Em junho providenciei apenas a passagem aérea de ida e
volta ao Equador. Fiquei no hotel em Quito junto com outros brasileiros a
trabalho que encontrei no avião. O estabelecimento contava com instalações
razoáveis, porém muito afastado do centro da cidade e do movimento. Tive que
mudar logo dali.
O principal da vida noturna, bares, restaurantes
concentrava-se na avenida Amazonas e transversais, o centro novo de Quito. As
mulheres, excessivamente pintadas e produzidas, exibiam simpatia e paqueravam
abertamente. Permaneci por ali com o colega potiguar até perto da meia noite.
Comemos, bebemos, conversamos, observamos o vaivém das equatorianas. Ritmos
caribenhos e colombianos predominavam nos sons dos bares e danceterias.
De manhã visitei o agitado mercado de Ipiales no centro
histórico. Entrei na igreja de São Francisco, repleta de ouro pelos interiores.
Passei pela catedral, palácio do governo. As construções apresentavam bom
estado de conservação. Com muita área livre para o lazer e exposição de
artesanato, o parque Ejido reservava frequência de povo simples,
invariavelmente de feições indígenas. Jogavam bola, caminhavam, relaxavam,
passeavam de bicicleta. A colina da cidade reservava visão panorâmica dos
arredores ao sul de Quito e também dos vulcões, parcialmente cobertos pelas
nuvens.
A maioria dos preços em museus, parques nacionais, hotéis,
eram mais baixos para equatorianos do que para estrangeiros. Muito justo. Ruas
e calçadas dos bairros centrais ofereciam barracas de comida, com frituras,
carne de porco, frango, espetinhos. A atmosfera geral exalava calma e tranquilidade,
parecendo haver menos neurose e mais respeito entre as pessoas. O clima muito
seco de Quito, a 2.850 metros de altitude, exigia lubrificação constante dos
lábios e pele em geral. Eu adorava me sentar nas calçadas dos restaurantes da
avenida Amazonas e apreciar o vaivém dos moradores durante o horário comercial.
Saí às ruas para organizar minha expedição pelos
interiores do país. Pretendia me concentrar nos altiplanos, focar a exploração
nos vulcões e cultura indígena. A agência cobrava diárias salgadas, somente
pelo veículo, combustível, o motorista que acumularia as funções de guia.
Rascunhamos um roteiro sem nos ater a detalhes, já que a quilometragem e
eventuais modificações de roteiro seriam livres, sem custos adicionais.
Parti eu e o guia no veículo quatro por quatro para o
primeiro dia da viagem, via Caldeiron, local de artesanato de pão, lago San
Pablo, vulcões Imbaburra e Cayambe. Paramos ainda sobre a linha imaginária do
equador, onde se encontravam jardins, monumento e, claro, a faixa no chão. Os
indígenas em Otavalo vestiam calças brancas, ponchos azuis, tranças compridas
atrás dos chapéus. Eram urbanizados, organizados, donos das próprias terras e
com viagens ao exterior para divulgação da cultura. Em uma das casas teciam
tapetes, blusas, bolsas. Assistimos ao artesanato em madeira em San Antonio de
Ibarra, os trabalhos em couro em Cotacaxi. Subimos à lagoa Cuicocha, a 3.200
metros de altitude.
Segundo o guia, que recebia o equivalente a cento e
cinqüenta dólares por mês, o desemprego no Equador beirava 30%. Ao contrário do
Brasil, cujos eleitores votavam nos candidatos, o sistema eleitoral equatoriano
se baseava em listas partidárias.
Visitamos as ruínas de Cochasqui, onde povos viveram e
pereceram muito antes dos Incas. Não se via quase nada ao ar livre, apenas
representações e maquetes em museu. A altitude de 3.100 metros proporcionava
privilegiada vista dos vulcões e picos nevados da cordilheira dos Andes.
Pegamos o sentindo sul da rodovia panamericana, depois
estrada de terra, cruzando a reserva Posochoa. Ao longo de estrada estreita,
arenosa, sinuosa, cheia de precipícios assustadores, a região se marcava por
plantações de trigo nas encostas das montanhas. O cenário remetia a tapetes
coloridos e estendidos nas inclinações. Magnífico. Em Zumbahua havia festa
extremamente colorida pelas roupas e ponchos dos habitantes. Embriagados, com
garrafas de bebidas nas mãos, perambulavam para lá e para cá. Nunca os encarava
ou lhes apontava a câmera fotográfica. A maioria se reunia em cercado
arredondado com arquibancadas de madeira, no centro do qual aconteciam danças,
corridas com animais, discursos, cantorias. Nada de espanhol, apenas quéchua, a
língua oficial dos moradores.
