quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Tunísia e Marrocos (parte 2/7)

...continuação
Nas imediações da vila de Mides, nos deparamos com garganta chocante, profunda, íngreme, estreita, em curva. O acidente geográfico dividia a Tunísia e a Argélia, embora a fronteira oficial ficasse poucos quilômetros acima. Nada de água no fundo da garganta, apenas vestígios vegetais de eventuais fios de águas pluviais.
Voltamos à cidadezinha de Tamerza para almoçar comida caseira. Verduras cozidas e temperos sobre pão árabe, sopa de abóbora com harissa, salada com brik e dedos-de-fátima, cordeiro ensopado e assado no forno acompanhado de pimentão, legumes, batatas e cuscuz de trigo. Suco de limão com hortelã e muita água regaram o almoço monumental que teve como mesa, claro, mais pães, o creme da harissa, a pasta de berinjela, azeitonas.
Retornamos montanha abaixo. Já na planície, abandonamos o asfalto, cruzando as areias salinizadas do imenso lago ressecado, entre sobes e desces das dunas. Ao redor, o deserto arenoso e as montanhas de cor ocre. Nada mais.
Havia um bar tosco no meio do nada. No topo da colina ao lado contemplei o deserto sem fim numa visão de trezentos e sessenta graus. Paisagem monocromática, clara, infinita, com direito a miragens na linha do horizonte que simulavam ilhas flutuando sobre o oceano inexistente. Não adiantava esfregar os olhos, relaxar e olhar novamente. As ilhas e o mar estavam lá. Enlouquecedor se, em caso de estar perdido, eu necessitasse dessas referências para me orientar.
Quilômetros adiante, o deserto mais clássico, com dunas de areia a se perderem no horizonte. Pai e filho se aproximaram de moto para pedir dinheiro em troca de foto com uma espécie de raposa no colo do menino de menos de dez anos de idade. O motorista esbravejou contra o comportamento do pai que, em vez de levar o garoto à escola, o sujeitava a mendigar. O pai fingiu que não ouviu e logo se deitou para cochilar. O filho assustado se afastou sem entender nada. Provavelmente fariam o mesmo assim que passasse outro visitante por ali.
Ao final do trecho desértico, a cidadezinha de Nafta, onde paramos para recompor os líquidos do corpo.
A música ambiente do hotel de Tozeur, reproduzidas nas áreas comuns, primavam pelo arrojo, pela vanguarda, pelo experimental. A seleção era a mesma tocada nos hotéis das estações de águas medicinais do Brasil, como Águas de Lindoia, durante a década de 1960. O mesmo repertório previsível, os mesmos arranjos sonolentos, a mesma ausência de vibração. E a Tunísia conta com música árabe de primeiríssima qualidade, rica em melodias, arranjos, instrumentos, intérpretes únicos.
O grupo de estrangeiros que se comunicavam com ya, ya lá estava durante o jantar, trocando um festival de ya, ya entre si.
De manhã a charrete nos levou ao oásis de Tozeur, contendo centenas de milhares de tamareiras. No museu das tâmaras, painéis explicavam a origem, tipos, cultivos, usos, processos de beneficiamento da fruta. Do lado de fora, as tamareiras, a macho que poliniza, a fêmea que fornece os frutos em cachos no alto das palmeiras. Sob a sombra delas, árvores frutíferas, entre outras, compunham três níveis principais de vegetação do ecossistema.
Experimentei diversas geleias, xaropes e cremes, fabricados a partir dos inúmeros tipos de tâmara na pequena fábrica ao lado. E todos continuavam reclamando do movimento quase inexistente de turistas em plena primavera tunisiana, ensolarada e florida.
Saímos caminhando rumo à medina de Tozeur a qual, ao contrário das outras visitadas, mantinha o bucolismo e o uso quase exclusivamente residencial havia mais de setecentos anos. Comércio, somente nas entradas e saídas. Ruelas, passagens em arco preenchidas de tronco de tamareira. Casas e muros revestidos de tijolos de cor ocre e dispostos inventiva e artisticamente. Famílias, mulheres árabes vestidas a rigor, cobertas da cabeça aos pés, bicicletas, motos e, felizmente, nada de carros ou afins. Silêncio e tranquilidade pelos becos. Os moradores de Tozeur se cumprimentavam nas ruas, para uma prosa rápida, se sentar para um café, entabular conversas mais longas e substanciosas.
Como não poderia faltar em país de comerciantes, um dono de loja me convidou a entrar para conferir os tipos de tapetes, fabricados a partir de lã de carneiro, de dromedário, de cashmere, de seda. Enquanto os modelos iam sendo estendidos sem dó nem piedade pelo piso, os vendedores soltavam a lábia para tentar me convencer da qualidade, da exclusividade, da garantia do produto pelo Estado, dos melhores preços, especialmente para mim, que me tornava amigo íntimo e, portanto, receberia tratamento e preços diferenciados. Eu não cabia de tanta lisonja. Vi, apreciei, conversei, sorri, ri, tomei chá, perguntei preços desse e daquele tapete, agradeci entusiasticamente meus novos e chegados amigos. E saí da loja sem gastar um tostão. Mas que os absurdamente caros tapetes de seda, que mudavam de cores e tons ao movimento, belíssimos e incrivelmente macios, me fizeram babar de vontade, isso é verdade.
