quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 6/7)

...continuação
O vale do rio Ziz, justamente o único indício de umidade nas redondezas, nos acompanhou contando com volume de água considerável para a aridez. Os vilarejos, esparsos e pequenos, se alinhavam no fundo do vale. Nas várzeas, tamareiras e árvores frutíferas abundavam em ambas as margens. O vale se tornava mais profundo entre escarpas íngremes e rochosas cujas estratificações exibiam desenhos inusitados.
Cruzamos a cidade de Errachidia, ocupada por militares e as respectivas famílias. A proximidade da fronteira da Argélia, com quem o reino do Marrocos não mantinha boas relações, servia como pretexto ideal para gastar mais dinheiro público em armas, segurança, fortificações.
Bem mais à frente, nos arredores da cidade de Arfoud (Erfoud), a rodovia percorreu planícies desérticas, arenosas. Dromedários pastavam à procura do pouco verde da vegetação arbustiva ou rasteira, vestígios do inverno úmido.
Na cidadezinha de Rissani a atração seria o mausoléu do fundador da dinastia que tem dominado o reino do Marrocos de pai para filho. Visita burocrática, previsível e sem graça. Não me incomodei. A maior e melhor atração ficaram por conta dos flagrantes do cotidiano em dia normal de estudos e trabalho. Pedestres em circulação ou em busca de transporte coletivo, estudantes uniformizadas à moda árabe ou berbere a caminho da escola, mulheres cobertas de tecidos negros da cabeça aos pés, homens de túnicas, moradias berberes da coloração ocre, o vaivém nos cruzamentos nervosos. A vida comum de pessoas comuns valia mais do que atrações oficiais da monarquia.
De volta à estrada, a paisagem desértica, com dunas distantes, solo terroso ou pedregoso próximo da rodovia. As moradias retangulares ou no estilo kasbah, ambas sem telhado e de barro marrom, davam espetáculo ao lado das mulheres inteirinhas de preto, roupas, véus e mantos, dos homens de túnicas claras e turbantes na cabeça. Antigas cisternas para água da chuva apareciam nas margens das estradas, em trechos mais arenosos.
Entrando ao longo do vale do rio Todra, a estrada subiu constantemente, descortinando vilarejos cujas construções retangulares ou no formato de fortificações possuíam o mesmo material das escarpas rochosas. As tamareiras dos oásis nas margens do rio, apontando para a única fonte de água em quilômetros, atraíram antigos povos nômades a se fixarem e a cultivarem a terra ao lado de pastagem de cabras e ovelhas. Bem acima do vale, cada vez mais estreito, surgiu a garganta de Todra, onde as escarpas íngremes se aproximavam mais, espremendo as águas do rio, ali de pouca vazão, correndo em leito raso e pedregoso.
O motorista me largou no centro da cidade de Tinerhir (Tineghir). Optei por bar e restaurante simples, ocupado por bebedores de café e leitores de jornal. Não havia cardápio. Perguntei o que tinha de comida e escolhi tajine de cordeiro e legumes. O que parecia ser o mandachuva do estabelecimento me arranjou mesa na sombra, de frente para a rua. E detonei um litro e meio de água, a fim de matar a sede e repor os líquidos em mais um dia extremamente seco e beirando os 40 graus. A primavera corria ainda pela metade.
Depois do vale do Todra, as mulheres usavam mantos e véus de cores claras, às vezes estampadas de flores ou com o símbolo berbere bordado nos tecidos. Os homens sempre de cores claras, nas túnicas e turbantes, pelo menos aqueles vestidos ao estilo árabe ou berbere.
O horizonte do deserto rochoso contava com as montanhas do Alto Atlas cujas cristas e altos das encostas se cobriam de neve. E mais casas de barro, mais kasbahs, novos e antigos, inteiros e em uso ou em ruínas e abandonados. Mais oásis de tamareiras apareciam nos cursos d’água. Nas proximidades da cidade de Kelaat-M’Gouna, começava o cultivo de rosas, ao longo do vale do Dades. A flor trazida da Síria nos retornos das antigas peregrinações a pé para Meca era comercializada nas ruas e festivais culturais especialmente montados.
