Levantei ainda no escuro. Na porta de vidro do salão do
café da manhã estava afixada a programação para o grupo de motoqueiros belgas, hospedado
naquele hotel. E tudo escrito em duas línguas, flamengo e francês. Incrível a
Bélgica, país cuja área é pouco maior que a do estado de Alagoas, possuir duas
línguas faladas por duas partes fisicamente separadas, divididas, que não se
bicam, que uma se recusa a falar a língua da outra, que não raramente se
estranham e entram em confronto. E havia ainda o alemão, língua falada por uma
terceira parte daquele país.
Partimos via o litoral leste tunisiano. Margeamos a
economicamente dinâmica cidade de Gabes, repleta de refinarias lançando
efluentes químicos nos córregos, solo, praias. Então pegamos rodovia com
tráfego pesado, passando ao lado de pequenos vilarejos empoeirados e sujos.
Ambulantes na beira da estrada vendiam frutas, verduras, gasolina
contrabandeada da Líbia, eletroeletrônicos, cerâmica, inutilidades, carne de
carneiro grelhada, cujos estabelecimentos penduravam a pele do animal abatido
para atrair os clientes. Também senhores ferviam água em chaleiras escurecidas
para venda de chá, entre outras dezenas de itens expostos à poeira e aos
escapamentos de automóveis, motos, caminhões, ônibus. Veículos com placas da
Líbia ultrapassavam feito loucos, pela esquerda, pela direita, trafegando na
contramão, pedindo para morrer e matar.
E assim foi, passando pelas cidades de Skira e Mahres, até
Sfax, a segunda cidade mais populosa da Tunísia. Um baita engarrafamento nos
recebeu pelas avenidas de entrada da zona urbana, entre muita poeira, fumaça
dos escapamentos, obras nas vias e calçadas, pedestres aos montes disputando espaço
com os veículos aos montes.
Era sexta-feira, o dia mais sagrado para o islamismo,
cujos praticantes deveriam orar pelo menos uma das cinco orações diárias na própria
mesquita. Homens barbudos vestiam túnicas cinzas-clara ou brancas, limpíssimas,
impecavelmente passadas. Mulheres se cobriam de burca negra ou azul. Mas todos
esses religiosos, homens e mulheres, eram minoritários em comparação aos não
praticantes ou praticantes moderados, vestidos à maneira ocidental.
Desembarquei em
frente ao portão principal da medina
de Sfax, cercada em todo o perímetro por muralha alta, espessa, pesada, com
direito a ameias e orifícios para observação ou defesa armada nos séculos
passados. Dentro da medina,
intensamente procurada pela população para comprar ou consertar todos os
produtos que se podia imaginar. Os diversos souks
concentravam, de maneira organizada, ramos de itens ou atividades afins.
Mulheres, homens, crianças, idosos, circulavam, literalmente fervendo os becos
e ruelas internas. Como nas demais zonas comerciais do país, destaque para os
morangos, frescos, enormes, vermelhos-escuros, convidativos, perfumados,
suculentos, apetitosos. E também laranjas deliciosamente azedas, ali chamadas
simplesmente de portugal.
De volta à estrada carregada de caminhões e automóveis
antes de desviar para rodovia nova de pista dupla. A paisagem semiárida
guardava, desde antes de Sfax, olivais sem fim, de ambos os lados, a perderem
de vista, geometricamente plantados. Nos pedágios, vendedores ofereciam pães
redondos assados nas redondezas.
O veículo entrou nas ruas empoeiradas da cidade de El Jem,
em cujo centro se erguia o coliseu romano construído no século III. A construção
ovalada, com capacidade para trinta mil espectadores, possuía arquibancadas distintas
para imperadores e cônsules, galerias para escravos, animais ferozes,
gladiadores.
Subi e desci as escadarias. Caminhei por galerias
superiores, inferiores, a arena, os portões. Novamente, pouquíssimos turistas
perambulando pela imensidão do coliseu. Do lado de fora, ao redor, ambulantes
sonolentos e sem compradores, dromedários sonolentos e sem montadores, cafés
com garçons sonolentos e sem clientes.
Almoçamos em restaurante frequentado por trabalhadores
locais engravatados. Servia comida picante, com a onipresente harissa, usada na preparação dos pratos
e disposta nas entradas junto à generosa cesta de pães. A sequência veio de
sopa de grãos, coelho assado com macarrão ao molho apimentado, regada a
refresco de tamarindo.
As ruas das proximidades do restaurante, situado em
esquina nervosa, se coalhavam de muçulmanos vestidos a caráter saindo das
mesquitas após a mais importante oração do dia. O trânsito, que já não era dos
mais fluentes, parou de vez, entre carros, ônibus, motos, bicicletas,
pedestres, a poeira das obras viárias.
