segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 3/7)

...continuação
Levantei ainda no escuro. Na porta de vidro do salão do café da manhã estava afixada a programação para o grupo de motoqueiros belgas, hospedado naquele hotel. E tudo escrito em duas línguas, flamengo e francês. Incrível a Bélgica, país cuja área é pouco maior que a do estado de Alagoas, possuir duas línguas faladas por duas partes fisicamente separadas, divididas, que não se bicam, que uma se recusa a falar a língua da outra, que não raramente se estranham e entram em confronto. E havia ainda o alemão, língua falada por uma terceira parte daquele país.
Partimos via o litoral leste tunisiano. Margeamos a economicamente dinâmica cidade de Gabes, repleta de refinarias lançando efluentes químicos nos córregos, solo, praias. Então pegamos rodovia com tráfego pesado, passando ao lado de pequenos vilarejos empoeirados e sujos. Ambulantes na beira da estrada vendiam frutas, verduras, gasolina contrabandeada da Líbia, eletroeletrônicos, cerâmica, inutilidades, carne de carneiro grelhada, cujos estabelecimentos penduravam a pele do animal abatido para atrair os clientes. Também senhores ferviam água em chaleiras escurecidas para venda de chá, entre outras dezenas de itens expostos à poeira e aos escapamentos de automóveis, motos, caminhões, ônibus. Veículos com placas da Líbia ultrapassavam feito loucos, pela esquerda, pela direita, trafegando na contramão, pedindo para morrer e matar.
E assim foi, passando pelas cidades de Skira e Mahres, até Sfax, a segunda cidade mais populosa da Tunísia. Um baita engarrafamento nos recebeu pelas avenidas de entrada da zona urbana, entre muita poeira, fumaça dos escapamentos, obras nas vias e calçadas, pedestres aos montes disputando espaço com os veículos aos montes.
Era sexta-feira, o dia mais sagrado para o islamismo, cujos praticantes deveriam orar pelo menos uma das cinco orações diárias na própria mesquita. Homens barbudos vestiam túnicas cinzas-clara ou brancas, limpíssimas, impecavelmente passadas. Mulheres se cobriam de burca negra ou azul. Mas todos esses religiosos, homens e mulheres, eram minoritários em comparação aos não praticantes ou praticantes moderados, vestidos à maneira ocidental.
  Desembarquei em frente ao portão principal da medina de Sfax, cercada em todo o perímetro por muralha alta, espessa, pesada, com direito a ameias e orifícios para observação ou defesa armada nos séculos passados. Dentro da medina, intensamente procurada pela população para comprar ou consertar todos os produtos que se podia imaginar. Os diversos souks concentravam, de maneira organizada, ramos de itens ou atividades afins. Mulheres, homens, crianças, idosos, circulavam, literalmente fervendo os becos e ruelas internas. Como nas demais zonas comerciais do país, destaque para os morangos, frescos, enormes, vermelhos-escuros, convidativos, perfumados, suculentos, apetitosos. E também laranjas deliciosamente azedas, ali chamadas simplesmente de portugal.
De volta à estrada carregada de caminhões e automóveis antes de desviar para rodovia nova de pista dupla. A paisagem semiárida guardava, desde antes de Sfax, olivais sem fim, de ambos os lados, a perderem de vista, geometricamente plantados. Nos pedágios, vendedores ofereciam pães redondos assados nas redondezas.
O veículo entrou nas ruas empoeiradas da cidade de El Jem, em cujo centro se erguia o coliseu romano construído no século III. A construção ovalada, com capacidade para trinta mil espectadores, possuía arquibancadas distintas para imperadores e cônsules, galerias para escravos, animais ferozes, gladiadores.
Subi e desci as escadarias. Caminhei por galerias superiores, inferiores, a arena, os portões. Novamente, pouquíssimos turistas perambulando pela imensidão do coliseu. Do lado de fora, ao redor, ambulantes sonolentos e sem compradores, dromedários sonolentos e sem montadores, cafés com garçons sonolentos e sem clientes.
Almoçamos em restaurante frequentado por trabalhadores locais engravatados. Servia comida picante, com a onipresente harissa, usada na preparação dos pratos e disposta nas entradas junto à generosa cesta de pães. A sequência veio de sopa de grãos, coelho assado com macarrão ao molho apimentado, regada a refresco de tamarindo.
As ruas das proximidades do restaurante, situado em esquina nervosa, se coalhavam de muçulmanos vestidos a caráter saindo das mesquitas após a mais importante oração do dia. O trânsito, que já não era dos mais fluentes, parou de vez, entre carros, ônibus, motos, bicicletas, pedestres, a poeira das obras viárias.
