segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

do Maranhão à Paraíba (parte 2/6)

...continuação
Bem cedo em ônibus a Barreirinhas e aos Lençóis Maranhenses. A rodovia recém-asfaltada cortava florestas nativas com babaçuais e açaizais, pequenas dunas espalhadas, comunidades miseráveis e sujas vegetando em casas de barro cobertas de palha.
Barreirinhas, porta de entrada aos Lençóis Maranhenses, fica na margem do preguiçoso rio Preguiças. Os pequenos barcos iam e vinham. Bucólica paisagem surgia de qualquer direção que se olhasse.
Embarquei em caminhonete com tração nas quatro rodas. Cruzamos o rio Preguiças em balsa puxada manualmente por quatro rapazes através de corda amarrada em ambas as margens. Era um veículo por vez e ajudamos a puxar também. Na outra margem, já dentro dos limites do parque nacional, avançamos por estrada de areia deslizante, margeando raras casas e roças, diversos cajueiros sem frutos, pequenas lagoas, fios de água, sacolejos pelos sobes e desces. E a borda das grandes dunas de areia clara, de onde seguimos a pé.
Percorremos as imensas dunas, na depressão das quais apenas as maiores lagoas contavam com água permanente durante todo o ano. As águas variavam de esverdeadas a azuladas, incrivelmente transparentes, com temperatura ideal para mergulhos. Do alto das dunas, o deserto infinito e único.
À noite os novos colegas marcaram jantar em restaurante regado ao guaraná regional, da marca Jesus, de coloração rosa choque, homenageando o nome do criador da marca. Doce e enjoativo demais. E conseguiu piorar, de gosto e preço, depois de adquirido por famigerada transnacional estadunidense.

O barco básico e de linha regular para Caburé não tinha hora certa para a partida, dependendo da maré. O trajeto pelo rio Preguiças margeou manguezais, florestas, palmeiras, raros e pequenos vilarejos com cabanas feitas de palha, dunas nos arredores de Vassouras, a vila de Mandacaru com o farol. Na grande curva do rio, já com menos vegetação e mais areia, surgiu Caburé, situada em faixa de areia entre o rio e o mar. A vila se resumia a seis pousadas com chalés, cerca de quinze cabanas de palha. E muita areia.
Não havia energia elétrica. O vento permanente refrescava e espantava os mosquitos. Os chalés eram espaçosos, rústicos e com tijolo aparente, muita ventilação interna garantida pelas venezianas e pelos pequenos orifícios deliberadamente abertos nas paredes. A cobertura de palha proporcionava som agradável de chuva fina.
O vento constante causava a contínua movimentação das dunas. Os moradores comumente se mudavam das casas invadidas pela areia, total ou parcialmente. Mesmo as pousadas mais estruturadas não escapavam.
À noite, depois da volta dos barcos de turismo para Barreirinhas, a paz em Caburé era incomparável. A ausência de pão no saboroso café da manhã foi compensada pela tapioca.
Tentei alcançar a pé a foz do rio Preguiças pela margem do rio, em caminho com areia fofa, pontilhado de cabanas de palha, as águas do rio à esquerda, as dunas à direita. Depois, os manguezais, árvores de porte. E ficou impossível prosseguir. Dobrei à direita, superei pequenas dunas e lagoas com pouca água ou completamente secas. Somente cabras e jumentos no alto das dunas. Atingi a praia em trecho reto e plano. Nas proximidades da foz do rio Preguiças, a cabana para se proteger do sol, bem alta e com escada. Deslumbrava a vista lá de cima, da foz do rio, do vilarejo de Atins na outra margem, do mar aberto. O rio desaguava em curvas no oceano. O choque das águas provocava ondas, numa minúscula pororoca. A sombra e o vento constante refrescavam.
Retornei a Caburé pela praia, com direito a mergulhos em mar bastante agitado. A praia, limpa e deserta, não primava pela beleza, mas reservava significativa quantidade de conchas e caramujos, de formatos e tamanhos variados.

