...continuação
Bem cedo em ônibus a Barreirinhas e aos Lençóis
Maranhenses. A rodovia recém-asfaltada cortava florestas nativas com babaçuais
e açaizais, pequenas dunas espalhadas, comunidades miseráveis e sujas vegetando
em casas de barro cobertas de palha.
Barreirinhas, porta de entrada aos Lençóis Maranhenses,
fica na margem do preguiçoso rio Preguiças. Os pequenos barcos iam e vinham. Bucólica
paisagem surgia de qualquer direção que se olhasse.
Embarquei em caminhonete com tração nas quatro rodas.
Cruzamos o rio Preguiças em balsa puxada manualmente por quatro rapazes através
de corda amarrada em ambas as margens. Era um veículo por vez e ajudamos a
puxar também. Na outra margem, já dentro dos limites do parque nacional,
avançamos por estrada de areia deslizante, margeando raras casas e roças,
diversos cajueiros sem frutos, pequenas lagoas, fios de água, sacolejos pelos
sobes e desces. E a borda das grandes dunas de areia clara, de onde seguimos a
pé.
Percorremos as imensas dunas, na depressão das quais
apenas as maiores lagoas contavam com água permanente durante todo o ano. As
águas variavam de esverdeadas a azuladas, incrivelmente transparentes, com
temperatura ideal para mergulhos. Do alto das dunas, o deserto infinito e
único.
À noite os novos colegas marcaram jantar em restaurante
regado ao guaraná regional, da marca Jesus, de coloração rosa choque,
homenageando o nome do criador da marca. Doce e enjoativo demais. E conseguiu
piorar, de gosto e preço, depois de adquirido por famigerada transnacional
estadunidense.
O barco básico e de linha regular para Caburé não tinha
hora certa para a partida, dependendo da maré. O trajeto pelo rio Preguiças
margeou manguezais, florestas, palmeiras, raros e pequenos vilarejos com
cabanas feitas de palha, dunas nos arredores de Vassouras, a vila de Mandacaru
com o farol. Na grande curva do rio, já com menos vegetação e mais areia,
surgiu Caburé, situada em faixa de areia entre o rio e o mar. A vila se resumia
a seis pousadas com chalés, cerca de quinze cabanas de palha. E muita areia.
Não havia energia elétrica. O vento permanente refrescava
e espantava os mosquitos. Os chalés eram espaçosos, rústicos e com tijolo
aparente, muita ventilação interna garantida pelas venezianas e pelos pequenos
orifícios deliberadamente abertos nas paredes. A cobertura de palha
proporcionava som agradável de chuva fina.
O vento constante causava a contínua movimentação das
dunas. Os moradores comumente se mudavam das casas invadidas pela areia, total
ou parcialmente. Mesmo as pousadas mais estruturadas não escapavam.
À noite, depois da volta dos barcos de turismo para
Barreirinhas, a paz em Caburé era incomparável. A ausência de pão no saboroso
café da manhã foi compensada pela tapioca.
Tentei alcançar a pé a foz do rio Preguiças pela margem do
rio, em caminho com areia fofa, pontilhado de cabanas de palha, as águas do rio
à esquerda, as dunas à direita. Depois, os manguezais, árvores de porte. E
ficou impossível prosseguir. Dobrei à direita, superei pequenas dunas e lagoas
com pouca água ou completamente secas. Somente cabras e jumentos no alto das
dunas. Atingi a praia em trecho reto e plano. Nas proximidades da foz do rio
Preguiças, a cabana para se proteger do sol, bem alta e com escada. Deslumbrava
a vista lá de cima, da foz do rio, do vilarejo de Atins na outra margem, do mar
aberto. O rio desaguava em curvas no oceano. O choque das águas provocava
ondas, numa minúscula pororoca. A sombra e o vento constante refrescavam.
Retornei a Caburé pela praia, com direito a mergulhos em
mar bastante agitado. A praia, limpa e deserta, não primava pela beleza, mas
reservava significativa quantidade de conchas e caramujos, de formatos e
tamanhos variados.
Em virtude do carnaval, eu deveria desocupar o quarto da
pousada na manhã seguinte. Me entristecia deixar o sossego de Caburé.
Arranjei espaço na carroceria na caminhonete. Emocionou o
trajeto pela beira do mar e por dentro das dunas dos pequenos Lençóis, no topo
das quais, a pé, apreciei o visual das lagoas. Petiscos na vila de Rio Novo
(Paulino Neves). Depois passamos por pequenas aldeias rurais, lagoas, riachos.
O papo corria solto e animado na carroceria.
Feriado de carnaval. Tudo lotado ou reservado em Tutóia na
chegada à noite. Tentei em vários hotéis e pousadas. Em um deles, o funcionário
me ofereceu, a preço simbólico, o quarto de cerca de dois metros quadrados, na
companhia de vassouras, latas, caixas velhas. Mas se lembrou de outro hotel, a
quarteirões dali, no final da rua. Foi e voltou correndo. E me comunicou que um
quarto vagara devido à reserva cancelada. Era pegar ou largar. Aceitei sem ao
menos olhar. Agradeci a boa vontade e paciência do maranhense.
