Nas imediações da vila de Mides, nos deparamos com
garganta chocante, profunda, íngreme, estreita, em curva. O acidente geográfico
dividia a Tunísia e a Argélia, embora a fronteira oficial ficasse poucos
quilômetros acima. Nada de água no fundo da garganta, apenas vestígios vegetais
de eventuais fios de águas pluviais.
Voltamos à cidadezinha de Tamerza para almoçar comida
caseira. Verduras cozidas e temperos sobre pão árabe, sopa de abóbora com harissa, salada com brik e dedos-de-fátima, cordeiro ensopado e assado no forno
acompanhado de pimentão, legumes, batatas e cuscuz de trigo. Suco de limão com
hortelã e muita água regaram o almoço monumental que teve como mesa, claro,
mais pães, o creme da harissa, a
pasta de berinjela, azeitonas.
Retornamos montanha abaixo. Já na planície, abandonamos o
asfalto, cruzando as areias salinizadas do imenso lago ressecado, entre sobes e
desces das dunas. Ao redor, o deserto arenoso e as montanhas de cor ocre. Nada
mais.
Havia um bar tosco no meio do nada. No topo da colina ao
lado contemplei o deserto sem fim numa visão de trezentos e sessenta graus.
Paisagem monocromática, clara, infinita, com direito a miragens na linha do
horizonte que simulavam ilhas flutuando sobre o oceano inexistente. Não
adiantava esfregar os olhos, relaxar e olhar novamente. As ilhas e o mar
estavam lá. Enlouquecedor se, em caso de estar perdido, eu necessitasse dessas
referências para me orientar.
Quilômetros adiante, o deserto mais clássico, com dunas de
areia a se perderem no horizonte. Pai e filho se aproximaram de moto para pedir
dinheiro em troca de foto com uma espécie de raposa no colo do menino de menos
de dez anos de idade. O motorista esbravejou contra o comportamento do pai que,
em vez de levar o garoto à escola, o sujeitava a mendigar. O pai fingiu que não
ouviu e logo se deitou para cochilar. O filho assustado se afastou sem entender
nada. Provavelmente fariam o mesmo assim que passasse outro visitante por ali.
Ao final do trecho desértico, a cidadezinha de Nafta, onde
paramos para recompor os líquidos do corpo.
A música ambiente do hotel de Tozeur, reproduzidas nas
áreas comuns, primavam pelo arrojo, pela vanguarda, pelo experimental. A
seleção era a mesma tocada nos hotéis das estações de águas medicinais do
Brasil, como Águas de Lindoia, durante a década de 1960. O mesmo repertório
previsível, os mesmos arranjos sonolentos, a mesma ausência de vibração. E a
Tunísia conta com música árabe de primeiríssima qualidade, rica em melodias,
arranjos, instrumentos, intérpretes únicos.
O grupo de estrangeiros que se comunicavam com ya, ya
lá estava durante o jantar, trocando um festival de ya, ya entre si.
De manhã a charrete nos levou ao oásis de Tozeur, contendo
centenas de milhares de tamareiras. No museu das tâmaras, painéis explicavam a
origem, tipos, cultivos, usos, processos de beneficiamento da fruta. Do lado de
fora, as tamareiras, a macho que poliniza, a fêmea que fornece os frutos em
cachos no alto das palmeiras. Sob a sombra delas, árvores frutíferas, entre
outras, compunham três níveis principais de vegetação do ecossistema.
Experimentei diversas geleias, xaropes e cremes,
fabricados a partir dos inúmeros tipos de tâmara na pequena fábrica ao lado. E
todos continuavam reclamando do movimento quase inexistente de turistas em plena
primavera tunisiana, ensolarada e florida.
Saímos caminhando rumo à medina de Tozeur a qual, ao contrário das outras visitadas,
mantinha o bucolismo e o uso quase exclusivamente residencial havia mais de
setecentos anos. Comércio, somente nas entradas e saídas. Ruelas, passagens em
arco preenchidas de tronco de tamareira. Casas e muros revestidos de tijolos de
cor ocre e dispostos inventiva e artisticamente. Famílias, mulheres árabes
vestidas a rigor, cobertas da cabeça aos pés, bicicletas, motos e, felizmente,
nada de carros ou afins. Silêncio e tranquilidade pelos becos. Os moradores de
Tozeur se cumprimentavam nas ruas, para uma prosa rápida, se sentar para um
café, entabular conversas mais longas e substanciosas.
