Em utilitário percorri os cerca de trinta quilômetros até
o centro da enorme, moderna, e com favelas explícitas na periferia, Casablanca.
A cidade não tinha cara de nada. Avenidas, rotatórias, cruzamentos
movimentados, prédios altos de ambos os lados das vias. Enxame de redes de
comida de péssima qualidade, todas provenientes daquele regime terrorista ao
norte do México. Raros os cartazes ou propagandas escritos em árabe. Raros os
homens ou mulheres vestidos à maneira tradicional árabe ou muçulmana. Ali
poderia ser qualquer cidade grande do triste e previsível mundo globalizado.
A música ambiente do hotel, gravada no salão do
restaurante ou ao vivo nos bares, oferecia repertório daqueles dos hotéis de
Águas de Lindóia durante a década de 1960.
Acordei para o dia sem grandes emoções em Casablanca. O
mercado central, comum. A gigantesca e moderna mesquita Hassan II, nome do pai
do rei da época, na beira do mar, cuja torre do minarete media duzentos metros
de altura. A desinteressante praça Mohamed V, nome do avô do rei da época,
cortada por linhas de bonde. O bairro Anfa, ocupado pela elite marroquina e
estrangeira em trânsito pela cidade.
Na monarquia do Marrocos choviam atrações ligadas à
família real, dos pais, avós, parentes. Havia mausoléus desse ou daquele membro
da dinastia, palácios, estátuas, bustos, monumentos. Nada que merecesse
admiração entusiasta. Eu preferia dar atenção às cenas do cotidiano do domingo
marroquino. Famílias saíam para passear, em dia quente e ensolarado, nos
parques, monumentos, nas rochas na beira do mar.
Seguimos à avenida
costeira do bairro de Anfa, de frente para o Atlântico. A praia se entupia de
banhistas domingueiros, nas águas, areias, jogando futebol, caminhando no
calçadão. As ofertas de restaurantes variavam, de comida marroquina
ocidentalizada até as repugnantes redes estadunidenses, inclusive a que serve
sanduíche de minhoca, refrigerantes químicos, batatas transgênicas, sorvete de
gordura, açúcar e corante.
Circulei pelo calçadão urbanizado com balneários,
piscinas, vestiários, construídos na areia da praia. Alguns se encontravam desativados
e abandonados, fornecendo atmosfera entristecida a todo o conjunto, calçada,
areia, mar.
Continuamos em autopista rumo à capital do Marrocos, Rabat,
onde, devido a regras locais, nos foi designado guia da própria cidade. E veio o
palácio do rei da época, Mohamed VI, o mausoléu do avô Mohamed V, tendo ao
fundo o minarete da mesquita inacabada do século XII, a kasbah de Oldayas, abrigando residências pelos becos e ruelas. O
guia, que falava de maneira robótica e de má vontade, pediu gorjeta ao final
dos serviços. Não recebeu nenhum centavo.
Ao contrário da Tunísia, as atrações turísticas do
Marrocos, mesmo as pouco atraentes, se enchiam de turistas despejados de
dezenas de ônibus. E o tal pau-de-selfie
era usado intensamente pelos estrangeiros. Quase ninguém queria fotografar
paisagem, arquitetura, cenas culturais e do cotidiano. Os possuidores de tal
artefato desejavam apenas serem fotografados. Os locais visitados, quando
muito, já que na maioria das vezes sequer eram notados, serviam somente de pano
de fundo.
E eu aguardava pelo Marrocos verdadeiro, profundo,
autêntico, árabe. Ansiava por paisagens, arquiteturas, comidas, pessoas,
escritos, costumes, realmente marroquinos.
O bar do hotel de Rabat, entre o restaurante e a recepção,
fedia cigarro em todos os cantos. Parecia que ali todos fumavam, e em todos os
lugares. Passei direto na busca de oxigênio. Enrolei nos sofás do saguão da
entrada. Vazios e tristes. Levantei e fui até a calçada. Ruas escuras e
desertas.