O hotel tinha quartos com entradas independentes da
recepção, todos de frente para a escuridão. Nada se via depois das escadas e a
impressão era de final da cidade. Tomei banho caprichado a fim de remover a
areia no rosto, corpo, cabelos.
No bar em frente à recepção tomei umas e fui andar.
Penetrar naquele breu, em frente ao hotel, de onde não vinha nenhum sinal de
vida, nem pensar. Mais à direita, ao fundo, bares sujos e deprimentes, a
iluminação avermelhada, mulheres velhas vestindo roupas curtas e brilhantes. Na
região eram chamados de “ambientes”. E mais nada. O centro da cidade ficava
longe. Voltei ao quarto.
Choveu do início da madrugada até o
amanhecer. Assim que abri a porta do quarto e olhei para frente, percebi que o
negrume da noite anterior se tratava de uma praia. A maré baixa e a escuridão
sem luar impediram que eu notasse a luz ou o som das águas. Era extensa, sem
grandes belezas, com areia dura e cinzenta. E quase em frente, havia um longo
navio encalhado, naufragado décadas atrás. Os limites ocidentais do delta do
Parnaíba aparecem no fundo à direita.
Aproveitei a tranquilidade da manhã, escolhi uma mesa
coberta de palha, localizada em frente ao bar do hotel, e sentei-me para
relaxar, refletir, escrever. Era domingo de carnaval. Pequenos bares e turistas
regionais completavam o cenário.
O sossego durou pouco. Dois carros, trazendo doze pessoas,
estacionaram ao lado. Ocuparam duas mesas e, assim que o garçom apareceu,
perguntaram:
“e o som?”, “e o som?”.
O garçom respondeu que ligaria em poucos minutos. Não
querendo esperar, um deles dirigiu-se ao carro e, para o meu desespero e da
natureza ao redor, ligou o som no último volume. Alto, muito alto. Nem entre
eles era possível conversar. O carro vomitava lixo do tipo axé, ou qualquer
coisa parecida. E ainda não eram 10h da manhã.
E veio a hecatombe. Dois imensos caminhões de som,
semelhantes a trios elétricos, ali estacionaram. Durante todo o dia martelaram
o som dos carnavais baianos. Talvez disputando entre si o som mais potente. A
praia em frente lotou. Mal se podia circular. A maioria bebia muito. Choviam
jatos de espuma e farinha.
Calmaria somente depois de caminhar centenas de metros
pela praia. Mesmo assim, nada para apreciar. A poluição sonora se encerrou
antes das 18h. A legião de bêbados e anestesiados pelo barulho saiu em
procissão, atrás dos caminhões, rumo ao centro da cidade, local das festas
noturnas.
Encontrei um restaurante simples para o jantar, o mesmo em
que comi dois anos antes. Ofereciam frango, lingüiça e carne de sol na grelha,
acompanhado de arroz, feijão e farofa. Tudo, muito saboroso, saía por apenas
cinco reais.
Finalmente dia de folga para os ouvidos. A agitação diurna
da segunda-feira de carnaval seria em distrito rural distante.
A funcionária do hotel, não registrada como os demais,
recebia apenas cento e vinte reais por mês, para trabalhar sete dias por
semana, doze horas por dia, ficando quatorze horas no dia anterior. Era
obrigada a fazer de tudo, faxina, cozinha, sem direito à folga. Adoeceu e teve
que faltar cinco dias. Descontaram do salário. Tinha trinta anos, embora
aparentasse mais de cinquenta. A dona do hotel dirigia a casa ao estilo dos
velhos coronéis. Abusava do autoritarismo e despertava o ódio dos empregados.
Era grande o desemprego em Tutóia, ainda pior para analfabetos ou
semianalfabetos.
O centro da cidade era típico de cidadezinhas do interior
do nordeste nas manhãs de segunda-feira. Comércio intenso, movimentação grande
de pessoas, dezenas de ambulantes, barracas vendendo de tudo, alto-falantes das
lojas chamando os fregueses. Vida, muita vida. A situação se repetia nos
arredores do porto fluvial. Por entre o mercado de peixes, prostitutas menores
de idade circulavam pelas barracas ou sentadas tomando umas e outras.
Na maré baixa era possível chegar até o navio encalhado. Restavam-lhe
somente ruínas e ferrugem. O sol apareceu na parte da tarde e, com ele, uma luz
maravilhosa. Era delicioso sentar fora do quarto, contemplar a paisagem e o
tranquilo movimento de pessoas na praia.
Embarquei em ônibus sujo e caindo aos pedaços. Da empresa
Transbrasiliana, claro. Cheirava mal, os bancos não conseguiam reclinar, a
lataria se soltava numa barulheira infernal. Com as estradas maranhenses
esburacadas e repletas de crateras, o ônibus parecia se desmanchar. O trajeto
passou por cidades pequenas, onde o carnaval de rua seguia solto e animado.
O ônibus chegou na estação rodoviária de São Luís bem
antes do amanhecer. Sentei no banco da rodoviária, deserta naquela hora,
coloquei a mochila entre as pernas e, sem adormecer, permaneci até o sol raiar.
