Nada melhor que, em seguida à exploração da Patagônia,
contrapor um roteiro leve e quente pelo nordeste do Brasil.
O ônibus partiu em janeiro do terminal rodoviário do Tietê
com apenas cinco passageiros. Dormi bastante e até sonhei. O dia clareou em
Goiás, iluminando a paisagem plana do cerrado entre muitas cercas e poucas
plantações.
Após as serras da divisa entre Goiás e Bahia, surgiu a
imensa planície, tomada pelas monoculturas de soja e milho. Além da presença
dos nomes de testas-de-ferro brasileiros, o cenário era ocupado pelas
transnacionais Cargill, John Deere, Monsanto, entre outras. Pistas de pouso,
hangares, aviões voando baixo e borrifando agrotóxicos cujas marcas apareciam
em grandes cartazes ao lado dos produtos transgênicos como o milho Roundup, a
soja Monsoy e demais venenos. Foram quilômetros e quilômetros de paisagem
ostensiva e desoladora. Lojas das transnacionais, agências bancárias, cartazes,
indicavam financiamento federal e estadual para aqueles empreendimentos. E dezenas
de áreas loteadas com corretores de imóveis sentados à espera de compradores.
Tudo parecia feito às pressas, sem qualquer preocupação social. E o município
teve o nome original alterado para Luís Eduardo Magalhães, o filho de Antonio
Carlos Magalhães. Não era à toa que esse nome figurava ao lado de
transnacionais, transgênicos, agrotóxicos, dinheiro público para o capital
estrangeiro.
Na Bahia muitos nomes foram alterados após a morte do dito
cujo. O pai, ao lado dos capitalistas beneficiados, desprezou o nome original
de terminais rodoviários, escolas, hospitais, centros esportivos, ruas,
avenidas, praças, aeroportos e até cidade. E o novo nome imposto era sempre o
mesmo. Enquanto isso, as estradas baianas figuravam entre as piores do Brasil e
a população entre as mais miseráveis.
Pouco antes de Barreiras, o relevo do cerrado acentuou-se
cortado por rios com corredeiras. A população refrescava-se nas águas naquele
domingo ensolarado. Depois, até a divisa do Piauí, a rodovia transformou-se em
calamidade. Nada de pavimentação, somente terra, areia, buracos, mato com
espinhos invadindo o caminho e entrando pelas janelas do ônibus. A situação
melhorou bastante após a entrada no Piauí.
Depois de passar por Corrente e Gilbués, o ônibus embicou
na estação rodoviária de Floriano no início da manhã.
Na margem do rio Parnaíba, construções antigas, bares e
restaurantes, inclusive flutuantes. Muitas lavadeiras e moradores, em busca de
sombra e brisa, naquele final de tarde. Na outra margem do rio, já no Maranhão,
se erguia a cidadezinha de Barão de Grajaú. A estação chuvosa deixava alto o
nível das águas do rio. Devido a grandes enchentes recentemente, carros de som
circulavam pedindo ajuda aos desabrigados.
O ônibus da empresa Transbrasiliana apresentava problemas
mecânicos, nos freios, na estabilidade, nas janelas que não abriam, abafando o
interior do veículo. Atravessou o rio Parnaíba, saiu do Piauí e entrou no
Maranhão.
O relevo se acidentava ligeiramente com pequenas serras,
extensas planícies, vales alongados. O cerrado predominava entre buritizais,
babaçuais, carnaubais. As recentes chuvas esverdearam a vegetação. Os vilarejos
miseráveis, com casas de barro e cobertas de palha, raras as de alvenaria e
telhas, pareciam aldeias primitivas, em contato brusco com a rodovia. Nada além
de depósitos de gente sobrevivendo muito abaixo das mínimas condições humanas.
Entre São João dos Patos e Balsas, a monocultura da soja ocupava imensas áreas,
com a presença de imigrantes do sul do país.
Muitos passageiros viajavam de pé, reclamavam dos preços
abusivos, dos serviços ruins da Transbrasiliana. Os rostos se renovavam
seguidamente pelos que subiam e desciam, carregando muita bagagem e
mercadorias.
Em Carolina me hospedei em pousada na qual seria o único
hóspede por aqueles dias. A cidade era graciosa, sem construções de mais de
dois andares, para a sorte dos moradores. Apesar de antiga, contava com traçado
urbanístico arrojado, ruas e calçadas largas, canteiros centrais arborizados
com bancos para relaxar, amplas praças com bares, lanchonetes, diversas mesas
ao ar livre. A população aproveitava e bem os espaços públicos. Deixavam as
casas, colocavam cadeiras nas calçadas e conversavam com os vizinhos pela noite
adentro. A bicicleta era muito usada, especialmente pelas crianças e jovens.
O rio Tocantins, que margeia cidade e divide o Maranhão do
Tocantins, estava bem alto.
De carona em ônibus de longo percurso, a rodovia cruzou a
região da Chapada das Mesas. Morros chapados apareceram em ambos os lados,
esculpidos pela natureza em formatos e tamanhos peculiares. Desci na entrada do
caminho de terra.
A trilha à cachoeira da Pedra Caída, somente com guias e,
em área particular, pagando ingressos. Caminhada pelas águas do estreito leito
do riacho através da garganta formada de altos paredões de rocha, parcialmente
cobertos de samambaias, sempre acompanhados de pequenos fios de água que
respingavam de todos os lados. A garganta tornou-se ainda mais estreita. A água
ficou pela cintura. Finalmente atingimos o salão arredondado e escuro, com
pequena abertura acima da qual vinha a queda d’água, de fora para dentro.