De volta à rodovia nova. No meio da tarde já percorríamos
as avenidas de Sousse, cidade litorânea e moderna, contando com dezenas de resorts que abrigavam europeus
desembarcados no aeroporto local vindos de voos fretados.
E foi num desses resorts,
na região de Port Kantaoui, que me hospedei. O gigantesco quarto, atulhado de
móveis, precisaria de mapa para não me perder.
Desci para o jantar. Os diversos bares já estavam tomados
pela profusão de turistas. As lojas do andar térreo, vazias, só contavam com os
tristes vendedores mirando o nada. Figuras fantasiadas de personagens de
estórias infantis recebiam os hóspedes na entrada do salão de jantar. Em
ambiente imenso, lembrando as churrascarias do ABC paulista, os turistas disputavam
as comidas insossas, insípidas, hospitalares, dispostas em bufês. As bebidas,
entre sucos, refrigerantes, cervejas, vinhos, se obtinham a partir de torneiras
automáticas. Tudo, absolutamente tudo, sem gosto, sem tempero, sem
personalidade, sem carinho. Somente quantidade, nada de qualidade.
Em outro salão, cartazes convidavam para apresentação de
variedades daí a duas horas. Máquinas automáticas tiravam fotografias dos
presentes. O conjunto das áreas comuns internas do hotel, bares, restaurantes,
salão de eventos, lojas, compunham a sucursal do inferno. Um cruzeiro marítimo
em terra, mal frequentado, mal servido, mal decorado, mal animado.
Verdadeiro enclave em território tunisiano, o hotel
isolava os hóspedes do povo e culturas locais. E parece que era exatamente o
que aqueles seres vomitados de voos fretados europeus desejavam. Não vieram à
Tunísia, mas sim ao resort, que, por
acaso, fora construído por uma dessas redes internacionais de hotelaria em
frente ao mar da Tunísia.
Durante o café da manhã a circulação de personagens
fellinianos prosseguiu. Em vez de sucos, chá, café, leite, muitos se
empanturravam de refrigerantes químicos, abrindo as torneirinhas a todo
instante.
No térreo, entre o prédio principal e o mar, o complexo de
piscinas do hotel, mais bares, palcos de animação, salão de ginástica, salão de
massagem, quadras de jogos estranhos e venerados pelos britânicos. Mas para
chegar até ali era necessário ultrapassar o corredor polonês de ambulantes
cadastrados, vendendo inutilidades e quinquilharias de péssima qualidade.
Depois do último bar do hotel, e eram muitos os bares, a
areia da praia e o mar, com mais garçons circulando com os pedidos nas
bandejas. Os demais hotéis, à esquerda e à direita, tinham as mesmas coisas, da
mesma maneira, frequentados pelos mesmos tipos, todos em série, lado a lado.
Não fazia calor, principalmente pelo constante vento frio
da primavera. Provenientes de países distantes da linha do equador, contudo, os
turistas vestiam somente sungas e biquínis, se derretendo de calor naquela
manhã de 19 graus. Liam livros de autoajuda, revistas com a última novidade
para emagrecer sem esforço, fofocas das celebridades ou das decadentes monarquias
europeias, crônicas esportivas, best-sellers da temporada. Cutucavam
esquizofrenicamente celulares, tablets,
notebooks. Bebiam todas e largavam latinhas e garrafas ao lado. Era para isso
que pagaram e vieram.
Ali a atração turística não era a Tunísia, o povo tunisiano,
a cultura árabe, o mar Mediterrâneo. A atração era os próprios turistas.
O trajeto rodoviário de Sousse a Túnis, à beira mar, valeu
pela cidadezinha de Hergla, procurada durante o verão para alugueis de imóveis.
Fora da estação, no entanto, transbordava charme, silêncio, tranquilidade,
ocupada apenas por tunisianos sem pressa, nos cafés, praças, porta das casas,
invariavelmente caiadas de branco com portas e janelas pintadas de azul,
costume do Mediterrâneo. O brilho da luz do sol lhe fornecia autêntico ar de
vila árabe e litorânea. O mar azul, os pescadores matinais, tudo convidava a
ficar, a relaxar.
Antes do almoço eu já estava hospedado no hotel em transversal
da avenida Habib Bourguiba, centro novo de Túnis. Almocei bem e barato cuscuz
com carne de coelho em restaurante pequeno e familiar.
Dei volta pelo calçadão da avenida, fortemente policiada
com homens armados até os dentes, bloqueios com arame farpado e barricadas de
sacos de areia, rondas ostensivas de segurança. O atentado do mês anterior
ainda rendia reflexos. Os cafés de ambas as calçadas afrancesadas da avenida
enchiam de tunisianos e de visitantes regionais, tomando chá, café, água,
doces, sorvetes, ou simplesmente conversando e admirando o vaivém daquela tarde
de domingo ensolarado.