As escolas e órgãos da administração pública dali exibiam os nomes em árabe e em berbere, língua que o governo federal pretendia oficializar como a segunda do Marrocos, tanto falada como escrita, e cujas letras lembravam as do alfabeto grego.
O trânsito das estradas não chegava a ser pesado. Os motoristas agiam com gentileza, sem agressividades de selvagens das metrópoles ocidentais, em convivência pacífica de seres humanos. Pedintes brotavam nos pontos turísticos, nos de vista panorâmica. Os insistentes vendedores de artesanato, de velharias, dos fósseis muito comuns na região, tentavam reduzir os estoques de qualquer maneira. Lixo se concentrava nos terrenos baldios, nos leitos secos dos rios temporários. Simpáticos e solícitos, os marroquinos arriscavam qualquer língua para vender ou simplesmente se comunicar.
Na sombra o calor era agradável, a despeito da baixíssima umidade relativa do ar. Sob o sol, no entanto, a situação se tornava dramática, às vezes parecendo que não daria para suportar. As vias respiratórias secavam e se entupiam de secreções. A garganta empapava. O consumo de água virava exigência de sobrevivência. Mas eu não esperaria nada diferente em pleno deserto do Marrocos.
Chegada em Ouarzazate, cidade também de maioria berbere, antes do anoitecer.
Um senhor idoso, com somente um dente no maxilar superior, mas fluente em cinco línguas, nos guiou pelos interiores do kasbah Taourirt. Nos deu explicações sobre a construção e o uso pelos últimos moradores, a família do paxá polígamo, nos diferentes cômodos, utensílios domésticos, vestimentas, rotinas entre as refeições, sistemas de ventilação natural, janelas para as esposas verem o lado de fora sem serem vistas.
Dois casais de japoneses circulavam calados pelos interiores do kasbah. Ao passarem, sorriram, se curvaram, balançaram a cabeça naquele jeito oriental. Nada falaram e também não abri a boca. Ao iniciarem a descida pela escada interna, estreita e em curva, uma delas disse ao companheiro “Ô Sérrrrrgio, cuidado c’o degrau”, puxando o “r” caipira. Processei a situação de maneira tão lenta que os quatro já tinham desaparecido antes que eu pudesse chamá-los. Contei a história ao motorista, que riu e emendou com outra. Tempos atrás ele estava no saguão do aeroporto de Casablanca aguardando dez brasileiros. Segurava alto o cartão com o nome do grupo. Do meio de alguns japoneses que se aproximaram, uma senhora se adiantou dizendo que eram eles. O motorista pediu desculpas, afirmando que ela se enganara, pois esperava um grupo de brasileiros. Ela insistiu. Ele também insistiu que aguardava turistas brasileiros e não japoneses, solicitando para ela se afastar de modo que outros passageiros desembarcados pudessem ver a placa. Pacientemente ela garantiu que ela própria e os outros nove passageiros eram os brasileiros que ele tanto esperava no aeroporto, mostrando os nomes nos respectivos passaportes. Ainda desconfiado, ele aceitou a situação e os levou ao traslado. No caminho ao hotel, todo encabulado e não sem espanto, acabou aprendendo com os dez turistas brasileiros recém-chegados que o Brasil abrigava o maior número de japoneses depois do Japão.
 A cidade de Ouarzazate respirava cinema. Havia faculdade de cinema. Havia inúmeros estúdios cinematográficos ligados direta ou indiretamente à famigerada indústria de entretenimento estadunidense. Filmes épicos, futuristas ou modernos foram rodados nas imediações. Nas rotatórias das avenidas principais da cidade lá estavam monumentos representando a claquete, a filmadora, etc. Pelo que entendi, porém, o cinema ali produzido praticamente se restringia a ceder cenários naturais ou artificiais, além de figurantes, aos oligopólios estadunidenses. O cinema marroquino de verdade, com equipe artística e técnica nacional, escrito, interpretado, dirigido, montado e distribuído por marroquinos, não passava de exceção.