Em virtude do carnaval, eu deveria desocupar o quarto da pousada na manhã seguinte. Me entristecia deixar o sossego de Caburé.
Arranjei espaço na carroceria na caminhonete. Emocionou o trajeto pela beira do mar e por dentro das dunas dos pequenos Lençóis, no topo das quais, a pé, apreciei o visual das lagoas. Petiscos na vila de Rio Novo (Paulino Neves). Depois passamos por pequenas aldeias rurais, lagoas, riachos. O papo corria solto e animado na carroceria.
Feriado de carnaval. Tudo lotado ou reservado em Tutóia na chegada à noite. Tentei em vários hotéis e pousadas. Em um deles, o funcionário me ofereceu, a preço simbólico, o quarto de cerca de dois metros quadrados, na companhia de vassouras, latas, caixas velhas. Mas se lembrou de outro hotel, a quarteirões dali, no final da rua. Foi e voltou correndo. E me comunicou que um quarto vagara devido à reserva cancelada. Era pegar ou largar. Aceitei sem ao menos olhar. Agradeci a boa vontade e paciência do maranhense.
O hotel tinha quartos com entradas independentes da recepção, todos de frente para a escuridão. Nada se via depois das escadas e a impressão era de final da cidade. Tomei banho caprichado a fim de remover a areia no rosto, corpo, cabelos.
No bar em frente à recepção tomei umas e fui andar. Penetrar naquele breu, em frente ao hotel, de onde não vinha nenhum sinal de vida, nem pensar. Mais à direita, ao fundo, bares sujos e deprimentes, a iluminação avermelhada, mulheres velhas vestindo roupas curtas e brilhantes. Na região eram chamados de “ambientes”. E mais nada. O centro da cidade ficava longe. Voltei ao quarto.
Choveu do início da madrugada até o amanhecer. Assim que abri a porta do quarto e olhei para frente, percebi que o negrume da noite anterior se tratava de uma praia. A maré baixa e a escuridão sem luar impediram que eu notasse a luz ou o som das águas. Era extensa, sem grandes belezas, com areia dura e cinzenta. E quase em frente, havia um longo navio encalhado, naufragado décadas atrás. Os limites ocidentais do delta do Parnaíba aparecem no fundo à direita.
Aproveitei a tranquilidade da manhã, escolhi uma mesa coberta de palha, localizada em frente ao bar do hotel, e sentei-me para relaxar, refletir, escrever. Era domingo de carnaval. Pequenos bares e turistas regionais completavam o cenário.

O sossego durou pouco. Dois carros, trazendo doze pessoas, estacionaram ao lado. Ocuparam duas mesas e, assim que o garçom apareceu, perguntaram:
“e o som?”, “e o som?”.
O garçom respondeu que ligaria em poucos minutos. Não querendo esperar, um deles dirigiu-se ao carro e, para o meu desespero e da natureza ao redor, ligou o som no último volume. Alto, muito alto. Nem entre eles era possível conversar. O carro vomitava lixo do tipo axé, ou qualquer coisa parecida. E ainda não eram 10h da manhã.
E veio a hecatombe. Dois imensos caminhões de som, semelhantes a trios elétricos, ali estacionaram. Durante todo o dia martelaram o som dos carnavais baianos. Talvez disputando entre si o som mais potente. A praia em frente lotou. Mal se podia circular. A maioria bebia muito. Choviam jatos de espuma e farinha.
Calmaria somente depois de caminhar centenas de metros pela praia. Mesmo assim, nada para apreciar. A poluição sonora se encerrou antes das 18h. A legião de bêbados e anestesiados pelo barulho saiu em procissão, atrás dos caminhões, rumo ao centro da cidade, local das festas noturnas.
Encontrei um restaurante simples para o jantar, o mesmo em que comi dois anos antes. Ofereciam frango, lingüiça e carne de sol na grelha, acompanhado de arroz, feijão e farofa. Tudo, muito saboroso, saía por apenas cinco reais.
Finalmente dia de folga para os ouvidos. A agitação diurna da segunda-feira de carnaval seria em distrito rural distante.
A funcionária do hotel, não registrada como os demais, recebia apenas cento e vinte reais por mês, para trabalhar sete dias por semana, doze horas por dia, ficando quatorze horas no dia anterior. Era obrigada a fazer de tudo, faxina, cozinha, sem direito à folga. Adoeceu e teve que faltar cinco dias. Descontaram do salário. Tinha trinta anos, embora aparentasse mais de cinquenta. A dona do hotel dirigia a casa ao estilo dos velhos coronéis. Abusava do autoritarismo e despertava o ódio dos empregados. Era grande o desemprego em Tutóia, ainda pior para analfabetos ou semianalfabetos.
O centro da cidade era típico de cidadezinhas do interior do nordeste nas manhãs de segunda-feira. Comércio intenso, movimentação grande de pessoas, dezenas de ambulantes, barracas vendendo de tudo, alto-falantes das lojas chamando os fregueses. Vida, muita vida. A situação se repetia nos arredores do porto fluvial. Por entre o mercado de peixes, prostitutas menores de idade circulavam pelas barracas ou sentadas tomando umas e outras.
Na maré baixa era possível chegar até o navio encalhado. Restavam-lhe somente ruínas e ferrugem. O sol apareceu na parte da tarde e, com ele, uma luz maravilhosa. Era delicioso sentar fora do quarto, contemplar a paisagem e o tranquilo movimento de pessoas na praia.