As estradas para além de Rabat cruzavam bosques, parques,
florestas de sobreiros altamente produtivas de cortiça, áreas cultivadas com
trigo, cereais, batatas, uvas, legumes, verduras, desenhando paisagem colorida,
tal tapetes justapostos. As terras eram mais úmidas e férteis naquele
centro-norte do país. Rebanhos de ovelhas e cabras, agora também de bovinos,
surgiam de uma hora para outra. O relevo se acidentava. A rodovia se tornava
sinuosa, indicando a proximidade da cordilheira Atlas, no caso o Médio Atlas.
Em Meknes, visitamos a medina
murada, cujas imensas portas de entrada trabalhadas em madeira, e também rocha
nos arcos superiores e laterais, nos davam as boas vindas. Uma dessas, a Bab
el-Mansour, impressionava pelas dimensões, solidez, riqueza dos detalhes em
relevo. O antigo palácio do fundador da cidadela, Moulay Ismail, cujas
cavalariças, nos áureos tempos, chegaram a abrigar doze mil cavalos. O mausoléu
onde estava enterrado contava com a tumba da família, mesquita, salão com
mosaicos, fontes de água.
Assistimos a demonstrações das diversas fases do
artesanato em metais gravados com fios de prata, depois os trabalhos de
bordados em tecidos. Os insistentes comerciantes tentaram vender os produtos que
garantiam ser exclusivos, de qualidade, a preços bem abaixo do custo somente
por terem se afeiçoado a nós, somente a nós.
No centro da cidade, escolhi restaurante pequeno, barato,
frequentado por marroquinos de Meknes. Comi tajine
de carne de peru, prato ensopado, cozido e servido em recipiente cônico de
cerâmica. A farta tigela de pães típicos da região me ajudou a mergulhar
lentamente naquele prato que veio pelando de quente. Me satisfiz, na quantidade
e na qualidade. Encerrei com salada de frutas cobertas de iogurte. Os garçons,
sorridentes e atenciosos, me deixaram a vontade. Os fregueses me olhavam
discretamente apesar de eu ser o único forasteiro comendo ali.
Por estradas acidentadas, cortando paisagens cultivadas
nos vales e encostas, o veículo seguiu para Moulay Idriss, cidadezinha
encravada na encosta de colina e isolada no meio do nada. Fundada no século VII
e mantida de forma tradicional, a cidade atraía peregrinos de diversas regiões
do país.
Perto dali se erguiam as ruínas romanas de Volubilis,
datadas dos séculos II e III depois de Cristo, e situadas estrategicamente no
alto do morro.
Mais uma vez um guia local nos foi designado. Sem a mínima
vontade de prestar o serviço, o sujeito vomitou de maneira monocórdia frases
decoradas sobre a história das ruínas, os possíveis significados de cada setor,
cômodo, terreno, muro, mosaico, coluna, caminho. As ruínas revelavam trechos
bem preservados, outros restaurados, outros ainda somente com a reconstituição
do original. Cegonhas montavam e usavam ninhos enormes e confortáveis nos altos
das colunas romanas, nos estilos dóricos, jônicos ou coríntios.
Ao final do circuito, o dito cujo que se considerava guia
me coagiu a lhe dar gorjeta. Não pediu, ordenou. Nem pensar. Ainda mais pelo péssimo
serviço, incluído no ingresso. E vivas à indústria predatória do turismo que
produz párias em vez de treinar verdadeiros guias locais.
No final da tarde o veículo entrou em Fes (Fez), erguida
entre as montanhas Rif e a cadeia do Médio Atlas, e dividida em três setores. A
cidade antiga, datada do século IX, a parte nova ou medieval, do século XIV, a
moderna, construída nas décadas da invasão e ocupação francesa.