Como não poderia faltar em país de comerciantes, um dono
de loja me convidou a entrar para conferir os tipos de tapetes, fabricados a
partir de lã de carneiro, de dromedário, de cashmere, de seda. Enquanto os
modelos iam sendo estendidos sem dó nem piedade pelo piso, os vendedores
soltavam a lábia para tentar me convencer da qualidade, da exclusividade, da
garantia do produto pelo Estado, dos melhores preços, especialmente para mim,
que me tornava amigo íntimo e, portanto, receberia tratamento e preços
diferenciados. Eu não cabia de tanta lisonja. Vi, apreciei, conversei, sorri,
ri, tomei chá, perguntei preços desse e daquele tapete, agradeci
entusiasticamente meus novos e chegados amigos. E saí da loja sem gastar um
tostão. Mas que os absurdamente caros tapetes de seda, que mudavam de cores e
tons ao movimento, belíssimos e incrivelmente macios, me fizeram babar de
vontade, isso é verdade.
Escolhemos local simples e barato para comer brik de ovos e atum, grelhado de peru
com salada, batatas e macarrão ao molho, acompanhados das onipresentes pastas
apimentadas com o condimento harissa
e a montanha de pães.
Saímos pela manhã cruzando toda a extensão do oásis de
Tozeur, em direção ao gigantesco lago salgado de El Jerid, cortado ao meio pela
rodovia e tendo as montanhas ao fundo.
Da mesma maneira que os ambientes lacustres existentes nas
fronteiras da Bolívia com o Chile e com a Argentina havia ali alga avermelhada
que tingia a cor das águas do lago, e as penas dos flamingos que dela se alimentavam,
de coloração rosada a avermelhada. Pouquíssima água corria ao lado de
cristalizações esparsas e irregulares de grãos de sal.
Cafés e bares isolados surgiam na beira da estrada. Num
deles, indiferentes à nossa presença, quatro homens de turbantes claros bebiam
chá e jogavam dominó. Para o banheiro afastado precisei caminhar sobre as
camadas salgadas e enfrentar o cubículo de cimento em condições de higiene,
digamos, preocupantes.
Mais adiante o lago evoluía para deserto de areia com
tufos de vegetação rasteira reminiscentes do inverno úmido.
Cruzamos as cidadezinhas de Kriz, Fatnassa, Souk Lahad,
Tombar, Kebili, antes de alcançarmos Douz, cidade cuja denominação em francês
sepultou o nome original em árabe.
Circulei pela feira-livre da cidade, cada vez mais fascinado
pelo tamanho e pela beleza dos morangos vermelho-escuros. Homens e mulheres
vestidos a caráter caminhavam ou se sentavam para conversar e tomar café com os
amigos. Notei europeus que para ali se mudaram em busca de qualidade de vida e
menos impostos. Viviam de rendas ignoradas. E, vale salientar, nenhum deles era
discriminado, perseguido, preso ou deportado como acontece com os tunisianos na
Europa.
Almoçamos em local deliciosamente decorado e integrado ao
oásis vizinho. Escolhemos mesa sob as tamareiras e perto de pavão coloridíssimo
e exibido que desfilava por ali. A sequência de pratos começou com pequena
salada com creme de, adivinhem, harissa.
Seguiu com carne de dromedário com legumes e batatas, prato previamente
encomendado. O demorado processo introduzia a carne do dromedário, os legumes e
os temperos, todos acondicionados em vasilhas de cerâmica, em forno cilíndrico,
vertical, profundo, sob o solo. Eram fechados e lacrados com argila. Depois assados
durante mais de quatro horas. Tudo aquecido a carvão. Nada de gás ou
eletricidade. E assistimos ao ritual da abertura do forno, de onde brotou o
prato ensopado e perfumado. Ajudado pela cesta de pães, devorei tudo e não
deixei pedra sobre pedra. Hidratei com a boa e velha água, muita água. Chifre-de-gazela,
um dos milhares de doces de tâmara, adoçou a refeição às portas do deserto do
Saara. Para encerrar com chave-de-ouro, chá com tomilho.