Novamente carona, de volta a Carolina.
A balsa cruzou o rio Tocantins até a cidadezinha de
Filadélfia, já no estado do Tocantins. Apenas bares, pessoas mal encaradas, a
longa rua que se transformava em estrada mais adiante. Matei minha sede e
voltei ao Maranhão.
A cidade acordava e se alegrava à noite. As ruas e
calçadas ficavam repletas. O colírio ficava por conta das atraentes caboclinhas
desfilando levemente nas bicicletas, para lá e para cá. Comi sob as árvores da
praça principal de Carolina, em meio à agitação noturna da cidade e ao visual
dos caminhantes e ciclistas. Fora os televisores ligados, matracando dos
quiosques qualquer lixo para as pessoas se desinformarem, o que mais estragava
aquele ambiente bucólico eram os carros que estacionavam, abriam os
porta-malas, recheados de potentes caixas de som, e vomitavam os últimos
sucessos no máximo volume.
De ônibus às duas cachoeiras do rio Itapecuru. Ficavam
quase lado a lado e, no grande lago formado, cabia um banho refrescante. No local
muito desfigurado, com estacionamento, pousada, bar, restaurante com mesas
fixas na beira da água, valeu a saborosa galinha ao molho pardo.
O adolescente que vigiava a pousada à noite mudara com a
família para Carolina devido à violência, assaltos e assassinatos da cidade
natal, Araguaína, no Tocantins. E afirmou que a situação se agravou após a
criação do estado do Tocantins em 1989.
Havia opção de ônibus para São Luis, mais barata e mais
rápida, porém exposta aos assaltos nas estradas, sobretudo entre Imperatriz e
Açailândia. O funcionário da empresa garantiu que dois carros com homens
armados escoltariam o ônibus, na frente e atrás. E que, na semana anterior,
numa tentativa de assalto ao ônibus, o segurança armado foi obrigado a atirar.
Mas me tranquilizou:
“tudo bem, o tiro só pegou na cabeça de um e os outros
fugiram...”.
Comprei passagem na bilheteria da empresa ao lado que passaria
por rodovias menos trafegadas. E sem assaltos.
Três técnicos da Fundação Nacional de Saúde partiam ao Rio
de Janeiro para combater a epidemia de dengue junto à grande força tarefa que
envolvia, além do Maranhão, mais cinco estados. Segundo os técnicos, a situação
era muito pior do que o divulgado, pois as autoridades fluminenses temiam
prejuízos ao turismo durante o carnaval carioca. E o “miserável” nordeste compunha
os mutirões de auxílio ao estado do “rico” sudeste do Brasil.
Houve troca de ônibus em Balsas. Anoiteceu. A temperatura
interna do supérfluo ar condicionado, digna de frigoríficos, e as televisões
internas, vomitando os lixos estadunidenses de sempre, incomodaram.
O ônibus entrou no terminal rodoviário da capital
maranhense no meio da manhã.
O centro histórico de São Luís, no bairro de Praia Grande,
encontrava-se bastante heterogêneo na conservação. A melhor parte, nos
arredores do chamado projeto Reviver, exibia casarões restaurados, bares e
restaurantes, cineclube, praça de eventos culturais, lojas com produtos
regionais. Perto, no entanto, imensos sobrados caíam aos pedaços, em
verdadeiras ruínas. Em alguns havia a placa de interditado, outros em processo
de restauração, os demais abandonados ou ocupados por miseráveis sem teto. Mas
sentia enorme prazer em caminhar por aquelas ruas seculares, ladeiras, becos,
escadarias, tendo o mar da baía de São Marcos sempre ao lado. À noite, a
iluminação amarelada deixava tudo ainda mais charmoso.
No sábado anterior ao carnaval, as ruas da Praia Grande
estavam tomadas por blocos, gritarias, talco, farinha e espuma líquida. A
maioria caía na dança. Cantavam, se embebedavam, balançavam o esqueleto,
espontaneamente, sem brigas ou confusões.
Aproveitei o dia na distante praia de Araçagi, ainda limpa
e preservada. O ônibus percorreu vinte quilômetros de grandes avenidas por
dentro da ilha. Bairros miseráveis, ausência de saneamento básico, abandono,
carnes à venda penduradas ao sol e às moscas. Desci e caminhei por estrada de
terra entre manguezais e milhares de mutucas que atacavam sem piedade. Bastava
se afastar dezenas de metros da zona dos bares, onde a maioria se concentrava,
e Araçagi virava praia deserta. Comprida e com mar bravo, escandalizava pela
livre circulação de veículos pela areia. No trecho mais deserto, cresciam as
dunas, frente a vilarejos de pescadores, manguezais ricos em caranguejos.
O ponto forte da cidade, porém, era mesmo o centro
histórico, a marcante cultura, os discretos e simpáticos moradores. O projeto
Reviver na Praia Grande apresentava bom movimento à noite. Bebi caipirinha numa
das mesas ao ar livre. Na mesa mais adiante, sob outra árvore, uma cafuza de
beleza exótica.
continua...
Belo relato! Acompanhei a sua viagem e curti o leve suspense que por vezes se anuncia (a viagem mais direta e mais barata, sujeita a assaltos...). Mas o que mais atrai a atençao é a enorme diversidade, a beleza de certas (poucas) zonas preservadas, o barulho nos bares e praias, a falta de delicadeza com sitios naturais... Deve ter sido fascinante o passeio até à Pedra Caida. Parabéns pela reportagem.
ResponderExcluirOi Regina!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Viajar por conta própria é assim. E prefiro me surpreender à ter tudo pré-determinado. Sempre vale a pena. Recomendo!
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