Nos cruzamentos da cidade, cenas já notadas em outros
pontos do país. Negros de pele muito escura, recém-chegados do centro e do sul
da África, pediam esmolas. Segundo o motorista, pretendiam juntar dinheiro para
cruzar de barco o Mediterrâneo e entrar na Europa. A mesma Europa que fatiou em
pedaços o continente africano em meados do século XIX, dando uma parte para
cada país europeu saquear, pilhar, escravizar. A mesma Europa que invadiu e
ocupou a África por mais de cem anos, que dirigiu e sustentou o comércio de
escravos. A mesma Europa que, agora submissa ao regime estadunidense, ainda deita
e rola em território africano, manipulando governos fantoches, jogando
civilizações contra civilizações. Mas a população da África espoliada era proibida
de entrar e viver nessa mesma Europa.
E, finalmente, a extraordinária medina de Fes (Fez), completando mil e duzentos anos de idade. Ali
dentro, somente a pé ou de jumento.
Distribuída num imenso labirinto de quilômetros de becos,
ruelas, escadarias, comércio dividido em souks
conforme a especialidade ou ramo de atividade, mesquitas, madraças ou escolas
corânicas, moradias, oficinas, cooperativas de artesanatos, entre outras tantas
subdivisões, a milenar medina,
verdadeiro planeta dentro da área metropolitana, encantou de ponta a ponta. Passamos
pela universidade mais antiga do mundo, datada do século IX, constituída de
faculdades ativas nas mais diversas áreas do conhecimento. O setor de alimentos
empolgou entre azeitonas de tamanhos e cores diversas, doces variados, tâmaras
baratas, tâmaras caríssimas, frutas, grãos, verduras, laticínios, carnes,
inclusive as de dromedários, como eu já notara nos interiores da Tunísia.
O ponto alto veio com o setor de curtumes. Amaciavam o
couro, tingiam em tinas de diferentes cores naturais, secavam, costuravam,
expunham para venda. Dentro das cavidades cilíndricas de tingimento, amarelas
do açafrão, vermelhas da papoula, azuis do índigo, brancas da cal, marrons,
verdes, os coureiros nela imersos mergulhavam dezenas de vezes as peças de
material cru e previamente amaciado. Imagem impressionante dos coloridos, da
metodologia artesanal, do tempo do onça, desumanas.
No almoço me deliciei com outro tajine, dessa de vez de frango e legumes em mesinha ao ar livre, de
frente para o movimento frenético dos transeuntes. Comi bem, bastante e barato.
Nos dirigimos à medina
medieval, ou nova, que contava com “somente” setecentos anos de existência. Entrei
pela imponente Porta Azul, justamente a cor da cidade de Fes (Fez), rumo aos
inúmeros souks, distribuídos em outra
sequência de labirintos. Nem se comparava à medina
antiga, no tamanho, complexidade, beleza, mistérios. Mas agradou pela
frequência majoritariamente local. Num dos becos internos, um marroquino me
ofereceu haxixe e outros produtos mais elaborados, mais potentes, mais
alucinógenos. Não lhe faltariam clientes, sobretudo estrangeiros. Eu não
precisava de nada daquilo. Já estava em estado de graça por ter perambulado horas
dentro da estonteante medina de Fes
(Fez).
O vício do cigarro atingia níveis tão alarmantes no
Marrocos, e similares ao da Tunísia e Turquia, que em hotéis e restaurantes
havia cinzeiros afixados até nas paredes internas dos elevadores, ou ao lado
dos vasos e cavidades sanitárias. Se fumava muito e em todos os lugares, sem
restrição. Os não fumantes que inalassem a fumaça. A saúde perdia de goleada para
as doenças derivadas dos males do cigarro. E as corporações que lucravam com a
dependência química deitavam e rolavam.
Saímos bem cedo de Fes (Fez) sob a névoa e nuvens baixas. As
planícies intensamente cultivadas de alimentos, frutas, flores, deram lugar a
serras, sobre as quais a estrada estreita se tornou sinuosa, acidentada, ao
lado de escarpas rochosas, vales férteis e verdejantes. Cancelas na beira do
asfalto interromperiam o tráfego de veículos durante o inverno, quando a neve
cobriria tudo. Nos altos a névoa e as nuvens desapareceram e o sol brilhou no
céu azul. O relevo subiu, passando pelas cidadezinhas de Imouzzer Kandar,
Ifrane, voltadas ao turismo regional de verão, quando os marroquinos fugiam do
forno e se refrescavam serra acima. O estilo arquitetônico do casario imitava os
vilarejos alpinos europeus, da mesma forma que em algumas cidadezinhas serranas
no Brasil.