A cordilheira do Alto Atlas despontava imponente no horizonte, se erguendo acima das planícies desérticas do sudeste do Marrocos. A neve concentrada nas cristas e encostas mais altas duraria no máximo mais duas semanas devido ao calor tórrido da segunda metade da primavera, retornando a cobri-las somente a partir do inverno seguinte.
A perua pegou acesso a outro kasbah também usado como cenários eventuais de filmes épicos ou históricos. Mas era o maior e o mais famoso deles.
Ait Benhaddou, a milenar construção desabitada, virou procurada atração turística, entupida de lojinhas vendendo produtos típicos da região, outros nem tanto. Valeu pelo gigantismo, pela beleza, pela personalidade arquitetônica, erguida em taipa, constituída de patamares colina acima, com torres de base quadrada, tudo monocromático, cor de barro, marrom escuro.
Enquanto dava voltas despretensiosas pelo vilarejo na margem oposta do riacho que margeia o kasbah, um berbere idoso insistiu para que eu conhecesse a lojinha. Em meio à penumbra do interior do estabelecimento, me mostrou antiguidades, autênticas ou não, que guardava em baús velhos e empoeirados. Colares, pulseiras, brincos, broches, adagas, talismãs, de aparência envelhecida, carentes de polimento e carinho, mas de preços novíssimos e salgados. Dotado do tino e sangue de mercador milenar, me convidou a negociar, a barganhar, a pechinchar, a regatear. Eu não tinha a mínima intenção de comprar nada. Ele baixava levemente o preço. Eu, nada, repetindo que não queria. O senhor não desanimava e insistiu para que eu desse o meu preço. Quanto você acha que vale essa peça? Vamos lá, diga seu preço! Eu participava de negociação que vinha dos tempos dos caravançarais, das antigas rotas comerciais entre o ocidente e o oriente. Ele insistia. Eu tirava o corpo. Por fim, sem qualquer contraproposta recebida, se cansou. Me sorriu desdenhosamente e se despediu, retornando à companhia do colega sob a sombra do lado de fora.
E pé na estrada cortando o deserto terroso ou rochoso, entremeado de oásis ocasionais, repletos das onipresentes tamareiras, com vilarejos de casas de adobe marrom escuro. Colinas, serrotes, vales, planícies, se alternavam, à medida que a Cordilheira do Alto Atlas se aproximava. Rebanhos de dromedários e ovelhas surgiam espaçadamente.
Homens dos vilarejos vestiam túnicas brancas, limpíssimas, impecáveis, para a segunda oração islâmica da sexta-feira, justamente a oração mais importante do dia mais importante da semana para os religiosos muçulmanos. Adultos e crianças praticantes se preparavam para rezar e ouvir a pregação dos imãs, especialmente enviados às mesquitas dos vilarejos.
Ambulantes ofereciam falsos geodos na beira das estradas. Um olhar mais apurado denunciava os falsos cristais, as falsas cores, a falsa carapaça que, em vez de rochosa, não passava de massa escura e enrijecida de cerâmica pintada de cinza ou cimentada com areia. Trufas escuras também brotavam nas mãos de meninos nos acostamentos e nas paradas para vistas panorâmicas.
A estrada de trânsito pesado de caminhões começou a serpentear montanha acima. As cristas e picos com restos de neve se aproximavam. O relevo se tornava mais acidentado, mais íngreme, mais dramático. Abismos surgiam na margem da estrada estreita. Vilarejos berberes se erguiam nos vales repletos de tamareiras no fundo dos vales. Terraços cultivados de trigo desenhavam tapetes esverdeados nas encostas monocromáticas.
Subimos mais e mais a rodovia que seria fechada no inverno devido ao excesso de neve. E atingimos o passo Tichka, o ponto mais alto da estrada, porém bem abaixo dos principais picos e cristas da cordilheira ao redor, e muito inferior ao monte Jebel Toubkal, o ponto culminante do norte da África e não muito distante dali.