De volta à rodovia nova. No meio da tarde já percorríamos as avenidas de Sousse, cidade litorânea e moderna, contando com dezenas de resorts que abrigavam europeus desembarcados no aeroporto local vindos de voos fretados.
E foi num desses resorts, na região de Port Kantaoui, que me hospedei. O gigantesco quarto, atulhado de móveis, precisaria de mapa para não me perder.
Desci para o jantar. Os diversos bares já estavam tomados pela profusão de turistas. As lojas do andar térreo, vazias, só contavam com os tristes vendedores mirando o nada. Figuras fantasiadas de personagens de estórias infantis recebiam os hóspedes na entrada do salão de jantar. Em ambiente imenso, lembrando as churrascarias do ABC paulista, os turistas disputavam as comidas insossas, insípidas, hospitalares, dispostas em bufês. As bebidas, entre sucos, refrigerantes, cervejas, vinhos, se obtinham a partir de torneiras automáticas. Tudo, absolutamente tudo, sem gosto, sem tempero, sem personalidade, sem carinho. Somente quantidade, nada de qualidade.
Em outro salão, cartazes convidavam para apresentação de variedades daí a duas horas. Máquinas automáticas tiravam fotografias dos presentes. O conjunto das áreas comuns internas do hotel, bares, restaurantes, salão de eventos, lojas, compunham a sucursal do inferno. Um cruzeiro marítimo em terra, mal frequentado, mal servido, mal decorado, mal animado.
Verdadeiro enclave em território tunisiano, o hotel isolava os hóspedes do povo e culturas locais. E parece que era exatamente o que aqueles seres vomitados de voos fretados europeus desejavam. Não vieram à Tunísia, mas sim ao resort, que, por acaso, fora construído por uma dessas redes internacionais de hotelaria em frente ao mar da Tunísia.
Durante o café da manhã a circulação de personagens fellinianos prosseguiu. Em vez de sucos, chá, café, leite, muitos se empanturravam de refrigerantes químicos, abrindo as torneirinhas a todo instante.
No térreo, entre o prédio principal e o mar, o complexo de piscinas do hotel, mais bares, palcos de animação, salão de ginástica, salão de massagem, quadras de jogos estranhos e venerados pelos britânicos. Mas para chegar até ali era necessário ultrapassar o corredor polonês de ambulantes cadastrados, vendendo inutilidades e quinquilharias de péssima qualidade.
Depois do último bar do hotel, e eram muitos os bares, a areia da praia e o mar, com mais garçons circulando com os pedidos nas bandejas. Os demais hotéis, à esquerda e à direita, tinham as mesmas coisas, da mesma maneira, frequentados pelos mesmos tipos, todos em série, lado a lado.
Não fazia calor, principalmente pelo constante vento frio da primavera. Provenientes de países distantes da linha do equador, contudo, os turistas vestiam somente sungas e biquínis, se derretendo de calor naquela manhã de 19 graus. Liam livros de autoajuda, revistas com a última novidade para emagrecer sem esforço, fofocas das celebridades ou das decadentes monarquias europeias, crônicas esportivas, best-sellers da temporada. Cutucavam esquizofrenicamente celulares, tablets, notebooks. Bebiam todas e largavam latinhas e garrafas ao lado. Era para isso que pagaram e vieram.
Ali a atração turística não era a Tunísia, o povo tunisiano, a cultura árabe, o mar Mediterrâneo. A atração era os próprios turistas.
O trajeto rodoviário de Sousse a Túnis, à beira mar, valeu pela cidadezinha de Hergla, procurada durante o verão para alugueis de imóveis. Fora da estação, no entanto, transbordava charme, silêncio, tranquilidade, ocupada apenas por tunisianos sem pressa, nos cafés, praças, porta das casas, invariavelmente caiadas de branco com portas e janelas pintadas de azul, costume do Mediterrâneo. O brilho da luz do sol lhe fornecia autêntico ar de vila árabe e litorânea. O mar azul, os pescadores matinais, tudo convidava a ficar, a relaxar.
Antes do almoço eu já estava hospedado no hotel em transversal da avenida Habib Bourguiba, centro novo de Túnis. Almocei bem e barato cuscuz com carne de coelho em restaurante pequeno e familiar.
Dei volta pelo calçadão da avenida, fortemente policiada com homens armados até os dentes, bloqueios com arame farpado e barricadas de sacos de areia, rondas ostensivas de segurança. O atentado do mês anterior ainda rendia reflexos. Os cafés de ambas as calçadas afrancesadas da avenida enchiam de tunisianos e de visitantes regionais, tomando chá, café, água, doces, sorvetes, ou simplesmente conversando e admirando o vaivém daquela tarde de domingo ensolarado.