Embarquei em ônibus sujo e caindo aos pedaços. Da empresa Transbrasiliana, claro. Cheirava mal, os bancos não conseguiam reclinar, a lataria se soltava numa barulheira infernal. Com as estradas maranhenses esburacadas e repletas de crateras, o ônibus parecia se desmanchar. O trajeto passou por cidades pequenas, onde o carnaval de rua seguia solto e animado.
O ônibus chegou na estação rodoviária de São Luís bem antes do amanhecer. Sentei no banco da rodoviária, deserta naquela hora, coloquei a mochila entre as pernas e, sem adormecer, permaneci até o sol raiar. No banheiro limpo e bem bolado da estação, as latrinas ficavam no nível do chão, entre azulejos e ranhuras antiderrapantes no piso. Ideia genial para banheiros públicos. Higiênicos, sem contato físico, auxiliam em prisões de ventre.
A noite no centro histórico da Praia Grande ofereceu apresentações de grupos de Tambor de Crioula, danças típicas, pequenos blocos carnavalescos. O Tambor de Crioula, oriundo dos quilombos, guarda som básico e rústico. Longos tambores dão o tom. Um ou mais vocalistas improvisam versos, nem sempre compreensíveis. As mulheres, com vestidos coloridos e rodados, acompanham a percussão dançando e se chocando no umbigo. Vez ou outra, os homens paravam de tocar e colocavam os instrumentos próximos ao fogo, para afiná-los.
São Luís acordou como feriado, com poucos estabelecimentos abertos, pouca gente nas ruas. Parecia cemitério. Vazio e triste. Entreguei-me à preguiça envolvente.
Ao entardecer e à noite, diversos tipos de caldos faziam muito sucesso na região. De carne, peixe, camarão, frango e, principalmente, de ovos, em pratos fundos, sustentavam bem.
Peguei o ônibus rumo às praias, via avenida litorânea. Cruzei o rio Anil e entrei nos bairros novos, através de grandes avenidas, ao lado de altos edifícios, bastante asfalto, pouco verde. Outro mundo, completamente diferente do centro histórico. As praias de Ponta de Areia, São Marcos e Calhau foram urbanizadas com avenidas, calçadões, quiosques com comes e bebes. Nunca foram bonitas, apenas grandes extensões de areia dura com pouca vegetação. Desci na praia do Calhau onde não havia quase ninguém. Escolhi uma barraca montada na areia. Mas não havia nada nem ninguém para apreciar. Nuvens escuras e grossas trouxeram pancadas de chuva, fracas e passageiras.
O centro comercial de São Luís girava em torno da rua Grande, fechada para tráfego de veículos e lotada de lojas em ambos os lados. Guardava jeitão leve, agradável e nada opressivo. Eu chamava a atenção dos pedestres, sobretudo depois de babar sorvete de chocolate na camiseta de cor clara.
Como na Bahia, onde centenas de lugares levavam o nome da família do famigerado Magalhães, no Maranhão tinham o nome da família do famigerado Sarney. Deputados, vereadores, e principalmente o próprio chefe do clã, estragavam o nome de pontes, escolas, hospitais, ruas, avenidas, prédios públicos, entre outros.
Passei o dia, ao lado do casal de geógrafos paulistas, na cidade histórica de Alcântara, acessada de barco pela baía de São Marcos. A maioria dos passageiros era de turistas do norte e nordeste do Brasil. Poucos estrangeiros. A maré da baía provoca oscilação do nível do mar de até doze metros. O mar praticamente sumia da Praia Grande, substituído por extenso e escuro lamaçal.
continua...

2 comentários:

  1. Olá meu nome é Bruna, sou de São Luis e gostei muito do seu blog, ele retrata tal e qual é minha quase linda cidade, ainda temos muito o que melhorar para receber nossos turistas e principalmente para dar uma vida melhor para nossos cidadãos. Agora o que talvez você tenha exagerado é na descrição das praias; "Assim como as demais praias da ilha, a de Araçagi não chamava a atenção." Nossas praias são rústicas e sem infraestrutura, concordo, mais são lindas sim, em sua peculiar beleza, com um mar de ondas leves, um sol deslumbrante a boa comida a curta distância. Sugiro que volte outra vez e conheça nossas outras opções de lazer e quem sabe mude sua concepção sobre nossas praias conhecendo outras bem melhores, te garanto que tem!!

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  2. Oi Bruna, obrigado pelos comentários. São sempre bem-vindos, elogiosos ou não.
    Nessa ocasião fora minha segunda viagem ao Maranhão. Depois vieram outras, também já publicadas nesse mesmo blog, porque adoro seu estado e seu povo, a despeito das mazelas sociais, tão comuns em nosso país e ainda mais graves por aí.
    Libertem-se dessa oligarquia que há décadas explora e oprime o povo maranhense. Tudo no estado só vai melhorar quando ficarem livres desse bando. Tenho certeza que você sabe de quem estou falando.
    Quanto a Araçagi, para onde voltei outras vezes, realmente não é uma praia que me agrada. Mas o pior por ali é a liberação da entrada de carros, trazendo consigo lixo e a poluição sonora das caixas de som. Quase não existe mais praias assim no Brasil e, se não derem um jeito, ela se acabará em pouco tempo.
    De qualquer maneira adoro o Maranhão, a cultura, os bois, a natureza, a comida e sobretudo o povo simpático e acolhedor. Por isso sempre volto.
    Leia e comente os relatos de outras viagens ao Maranhão, quando visitei, além da ilha de Sâo Luís, Cururupu, os Lençóis Maranhenses, Tutóia, Carolina, Santa Inês, Pindaré, Alto Parnaíba, etc.
    Abraços!

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