A partir do passo, o ziguezague da estrada passou à descendente, fornecendo visão impressionante das curvas fechadas em desnível montanha abaixo, me lembrando da Serra do Rio do Rastro em Santa Catarina, visitada no ano anterior. Nas encostas, e mais ainda nas planícies aos pés das montanhas, o verde voltou a aparecer, entre árvores, arbustos, gramíneas, terreno mais fértil. Terraços cultivados em níveis diferentes compunham cenário rico da vida agrícola dos trabalhadores rurais. Os dromedários a leste da cordilheira deram lugar a rebanhos ovinos e bovinos no lado oeste.
Anoitecia em Marrakech quando entrei no hotel construído em zona confinada para o turismo. Naquelas largas e arborizadas avenidas, nada de cidade ou gente comum, apenas imensos hotéis, um ao lado do outro, em ambas as calçadas, alternados de restaurantes voltados para turistas. Assim como na Tunísia, a política de turismo do Marrocos isolava os visitantes em regiões afastadas do centro. As raras exceções nem sequer arranhavam a regra.
No dia seguinte acordei para explorar a famosa e tão cantada em verso e prosa, a cidade de Marrakech, onde foi fundado o reino do Marrocos havia mais de mil anos. A cultuada e badalada Marrakech. Mas, porém, contudo, todavia, a cidade não passou de grande fiasco. Em bom português brasileiro, uma MERDA!
Provavelmente Marrakech fascinaria muitas décadas antes, quando a indústria predatória do turismo ainda não degradara tudo e todos. E fascinaria muitíssimo mais séculos atrás, nos tempos em que ali era um grande caravançarai, ponto de parada e intercâmbio de antigas rotas comerciais e culturais, de leste a oeste, de norte a sul.
Mas nada mais de décadas ou séculos atrás existia em Marrakech. Nenhum fascínio, nenhum charme, nenhuma beleza, nenhum mistério, nenhum exotismo, nenhum atrativo, exceto as montanhas nevadas da cordilheira do Atlas no horizonte.
A Marrakech do século XXI se tornou um deprimente parque de diversões temático, daqueles pontos turísticos onde tudo cheira a falso e desfigurado. As hordas de turistas saíam dos hotéis segregados da zona turística e entupiam a velha cidade murada. Vagueavam pelo labirinto de lojas com produtos falsificados travestidos de antiguidades ou com enxames de itens de fabricação chinesa. Lotavam bares e restaurantes que ofereciam bebidas e comidas insossas. No centro de tudo, a mui famosa praça Djema el-Fna, entupida de ambulantes, mulheres cobertas de véus lendo a sorte dos desavisados, encantadores de cobras cobrando pelas fotos ao som de melodias previsíveis, músicos tristes e cansados que batiam percussão ao se aproximarem os grupos de turistas. Os deslumbrados fotografavam qualquer coisa que aparecesse pela frente, até galinhas presas ou cavalos puxando charretes para inglês ver.
continua...

2 comentários:

  1. Olá Viajante Sustentável, gostei de ler que você também gosta de ver o que ocorre ao seu redor - ". A maior e melhor atração ficaram por conta dos flagrantes do cotidiano em dia normal de estudos e trabalho. Pedestres em circulação ou em busca de transporte coletivo, estudantes uniformizadas à moda árabe ou berbere a caminho da escola, mulheres cobertas de tecidos negros da cabeça aos pés, homens de túnicas, moradias berberes da coloração ocre, o vaivém nos cruzamentos nervosos. A vida comum de pessoas comuns valia mais do que atrações oficiais da monarquia." Gostando de ler, mas parece que Marrakech, fica longe dos atrativos para o turismo. Bom conhecer o mundo, vivenciar culturas diferentes. Obrigada e abraços.

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  2. Oi Ivete!
    Pois é, adoro esses flagrantes do cotidiano, do comum, do trivial. Acho que é aí que encontramos os maiores tesouros da humanidade. Encosto numa esquina e deixo o mundo real se abrir para mim. Que atrações turísticas, que nada rssss.
    Demais!
    Obrigado pelos comentários, sempre!

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