No banheiro limpo e bem bolado da estação, as latrinas ficavam no nível do
chão, entre azulejos e ranhuras antiderrapantes no piso. Ideia genial para
banheiros públicos. Higiênicos, sem contato físico, auxiliam em prisões de
ventre.
A noite no centro histórico da Praia Grande ofereceu
apresentações de grupos de Tambor de Crioula, danças típicas, pequenos blocos
carnavalescos. O Tambor de Crioula, oriundo dos quilombos, guarda som básico e
rústico. Longos tambores dão o tom. Um ou mais vocalistas improvisam versos,
nem sempre compreensíveis. As mulheres, com vestidos coloridos e rodados,
acompanham a percussão dançando e se chocando no umbigo. Vez ou outra, os
homens paravam de tocar e colocavam os instrumentos próximos ao fogo, para
afiná-los.
São Luís acordou como feriado, com poucos estabelecimentos
abertos, pouca gente nas ruas. Parecia cemitério. Vazio e triste. Entreguei-me
à preguiça envolvente.
Ao entardecer e à noite, diversos tipos de caldos faziam
muito sucesso na região. De carne, peixe, camarão, frango e, principalmente, de
ovos, em pratos fundos, sustentavam bem.
Peguei o ônibus rumo às praias, via avenida litorânea.
Cruzei o rio Anil e entrei nos bairros novos, através de grandes avenidas, ao
lado de altos edifícios, bastante asfalto, pouco verde. Outro mundo,
completamente diferente do centro histórico. As praias de Ponta de Areia, São
Marcos e Calhau foram urbanizadas com avenidas, calçadões, quiosques com comes
e bebes. Nunca foram bonitas, apenas grandes extensões de areia dura com pouca
vegetação. Desci na praia do Calhau onde não havia quase ninguém. Escolhi uma
barraca montada na areia. Mas não havia nada nem ninguém para apreciar. Nuvens
escuras e grossas trouxeram pancadas de chuva, fracas e passageiras.
O centro comercial de São Luís girava em torno da rua
Grande, fechada para tráfego de veículos e lotada de lojas em ambos os lados.
Guardava jeitão leve, agradável e nada opressivo. Eu chamava a atenção dos
pedestres, sobretudo depois de babar sorvete de chocolate na camiseta de cor
clara.
Como na Bahia, onde centenas de lugares levavam o nome da
família do famigerado Magalhães, no Maranhão tinham o nome da família do
famigerado Sarney. Deputados, vereadores, e principalmente o próprio chefe do
clã, estragavam o nome de pontes, escolas, hospitais, ruas, avenidas, prédios
públicos, entre outros.
Passei o dia, ao lado do casal de geógrafos paulistas,
na cidade histórica de Alcântara, acessada de barco pela baía de São Marcos. A
maioria dos passageiros era de turistas do norte e nordeste do Brasil. Poucos
estrangeiros. A maré da baía provoca oscilação do nível do mar de até doze
metros. O mar praticamente sumia da Praia Grande, substituído por extenso e
escuro lamaçal.
continua...
Olá meu nome é Bruna, sou de São Luis e gostei muito do seu blog, ele retrata tal e qual é minha quase linda cidade, ainda temos muito o que melhorar para receber nossos turistas e principalmente para dar uma vida melhor para nossos cidadãos. Agora o que talvez você tenha exagerado é na descrição das praias; "Assim como as demais praias da ilha, a de Araçagi não chamava a atenção." Nossas praias são rústicas e sem infraestrutura, concordo, mais são lindas sim, em sua peculiar beleza, com um mar de ondas leves, um sol deslumbrante a boa comida a curta distância. Sugiro que volte outra vez e conheça nossas outras opções de lazer e quem sabe mude sua concepção sobre nossas praias conhecendo outras bem melhores, te garanto que tem!!
ResponderExcluirOi Bruna, obrigado pelos comentários. São sempre bem-vindos, elogiosos ou não.
ResponderExcluirNessa ocasião fora minha segunda viagem ao Maranhão. Depois vieram outras, também já publicadas nesse mesmo blog, porque adoro seu estado e seu povo, a despeito das mazelas sociais, tão comuns em nosso país e ainda mais graves por aí.
Libertem-se dessa oligarquia que há décadas explora e oprime o povo maranhense. Tudo no estado só vai melhorar quando ficarem livres desse bando. Tenho certeza que você sabe de quem estou falando.
Quanto a Araçagi, para onde voltei outras vezes, realmente não é uma praia que me agrada. Mas o pior por ali é a liberação da entrada de carros, trazendo consigo lixo e a poluição sonora das caixas de som. Quase não existe mais praias assim no Brasil e, se não derem um jeito, ela se acabará em pouco tempo.
De qualquer maneira adoro o Maranhão, a cultura, os bois, a natureza, a comida e sobretudo o povo simpático e acolhedor. Por isso sempre volto.
Leia e comente os relatos de outras viagens ao Maranhão, quando visitei, além da ilha de Sâo Luís, Cururupu, os Lençóis Maranhenses, Tutóia, Carolina, Santa Inês, Pindaré, Alto Parnaíba, etc.
Abraços!