A paisagem rústica ao redor do vilarejo encantava pelas
montanhas recortadas por plantações. Atingimos a lagoa Quilotoa, a 3.800 metros
de altitude, antiga e profunda cratera vulcânica, agora preenchida por água
verde leitosa. A aridez da paisagem, o ocre das rochas e areia, as escarpas
internas da cratera, o colorido das águas, compunham cenário ímpar. Nas
proximidades dos imensos paredões que desciam para a lagoa, os indígenas
abordaram a fim de vender quadros pintados sobre pele de carneiro. O frio e o
vento cortante castigavam. Ainda troquei frases com eles antes de me refugiar
no carro.
Voltamos a Zumbahua, circulamos pelos becos e imediações
da festa. Naturalmente esquivos a fotos, os indígenas viravam os rostos, se
cobriam, xingavam, lançavam olhares de desaprovação. Os homens se embebedavam,
despencavam no chão e as resignadas esposas tinham que arrastá-los para longe.
Touros bravos interditaram a estrada na volta. Moradores a
cavalo tentavam controlá-los em operação que demorou um bocado. Indígenas eram
transportados como gado em caminhões apinhados e sem condições mínimas de
segurança. Assistimos a colorido pôr-do-sol nas infindáveis curvas da estrada.
Anoiteceu com neblina fechada e não se viu mais nada. Os precipícios nos
espreitavam bem de perto. Hospedagem tarde em Latacunga.
Em grande parte construída a partir de lava vulcânica, a
pequena Latacunga conquistava pela calma, simpatia e beleza do casario
colonial, onde praças e becos se harmonizavam com a arquitetura. A cidade fora
destruída várias vezes devido a violentas erupções do vulcão Cotopaxi.
Fomos ao multicolorido mercado ao ar livre de Saquisili,
autêntico ponto de compra, venda e troca entre indígenas. As negociações entre
eles se faziam invariavelmente em quéchua. A ausência quase total de bugigangas
turísticas servia de alívio para quem se interessa pela cultura não
desfigurada. Um guarda surgiu do nada a fim de me subornar, alegando que eu
deveria lhe pagar antes de fotografar. Nem dei bola e continuei a caminhar. O
sujeito apenas continuou me observando com cara de autoridade.
Rumamos ao parque nacional Cotopaxi para subir o vulcão de
mesmo nome. Na recepção, ente fotos e dados históricos, painéis explicativos
orientavam como se comportar em caso de erupções do vulcão Cotopaxi, ainda
ativo e com quase 6 mil metros de altitude. Desenhos mostravam por onde
passariam os rios de lava, os locais seguros onde a população deveria se
concentrar ou aqueles a evitar. Maquetes e fotografias descreviam e explicavam
a origem e comportamento do vulcão.
Subimos pela estrada sobre terreno vulcânico e escuro.
Avistamos a lagoa Limoncocha, a 3.673 metros de altitude, nos pés do vulcão
Rumiñahui. Ao atravessar a barreira dos 4 mil metros de altitude, começou a
nevar e ventar forte sobre a encosta já coberta parcialmente de neve. Passamos
por refúgio abandonado com as paredes pichadas. A estrada encerrava aos 4.600
metros de altitude. Acima dali somente por trilha até o último refúgio do
Cotopaxi, a cerca de 5 mil metros de altitude. Esperamos o tempo melhorar para
podermos subir a pé. Somente musgos minúsculos e esparsos entre as rochas
escuras ou acastanhadas. O tempo piorava, a neve e o vento derrubavam a
temperatura para abaixo de zero. Desistimos de avançar a pé e retornamos a
Latacunga.
Continuamos na rodovia panamericana, sem parar em Ambato,
cidade de peso industrial e econômico, Salasaca, Pelileo, destruída mais de uma
vez por terremotos, obrigando os moradores a reconstruí-la em outro sítio.
Chegamos em Baños após sair da estrada principal e descer
serra impressionante, aos pés dos vulcões. A perda de altitude trouxe vegetação
exuberante, quedas d’água, mais abismos, aumento de temperatura. Optamos por
hotel de frente para a praça da matriz. Depois do jantar, joguei sinuca com o
guia, por horas, entre goles de pisco, conversas soltas sobre o Equador e o
Brasil, a vida, sonhos, gostos.
