas de trem e estações ferroviárias ainda intactas, grandes, bonitas, mas,
infelizmente, desativadas. As linhas estavam abandonadas e cobertas pelo mato.
Triste desperdício para o Brasil e os brasileiros na desativação premeditada
para beneficiar as transnacionais do transporte rodoviário.
Embarquei em ônibus para Sousa na Paraíba. O trajeto
cruzou campos e caatingas esverdeadas, serrotes, buritizais rodeados de aguapés
coloridos, açudes quase cheios, cidadezinhas. Praticamente nada de plantações
ou uso da terra. Na cidadezinha na beira da estrada, a faixa em frente ao bar e
restaurante alertava “é proibido o uso de som do carro”. Perfeito! Se todos
agissem assim, a paz voltaria a reinar nos espaços públicos e ficaríamos livres
da ensurdecedora poluição sonora dos veículos.
Saía da pobreza do Ceará e entrava na miséria da Paraíba.
Desolava o aspecto das vilas e cidades paraibanas. Ruas esburacadas, casas ou
barracos em péssimo estado, semblante desesperador dos moradores na beira da
estrada, escancaravam cenas reais do sertão nordestino devastado pelo
latifúndio, autoritarismo, indústria da seca. Os paraibanos são ainda mais
claros que os cearenses, alguns aloirados, e o sotaque mais carregado e
rústico.
Em Sousa me hospedei em hotel velho e decadente, de
propriedade de família tradicional da cidade, cujos funcionários pareciam
fantasmas. O quarto era amplo e com cama de casal. Mas o hotel dava espetáculos
de abandono e má gestão. A iluminação do quarto mal iluminava, sem falar na
lâmpada queimada do banheiro. A janela do quarto tinha menos de meio metro de
largura e a persiana estava emperrada, impedindo a entrada de luz. Os imundos
tacos do piso se soltavam por nada. O chuveiro, mal instalado e direcionado
para a torneira, vazava, ao lado do registro danificado. O telefone ainda era
de disco e estava mudo. O supérfluo ar condicionado apresentava todos os
seletores quebrados, tornando impossível regular temperatura, direção dos
jatos, etc. O teto mofado denunciava vazamentos em outros andares. As formigas
tomaram o poder no quarto, ocupando a maioria dos lugares, subindo e descendo
da cama sem pedir autorização. E o paradoxo de tudo isso, o televisor,
novíssimo, último tipo.
A área central de Sousa era organizada, com a praça
principal rodeada de residências, sombreada pelo verde das árvores frondosas, a
nova e imponente catedral ao lado da antiga igreja, pequena e charmosa. Os
moradores saíam para caminhadas vespertinas pelas ruas e praças, usando
uniformes esportivos, sobretudo as mulheres. Uiraúna, cidade natal de Luiza
Erundina, ex-prefeita de São Paulo, fica a cinquenta quilômetros ao norte.
Descobri restaurante familiar muito simples, com serviço
informal e atencioso, no quintal coberto de uma casa. As carnes desejadas, nas
quantidades desejadas, no ponto desejado, vinham diretamente da grelha. Também
serviam caldo de ovas de curimatã. O ambiente estava repleto de universitários
da classe dominante local, de peles claras, bem vestidos, gordinhos, bem
alimentados, com celular na cintura, rindo alto.
Caminhei quatro quilômetros em estrada asfaltada sem
acostamento e mais um quilômetro na estrada de terra. Além do centro de
visitação, logo na entrada, o parque dos Dinossauros reservava museu com fotos,
amostras, gráficos explicativos sobre os dinossauros e as pegadas de mais de
120 milhões de anos, encontradas em vários municípios da região e figurando
entre as mais importantes do mundo. Passarelas facilitavam a observação dos
cerca de cinquenta metros de enormes pegadas dos dinossauros no leito seco do
rio ao lado.
À noite, o salão coberto e ventilado do clube de Sousa,
onde ocorria o festival de violeiros e repentistas, lotava com centenas de
pessoas, da cidade e regiões vizinhas. Ninguém estava ali para se exibir, e sim
para se encontrar e principalmente ouvir os artistas mostrarem as qualidades de
poeta e cantador. A idade era variada, tanto dos repentistas como da plateia. A
maioria das orgulhosas mulheres presentes estava acompanhada.