Retomamos a estrada, entrando de vez no Saara, cruzando
vastidões infinitas de areia, rochas, gramíneas de primavera que desapareceriam
antes do verão. Rebanhos esparsos de ovelhas, cabras, dromedários. Acampamentos
de nômades no meio do nada. Uma refinaria de gás e outra de petróleo, ambas
pequenas, mas cercadas de segurança completa, apareceram em entroncamentos
rodoviários.
Um carroceiro nômade pediu ajuda para ajeitar o pneu
furado da carroça. Até paramos, mas nada poderíamos fazer. Desconsolado, se
despediu e nos viu desaparecer no horizonte.
Antes de escurecer entramos no acampamento situado ao lado
do oásis. A imensa área se compunha de restaurante, bar, sala de banhos e
massagens turcas, piscina, entre outros itens. As tendas cobertas de lona
plástica, dispostas sob as tamareiras, ofereciam banheiro privativo, água
encanada e quente, ar condicionado, luz elétrica durante as vinte e quatro
horas, camas de casal, saleta com mesa e cadeiras. O barulhento gerador a
diesel poluía o ar e os ouvidos.
Mergulhamos de cabeça nas dunas do Saara sob o sol do fim
da tarde. Entre subidas e descidas, através de caminhos marcados ou de outros
feitos na hora, atingimos as ruínas da fortaleza romana erguida havia milhares
de anos. Ninguém por ali. Silêncio total. No portal, vestígios de frases
romanas relembravam a história.
O jantar se compôs de sopa de grãos com tomates e a harissa, salada de folhas, brik, carneiro assado com legumes,
batatas e pimenta violentíssima. Para neutralizar o incêndio dentro da boca,
tâmaras frescas e tâmaras conservadas na manteiga.
O frio do deserto baixou com tudo durante a madrugada. A colcha
grossa espantou o ar gelado que entrava pelos orifícios da lona e pelos nós da
“porta”. Um jumento nervoso relinchava a todo instante.
Depois do café da manhã circulei fora e dei de frente com
o amontoado de “acampamentos turísticos”, lado a lado, mais de dez deles,
transformando o oásis num ponto de concentração alienígena. Não fossem as
circunstâncias desfavoráveis ao turismo da Tunísia ali estaria entupido de
visitantes. E junto com a horda de estrangeiros, a indústria do turismo
oferecia, ao redor dos acampamentos, bares badalados, artistas de ocasião, o
comércio ambulante vendendo de tudo e de qualidade duvidosa, as frotas de
quadriciclos, os dromedários para passeio, eventuais aproveitadores.
Deixamos aquilo que não se decidiu entre hotel e acampamento.
O ziguezaguear da estradinha marcou a passagem do deserto arenoso e aplainado
para deserto rochoso e montanhoso, cortado por vales menos inférteis e
parcamente cultivados, nas imediações de Bir Soltane.
Chegamos a Tamezret, cidadezinha de maioria berbere,
encantadora, encravada no alto da colina rochosa, erguida inicialmente no
século XI.
Primeiramente a contemplei de longe, enquanto saboreava
café aromatizado com hortelã e observava a paisagem árida e acidentada do
entorno. Depois, perambulei a pé, sem pressa, pelos becos, escadarias, ruelas
sinuosas, ladeiras, em meio ao silêncio absoluto da manhã. A maioria dos
moradores se deslocara ao campo para obter o pouco para comer ou comercializar.
Apreciar calmamente o casario de pedra não poderia ter sido melhor naquele
momento da viagem. Me revigorou. Portas em arco, muito baixas, de madeira
grossa pintada de azul, contrastando com o branco caiado das paredes e muros. A
mesquita também branca com o minarete de base quadrada. Subidas, descidas, um
ou outro morador vestido à moda tradicional berbere. A vista panorâmica dos
vales e colinas ao redor sobre o solo rochoso, árido, ocre.
Seguimos adiante cortando relevo acidentado do deserto
rochoso. Próximas à rodovia, moradias encravadas nas encostas, cavadas montanha
adentro, compondo o conjunto das famosas casas dos trogloditas de Matmata. E
ali, ao contrário da Capadócia turca, ainda era habitada por famílias que
viviam o dia a dia da Tunísia rural de maneira simples, sem ambições maiores.