De Baños se tinha visão do vulcão Tungurahua, cujo cone
parcialmente nevado se elevava acima das construções urbanas e cuja atividade
destruíra partes da cidade mais de uma vez. Assim como na capital, o governo em
Baños estreitava as ruas para aumentar as calçadas. Perto da praça central
havia rua que só passava um carro por vez. Parabéns pelo urbanismo mais bonito,
simpático e humano. Desfilando corpos esguios e insinuantes, as mulheres de
Baños ganhavam em beleza e sensualidade das colegas de Quito.
Saímos de Baños serra abaixo por estrada de terra
revestida de cascalhos até Rio Verde, a 1.500 metros de altitude. A paisagem
reservava abismos, verde exuberante, escarpas abruptas. Quedas d’água e
cachoeiras de dimensões diferentes se alternavam pelo caminho, entre elas
Pailon del Diablo, Manto de Noiva, Agoyan, algumas cruzando a estrada e
enxaguando o carro. Deslizamentos de terra aumentavam à medida que descíamos.
Em Encañonada San Martin erguia-se ponte extremamente
alta, apavorante. Passamos pelo pequeno
zoológico de San Martin, somente com animais regionais, cuja disposição nos
paredões rochosos envolvia pela magia. Em longa conversa, o criador mostrou-se,
pelo menos nas palavras e intenções, verdadeiro ecologista.
Chegamos a Riobamba e pouco se via do vulcão Chimborazo,
mais adiante, praticamente coberto pelas nuvens. Compramos frango e bebidas
antes de nos dirigirmos à face oposta do vulcão extinto. À medida que nos
aproximávamos, o céu limpava, o sol aparecia radiante, o vulcão se elevava sem
nuvens, maravilhosamente. Atingimos o primeiro refúgio, a 4.800 metros de
altitude, após cruzar com dezenas de indígenas que retornavam de banho nas
águas geladas de lagoa próxima.
Peguei a trilha. Finas camadas de neve se espalhavam pelo
caminho. A subida tornou-se pesada pelo ar rarefeito e pelas irregularidades do
terreno. A imagem deslumbrava e impressionava pelo contraste entre o negro da
rocha, o branco da neve e o azul do céu. Ventava pouco, fazia muito frio e o
brilho da luz do sol castigava os olhos. Um lobo circulando impunemente deu o
ar da graça. Inúmeras placas rochosas no chão traziam talhados nomes de
escaladores e a data das conquistas. Acelerei o passo e alcancei o refúgio Whimper,
a 5 mil metros de altitude. Escaladores europeus acabavam de voltar do cume,
contentes com o sucesso da empreitada. As imagens do cone arredondado, acima,
coberto de neve, eram de tirar o fôlego. Troquei ideias com o equatoriano
responsável pela administração do refúgio sobre o vulcão, escaladas, altitude,
clima. E soube que as placas rochosas com nomes que notara na trilha da subida
não homenageavam conquistas e sim reverenciavam escaladores que morreram
durante tentativas frustradas de conquistar o Chimborazo. As datas não se
referiam aos sucessos, mas aos respectivos óbitos. Os acidentes se
concentravam, sobretudo, em novembro e dezembro, meses mais frios, nublados,
passíveis de avalanches. Na temporada do ano anterior tinham morrido dez
escaladores.
Esperei pelo pôr-do-sol com direito a camadas espessas de
nuvens bem mais abaixo que lembravam o mar. Gradação de cores que iam do
amarelo, laranja, vermelho, roxo ao azul não me permitiam nem piscar os olhos.
Demais!
Riobamba era plana, sem edifícios altos. As ruas centrais
incluíam construções barrocas, nem sempre bem conservadas. Em pontos distantes
do centro, embora com construções interessantes, os casarões coloniais não
apareciam mais. O terremoto de 1942 destruiu muita coisa. A basílica oferecia apenas
a frente original e, por dentro, revelava-se moderna, sem adornos.
A festa de primeira comunhão, à noite no salão do hotel,
trouxe homens de terno e gravata, mulheres exageradamente produzidas. A neta da
proprietária era a atração principal. A barulheira não cessou antes das 3h da
madrugada e não deixou ninguém dormir. Mas eu e o guia não fomos convidados.