O festival consistia do concurso de improvisação para
duplas de violeiros, provenientes da Paraíba, Pernambuco, Ceará, Piauí, Rio
Grande do Norte. O corpo de jurados sentado em frente ao palco avaliava o
desempenho das duplas em quatro categorias distintas. No intervalo do
desempenho dos concorrentes, havia apresentações da dupla de emboladores Beija
Flor e Vem Vem, com cocos ao som dos pandeiros, e também de poetas que
recitavam versos engraçados. Barraquinhas vendiam fitas cassete e CD’s.
A primeira categoria do concurso era a estrofe com seis
versos, com tema sorteado na hora para cada dupla, as quais tinham um minuto de
preparação e seis minutos de apresentação. Entre os temas sorteados, política,
futebol, mulher, amizade, negócios. A segunda categoria sorteou o mote de sete
sílabas, a ser repetido no último verso de cada estrofe improvisada. A terceira
categoria, análoga à anterior, exigiu o mote com doze sílabas. A quarta
categoria pedia tema livre, mas em cima de estilos sorteados, entre embolada,
coco, galope à beira mar, reino da canoa.
Durante as apresentações, a plateia se manifestava
conforme o efeito produzido pelos versos. Mas todos ouviam com atenção e
ovacionavam os prediletos. Nos temas improvisados que remetiam a temas
políticos, de segurança, pobreza, saúde, o calor dos versos contagiava e
recebia apupos, gritos, palmas. Não havia truques, era improviso puro. Algumas
duplas se sobressaíram, mas todas tinham valor.
Na parte externa do salão, o bar do clube vendia o
trivial. Mas um ambulante oferecia espetinho de queijo ou carne com coberturas
de creme de farinha de mandioca e outros ingredientes, por preço irrisório. O
processo de preparo demorava, abrindo e fechando a chapa quente, jogando
repetidas camadas de creme enquanto girava os espetos. Entrei duas vezes na
fila para variar o sabor.
O hotel em que me hospedei possuía piscina no primeiro
piso. Mas, considerando o desleixo em tudo, não estranhei a água suja,
amarelada, coberta de uma variedade de bichos. Na última vez que foi limpa e
tratada, provavelmente os dinossauros ainda circulavam na região. Entrei em
acordo com as formigas, as legítimas proprietárias do quarto, e consegui
dormir.
Embarquei em lotação rumo ao distrito de São Gonçalo, onde
se encontrava açude de mesmo nome, cercado de colinas. Na primeira delas, havia
gruta com oratório e oferendas, além de restaurantes e bares. Permaneci horas
por ali, sentado, contemplando o visual do açude, as ilhas, barcos, casas,
tomando caipirinhas, detonando tucunaré frito com baião-de-dois.
O percurso de ônibus se Sousa a João Pessoa cruzou a
caatinga, verde pelas chuvas recentes, mas caatinga, com árvores espinhentas,
galhos retorcidos, serras pedregosas com vegetação rala, nas proximidades de
Santa Luzia. Após Campina Grande, a vegetação passou à agreste com trechos de
mata atlântica. Poucas áreas plantadas, geralmente de milho e palma. O banheiro
do ônibus logo apodreceu, exalando odor impraticável. Passageiros passaram mal
e vomitaram devido ao mau cheiro. Exigimos que o motorista parasse no primeiro
posto e providenciasse a limpeza interna, no que fomos prontamente atendidos.
Tudo ficou limpo e cheiroso. A viagem prosseguiu em paz.
Cheguei na capital no horário de pico. O trânsito não
fluía.
Ao descer do ônibus urbano vindo da rodoviária, avistei
uma pousada de frente para o mar. Foi o achado da viagem. O quarto no pavimento
superior era amplo, claro, com três camas, duas grandes janelas de vidro
basculantes, propiciando ventilação natural e vista deslumbrante da praia de
Tambaú. Ao lado do quarto, varanda com mesa, cadeiras e redes. O preço era
razoável, a localização ideal, o aspecto satisfatório. Arriei a mochila e
fiquei.
Dei volta rápida de reconhecimento pela praia. Pequeno
movimento de pedestres, poucos bares abertos, lojinhas para turistas, raros
prédios altos. A chuva desabou. Abri as janelas basculantes e entrou a brisa
fresca. O supérfluo ar condicionado permaneceu desligado durante toda a minha
estadia. Segunda-feira à noite, chuva, e a avenida da praia de Tambaú ficou
completamente deserta, num silêncio total.
continua...
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