Na manhã seguinte, cruzei a Porta do Mar que os invasores franceses rebatizaram com outro nome, e optei por uma das ruelas de entrada da medina, sem pressa, sem roteiro. Vez ou outra arriscava vielas mais estreitas e transversais. Dobrei aqui, virei ali, para esquerda, para direita e, de uma hora para outra, já não sabia onde estava e nem como sair. Pacientemente retornava, sabe-se lá como, a algum trecho visualmente familiar e retomava as incursões.
Cada souk da medina concentrava um tipo ou grupo de produtos ou serviços, abrigando lojas e mais lojas, uma ao lado da outra. Nenhum espaço, por menor que fosse, era desperdiçado. Motos e carrinhos de carga eventualmente atrapalhavam o fluxo de pedestres. Casas de chá e café, algumas charmosíssimas e ornadas de almofadas e tapetes coloridos, mosaicos nas paredes, recebiam os fregueses para conversar, ver o tempo passar, fazer negócios, fumar narguilé. O calçamento de pedra das ruazinhas contava com depressão central e longitudinal para facilitar o escoamento da água e de sujeiras em geral. Mesquitas, incluindo a principal de Túnis, a Zaytouna, fechavam as salas de oração aos não muçulmanos. Becos e ruelas se cobriam de arcos de tijolos, sobre os quais janelas trabalhadas abrigavam moradias ou depósitos comerciais. Em trecho mais aberto e degradado, ambulantes vendiam roupas baratas amontoadas em esteiras no chão ou penduradas em toscos cabides. Ali as tunisianas de mantos, véus, roupas largas e longas, se esbaldavam, regateavam, levando uma ou mais peças. Do lado ocidental da medina, órgãos governamentais fortemente protegidos pela polícia e pelo exército. E mais além, avenidas congestionadas durante o horário matinal de pico.
Devido a questões de segurança, após o atentado no museu Bardo, faixas da avenida Habib Bourguiba foram bloqueadas ao tráfego de veículos. O trânsito então vivia engarrafado, sobretudo no acesso das transversais. De vez em quando, uma batidinha de para-choques, um amassadinho. Os motoristas saíam dos veículos, verificavam os danos, resmungavam, ameaçavam discutir, mas acabavam desistindo e seguindo em frente. Nessas horas as buzinas geravam sinfonia de estourar os tímpanos.
Andei pelas transversais da avenida Habib Bourguiba, entre ruas e construções europeizadas de até cinco andares, comércio monótono, tráfego intenso de pedestres e veículos. Desviei ziguezagueando na busca do que me chamasse atenção. Virei para lá, dobrei para cá, acabei caindo em becos irregulares de outra medina, residencial, com raras lojas de produtos essenciais. E me descobri perdido naquele magnífico labirinto tunisiano.
Eu não tinha a mínima ideia de como sair dali. Optei por me manter no rumo sul. Mais becos, mais curvas, mais medina. Nada de ruas ou avenidas retas. De repente caí numa região de construções suntuosas, ao lado de escritórios de advogados, cartórios, locais para cópias de documentos, escritórios de tradutores juramentados. Homens vestiam terno e gravata, outros carregavam pastas com documentos. Conversavam entre si, explicando pacientemente isso e aquilo. De uma construção grande e pesada, centenas de pessoas subiam e desciam as escadarias. Intuí estar em área de tribunais ou algo parecido. Mais á frente, eis que surge o conjunto de prédios públicos avistados no dia anterior. E logo vi a torre da mesquita Zaytouna. Eu me localizara.
Mulheres vestidas de roupas longas, folgadas e cobrindo as cabeças com véus e mantos, levantavam cartazes e gritavam palavras de ordem. Uma delas esbravejava com o soldado da guarda nacional. A polícia aumentava a segurança e bloqueava mais ruas e acessos do que o normal. Senti tensão no ar. Contornei o movimento nervoso e entrei na parte comercial da medina para cruzá-la de ponta a ponta, até a Porta do Mar, entrando na área afrancesada de Túnis.
continua...

2 comentários:

  1. Interessante, como em qualquer outra cidade do mundo sempre há um coração comercial. Continuo.

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  2. Oi Ivete, obrigado pelos comentários!
    As medinas milenares das cidades árabes são um caso à parte nas explorações urbanas. Labirínticas, exalam história e tradições a cada canto. O ideal é se "perder" por ali, se deixar ficar por horas. Não se preocupe. Uma hora você encontra a saída. Mas, antes disso, se envolverá de magia pelos becos e arcos, lojas e vendedores, cheiros e sons. Maravilhoso!
    Comente sempre!

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