Na manhã seguinte, cruzei a Porta do Mar que os invasores
franceses rebatizaram com outro nome, e optei por uma das ruelas de entrada da medina, sem pressa, sem roteiro. Vez ou
outra arriscava vielas mais estreitas e transversais. Dobrei aqui, virei ali,
para esquerda, para direita e, de uma hora para outra, já não sabia onde estava
e nem como sair. Pacientemente retornava, sabe-se lá como, a algum trecho
visualmente familiar e retomava as incursões.
Cada souk da medina concentrava um tipo ou grupo de
produtos ou serviços, abrigando lojas e mais lojas, uma ao lado da outra.
Nenhum espaço, por menor que fosse, era desperdiçado. Motos e carrinhos de
carga eventualmente atrapalhavam o fluxo de pedestres. Casas de chá e café,
algumas charmosíssimas e ornadas de almofadas e tapetes coloridos, mosaicos nas
paredes, recebiam os fregueses para conversar, ver o tempo passar, fazer
negócios, fumar narguilé. O calçamento de pedra das ruazinhas contava com
depressão central e longitudinal para facilitar o escoamento da água e de sujeiras
em geral. Mesquitas, incluindo a principal de Túnis, a Zaytouna, fechavam as
salas de oração aos não muçulmanos. Becos e ruelas se cobriam de arcos de
tijolos, sobre os quais janelas trabalhadas abrigavam moradias ou depósitos
comerciais. Em trecho mais aberto e degradado, ambulantes vendiam roupas
baratas amontoadas em esteiras no chão ou penduradas em toscos cabides. Ali as
tunisianas de mantos, véus, roupas largas e longas, se esbaldavam, regateavam,
levando uma ou mais peças. Do lado ocidental da medina, órgãos governamentais fortemente protegidos pela polícia e
pelo exército. E mais além, avenidas congestionadas durante o horário matinal
de pico.
Devido a questões de segurança, após o atentado no museu
Bardo, faixas da avenida Habib Bourguiba foram bloqueadas ao tráfego de
veículos. O trânsito então vivia engarrafado, sobretudo no acesso das
transversais. De vez em quando, uma batidinha de para-choques, um amassadinho.
Os motoristas saíam dos veículos, verificavam os danos, resmungavam, ameaçavam
discutir, mas acabavam desistindo e seguindo em frente. Nessas horas as buzinas
geravam sinfonia de estourar os tímpanos.
Andei pelas transversais da avenida Habib Bourguiba, entre
ruas e construções europeizadas de até cinco andares, comércio monótono,
tráfego intenso de pedestres e veículos. Desviei ziguezagueando na busca do que
me chamasse atenção. Virei para lá, dobrei para cá, acabei caindo em becos
irregulares de outra medina, residencial,
com raras lojas de produtos essenciais. E me descobri perdido naquele magnífico
labirinto tunisiano.
Eu não tinha a mínima ideia de como sair dali. Optei por
me manter no rumo sul. Mais becos, mais curvas, mais medina. Nada de ruas ou avenidas retas. De repente caí numa região
de construções suntuosas, ao lado de escritórios de advogados, cartórios,
locais para cópias de documentos, escritórios de tradutores juramentados. Homens
vestiam terno e gravata, outros carregavam pastas com documentos. Conversavam
entre si, explicando pacientemente isso e aquilo. De uma construção grande e
pesada, centenas de pessoas subiam e desciam as escadarias. Intuí estar em área
de tribunais ou algo parecido. Mais á frente, eis que surge o conjunto de
prédios públicos avistados no dia anterior. E logo vi a torre da mesquita
Zaytouna. Eu me localizara.
Mulheres vestidas de roupas longas, folgadas e cobrindo as
cabeças com véus e mantos, levantavam cartazes e gritavam palavras de ordem. Uma
delas esbravejava com o soldado da guarda nacional. A polícia aumentava a
segurança e bloqueava mais ruas e acessos do que o normal. Senti tensão no ar.
Contornei o movimento nervoso e entrei na parte comercial da medina para cruzá-la de ponta a ponta, até
a Porta do Mar, entrando na área afrancesada de Túnis.
continua...
Interessante, como em qualquer outra cidade do mundo sempre há um coração comercial. Continuo.
ResponderExcluirOi Ivete, obrigado pelos comentários!
ResponderExcluirAs medinas milenares das cidades árabes são um caso à parte nas explorações urbanas. Labirínticas, exalam história e tradições a cada canto. O ideal é se "perder" por ali, se deixar ficar por horas. Não se preocupe. Uma hora você encontra a saída. Mas, antes disso, se envolverá de magia pelos becos e arcos, lojas e vendedores, cheiros e sons. Maravilhoso!
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