Entramos em uma delas. O portal em arco, estreito e baixo,
escavado na rocha, nos levava ao pátio central, do qual portas abriam para a
cozinha, quartos, dispensa para mantimentos, tudo em ambiente naturalmente
resfriado no verão e morno no inverno. Dentro dos cômodos, o mínimo necessário
para a sobrevivência, sem supérfluos, sem sujeira aparente. A moradora
interrompeu a moagem de cevada usando pedras pequenas e antigas, em processo
totalmente manual, para nos preparar e servir chá com hortelã em minúsculos
copos de vidro transparente.
O sol, quando não neutralizado pelas raras nuvens finas ou
pela névoa seca, queimava e massacrava. Na sombra, a sensação térmica era
fresca e agradável, pelo menos no meio da primavera. O ar extremamente seco
incomodava levemente as vias respiratórias e vez ou outra entupia uma das
narinas.
O trajeto rodoviário entre Matmata e Toujene empolgou
pelos sobes e desces, curvas fechadas, precipícios, a vista espetacular do alto
das montanhas, os vales abaixo, os pequenos vilarejos, as montanhas mais ao
longe, as encostas pedregosas e áridas, a rara vegetação e, mais ao fundo, as
planícies da Líbia, país em fase de destruição social, saques e pilhagens pelas
corporações capitalistas da Europa e daquele regime terrorista ao norte do
México.
A luz do fim da tarde valorizava o ocre das rochas e areia
das encostas, as irregularidades do relevo, as construções encravadas na
montanha. E, serpenteando pela estradinha, chegamos ao vilarejo berbere de
Toujene, erguido inicialmente no século XI. Dotada de inúmeras construções de
pedra, em ruínas, abandonadas, becos e vielas inclinadas, ladeiras e
escadarias, Toujene me conquistou logo de cara. Os berberes desenvolveram
relações com a natureza, muitas das quais mantidas até os dias de hoje, entre
elas buscar água no poço comunitário, único para toda a cidadezinha, em enormes
galões sustentados nas costas ou carregados por jumentos.
O guia se impressionou ao ouvir a anciã local se espantar
com estrangeiros vindos de longe, ou, nas palavras dela, vindo de trás da
Líbia, visitarem e gostarem daquele vilarejo velho, feio, sem graça. Ele não
cansava de repetir a história, sempre se indignando com a ignorância da idosa.
Certamente ele não captara a singeleza daquelas impressões. Ao sairmos de
nossas culturas e paisagens, buscamos as diferenças, nos surpreendemos com as
diferenças, admiramos as diferenças. E, se essas distintas culturas nos
visitassem, também se surpreenderiam e admirariam. A curiosidade, a
perplexidade, o fascínio diante do outro, diante da diferença, faz parte dos
seres humanos. Daí o encanto que as viagens profundas exercem sobre os
viajantes. E daí a preocupação diante da padronização cultural do mundo, cada
vez mais acelerada e imposta pelas corporações dos países dominantes.
Entre conversas preguiçosas, o chá de hortelã natural
sobre a laje de casa de família carente, mas com vista magnífica de Toujene,
dos vales abaixo e das montanhas acima, encerrou a exploração daquela adorável
cidadezinha berbere do sul da Tunísia, próxima à fronteira da Líbia.
Na volta, percorremos as montanhas pelas mesmas
estradas da ida, lentamente, permitindo a visão de despedida de Toujene, antes
da última curva fechada. E, ao anoitecer, nos dirigimos ao hotel nos arredores
de Matmata, onde também ali, os moradores, antes escondidos nas sombras
internas das casas, mostravam as caras em espaços externos e coletivos ao cair
do sol.
continua...
Eu não resistiria a compra do tapete...risos, mas não comeria dromedário, de modo algum! Fiquei curiosa com a harissa, deve ser como a nossa maionese, imagino eu. Obrigada, fico realmente feliz em ler teus relatos, é como se eu estivesse lá. Sigo.Abraços.
ResponderExcluirOi Ivete, obrigado pelos comentários!
ResponderExcluirEntendi o que quis dizer. Porém, o gosto da carne de dromedário é infinitamente menos "salgado" que os preços dos tapetes, sobretudo dos deslumbrantes de seda. Nem me lembro dos números. Eram astronômicos e doeram só de ouvi-los rsss.
De qualquer maneira, você iria se deliciar com as paisagens e a cultura do povo tunisiano, sempre simpático e acolhedor.
Comente sempre!