Depois do entroncamento nas imediações da cidade de Azrou,
ainda nos altos da serra, reserva natural contendo grupos de macacos dóceis,
aguardando doações de bananas, melancias e afins dos turistas que paravam para
fotografá-los.
As curvas fechadas
e o relevo acidentado prosseguiam nos arredores de Tinahdite. As primeiras
imagens do Médio Atlas começaram a aparecer, em montanhas, cujas cristas e
encostas altas se cobriam de neve. À medida que a estrada descia o relevo, nada
mais de colinas verdejantes, florestas de cedro, oliveiras, flores diversas e coloridas.
O ocre das escarpas rochosas passaria a dominar a paisagem. As culturas
agrícolas desapareceriam, restando somente o verde do fundo dos vales, ao longo
dos quais se erguiam vilas menores. A arquitetura berbere predominava. Casas de
barro e pedra, acastanhadas, de taipa, térreas e baixas, retangulares, sem
cobertura de telhas ou algo do gênero. Rebanhos de ovelhas e cabras eram o que
restava àqueles terrenos e clima secos depois da cidadezinha de Midelt.
continua...
OLÁ! EU JÁ ESTOU EM ESTADO DE GRAÇAS SÓ DE LER E DOU ASAS À IMAGINAÇÃO DE COMO SERIA VIVER NAQUELA ÉPOCA COM TANTA IMPONÊNCIA. CASABLANCA PARA MIM SEMPRE FOI RODEADA DE MISTÉRIOS, ALIÁS MARROCOS É ASSIM, MISTERIOSO, EXALA EXOTISMO. SOU COMO VOCÊ, AMO EXPLORAR, VER E ARQUIVAR TUDO NO MEU PRÓPRIO COMPUTADOR, CHAMADO CÉREBRO. RISOS. O QUE É A CULTURA, ELES AINDA PRESERVAM O MODO ARCAICO DE AMACIAR E TINGIR O COURO, PENA QUE SEJA UM TRABALHO DURO E DESUMANO. O MISTÉRIO E A BELEZA FAZ DO MARROCOS O QUE ELE É AUTÊNTICO. BJS.
ResponderExcluirOi Ivete, obrigado pelos comentários.
ResponderExcluirVerdade, haja experiências acumuladas e riquezas culturais adquiridas nessas viagens. Os pontos altos, mas os baixos também, sempre acrescentam.
E as civilizações árabes guardam sabedorias e muitos pontos altos, bem mais que os baixos.
Obrigado e comente sempre.
Fantástico!
ResponderExcluirOi Maria!
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentários.
Espero que continue lendo, se empolgando e...comentando. Seus elogios me estimulam a continuar escrevendo e publicando.
Abraços!
Passei o Réveillon no Marrocos ,e gostei muito , Guias locais cultos e preparados . Hotéis maravilhosos . Comida muito boa e a água mineral com gás excelente . (Sou apreciadora da boa água).
ResponderExcluirTudo depende da estrutura da viagem . Esmero nas atrações oferecidas, nível dos hotéis e restaurantes e escolha dos melhores guias locais .
Oi Sheila!
ResponderExcluirObigado pela visita e pelos comentários.
Como fui antes à Tunísia, país que adorei e me senti em meio à cultura árabe, em vilas e cidades mais típicas, não me encantei com o Marrocos. Achei desfigurado culturalmente, turístico demais, ocidentalizado demais, a despeito dos saborosos tajines.
Recomendo muito os interiores da Tunísia, o deserto do Saara inclusive. Você vai mergulhar em país árabe de verdade, mesmo tendo sido, no passado, invadido e colonizado pela França.
Abraços e comente sempre!