O mercado de animais de Riobamba era organizado e separado
por cavalos, burros, vacas, touros, porcos, ovelhas. Intensamente colorido e
vibrante. Indígenas de diversos tipos físicos falavam principalmente em
quéchua. Valia à pena assistir às negociações, barganhas, pechinchas. Até
poderiam parecer discussões violentas, mas ambos os lados sorriam ao fecharem
negócio. E as risadas altas indicavam que, além dos negócios, a diversão não
podia faltar. Várias barracas de comida preparada na hora garantiam boa
alimentação a todos. Os moradores dali e de Baños tinham pronúncias diferentes
do espanhol. Falavam quase gaguejando ou quase prestes a tossir. A feira livre
era similar às brasileiras, porém sem quaisquer regras ou orientações. Livre
mesmo.
Visitamos Guano, vilarejo próximo, também parcialmente
destruído em 1942, centro de produção de tapetes. Do morro acima do vilarejo,
com esculturas Incas, via-se o cume do vulcão Tungurahua e parte do vulcão
Altar.
continua...
Foi maravilhosa a leitura “Do Nepal ao Vietnã”! Linhas tão bem escritas por você Viajante... Muito proveitosa e agradável. Pude conhecer um pouco sobre a cultura e história daqueles povos. Assim como a alimentação, religião, costumes e tudo mais.
ResponderExcluirLeitura de grande valor.
Até mesmo quando vc descreve sobre a maneira de vestir , eu fico admirada com tanta riqueza de detalhes e cores que você observa, e, descreve em seus relatos.
“Mulheres vestiam ao dai, roupa formal vietnamita, composta de calça branca e larga de algodão, mais túnica comprida de mesmas características. Complementavam com luvas finas e compridas, sapatos de salto alto, chapéus estilizados com fitas. Pareciam bonequinhas, pedalando bicicletas com elegância e delicadeza nas ruas e estradas.”
Apesar de muitos panos, me parece, leve...
Notei que as vezes você é bem critico . Isso dá ao texto um toque essencialidade.
Na “Parte dois” deste relato, você conta dos maus tratos com os animais para “agilizá-los”. Isso pra mim é inaceitável e eu não poderia deixar de dizer.
Ao longo de todo o texto Eu dei muitas risadas, me emocionei, tive curiosidades e refleti bastante . Principalmente sobre comportamentos.
Obrigado por dividir toda essa bagagem que vc trouxe de volta.
A coragem e a perseverança estiveram contigo todo o tempo. Mas a luz que brilhava em seus olhos com certeza vinha da sensibilidade de sua alma viajante.
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.
Fernando Pessoa
Oi Lorena, grato pelos comentários.
ResponderExcluirVocê ressaltou as principais características dos meus relatos, que, modéstia à parte, se diferenciam, e para melhor, da média dos demais relatos que li pela blogosfera ou mesmo em livros.
Em vez de me contentar em descrever as atrações e dar dicas de passeios, coloquei meu olhar acima de tudo. Priorizei o que vi e senti, procurando, dentro do possível, passar as impressões para o papel. Na maioria dos relatos publicados neste blog acho que consegui, pelo menos parcialmente.
Não me acanho em alternar elogios rasgados com críticas ferozes, refletindo minhas subjetividades diante das sensações experimentadas em cada trecho das viagens.
Relatos de viagem, esse gênero literário bem utilizado por diversos escritores da literatura universal, devem ser isso mesmo.
Comente sempre...
Abraços!
Desculpe-me por ter postado sobre sua viagem ao Nepal aqui. Foi um descuido. Não sei como aconteceu. E sim! Seus relatos são excepcionais! Justamente por isso. Seu olhar ! Acima de tudo. É a consciência de que é preciso olhar a realidade presente. E digo ainda que agindo assim, você permite que cada um dos seus leitores exponha também seu modo de pensar naturalmente.
ResponderExcluirObrigada.
Está desculpadíssima, Lorena.
ResponderExcluirE, mais uma vez, obrigado pelos elogios e críticas. Seus comentários nunca podem faltar.
Abraços e comente sempre!
Simplesmente fantásticos esses relatos. Viajei em cada detalhe. Parabéns !!!
ResponderExcluirOi Laura!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelos comentários.
Foi uma viagem emocionante, pela paisagem andina e pelo povo equatoriano. É pra repetir!
Coemnte sempre!