Escolhemos local simples e barato para comer brik de ovos e atum, grelhado de peru com salada, batatas e macarrão ao molho, acompanhados das onipresentes pastas apimentadas com o condimento harissa e a montanha de pães.
Saímos pela manhã cruzando toda a extensão do oásis de Tozeur, em direção ao gigantesco lago salgado de El Jerid, cortado ao meio pela rodovia e tendo as montanhas ao fundo.
Da mesma maneira que os ambientes lacustres existentes nas fronteiras da Bolívia com o Chile e com a Argentina havia ali alga avermelhada que tingia a cor das águas do lago, e as penas dos flamingos que dela se alimentavam, de coloração rosada a avermelhada. Pouquíssima água corria ao lado de cristalizações esparsas e irregulares de grãos de sal.
Cafés e bares isolados surgiam na beira da estrada. Num deles, indiferentes à nossa presença, quatro homens de turbantes claros bebiam chá e jogavam dominó. Para o banheiro afastado precisei caminhar sobre as camadas salgadas e enfrentar o cubículo de cimento em condições de higiene, digamos, preocupantes.
Mais adiante o lago evoluía para deserto de areia com tufos de vegetação rasteira reminiscentes do inverno úmido.
Cruzamos as cidadezinhas de Kriz, Fatnassa, Souk Lahad, Tombar, Kebili, antes de alcançarmos Douz, cidade cuja denominação em francês sepultou o nome original em árabe.
Circulei pela feira-livre da cidade, cada vez mais fascinado pelo tamanho e pela beleza dos morangos vermelho-escuros. Homens e mulheres vestidos a caráter caminhavam ou se sentavam para conversar e tomar café com os amigos. Notei europeus que para ali se mudaram em busca de qualidade de vida e menos impostos. Viviam de rendas ignoradas. E, vale salientar, nenhum deles era discriminado, perseguido, preso ou deportado como acontece com os tunisianos na Europa.
Almoçamos em local deliciosamente decorado e integrado ao oásis vizinho. Escolhemos mesa sob as tamareiras e perto de pavão coloridíssimo e exibido que desfilava por ali. A sequência de pratos começou com pequena salada com creme de, adivinhem, harissa. Seguiu com carne de dromedário com legumes e batatas, prato previamente encomendado. O demorado processo introduzia a carne do dromedário, os legumes e os temperos, todos acondicionados em vasilhas de cerâmica, em forno cilíndrico, vertical, profundo, sob o solo. Eram fechados e lacrados com argila. Depois assados durante mais de quatro horas. Tudo aquecido a carvão. Nada de gás ou eletricidade. E assistimos ao ritual da abertura do forno, de onde brotou o prato ensopado e perfumado. Ajudado pela cesta de pães, devorei tudo e não deixei pedra sobre pedra. Hidratei com a boa e velha água, muita água. Chifre-de-gazela, um dos milhares de doces de tâmara, adoçou a refeição às portas do deserto do Saara. Para encerrar com chave-de-ouro, chá com tomilho.
Retomamos a estrada, entrando de vez no Saara, cruzando vastidões infinitas de areia, rochas, gramíneas de primavera que desapareceriam antes do verão. Rebanhos esparsos de ovelhas, cabras, dromedários. Acampamentos de nômades no meio do nada. Uma refinaria de gás e outra de petróleo, ambas pequenas, mas cercadas de segurança completa, apareceram em entroncamentos rodoviários.
Um carroceiro nômade pediu ajuda para ajeitar o pneu furado da carroça. Até paramos, mas nada poderíamos fazer. Desconsolado, se despediu e nos viu desaparecer no horizonte.
Antes de escurecer entramos no acampamento situado ao lado do oásis. A imensa área se compunha de restaurante, bar, sala de banhos e massagens turcas, piscina, entre outros itens. As tendas cobertas de lona plástica, dispostas sob as tamareiras, ofereciam banheiro privativo, água encanada e quente, ar condicionado, luz elétrica durante as vinte e quatro horas, camas de casal, saleta com mesa e cadeiras. O barulhento gerador a diesel poluía o ar e os ouvidos.
Mergulhamos de cabeça nas dunas do Saara sob o sol do fim da tarde. Entre subidas e descidas, através de caminhos marcados ou de outros feitos na hora, atingimos as ruínas da fortaleza romana erguida havia milhares de anos. Ninguém por ali. Silêncio total. No portal, vestígios de frases romanas relembravam a história.
O jantar se compôs de sopa de grãos com tomates e a harissa, salada de folhas, brik, carneiro assado com legumes, batatas e pimenta violentíssima. Para neutralizar o incêndio dentro da boca, tâmaras frescas e tâmaras conservadas na manteiga.
O frio do deserto baixou com tudo durante a madrugada. A colcha grossa espantou o ar gelado que entrava pelos orifícios da lona e pelos nós da “porta”. Um jumento nervoso relinchava a todo instante.
Depois do café da manhã circulei fora e dei de frente com o amontoado de “acampamentos turísticos”, lado a lado, mais de dez deles, transformando o oásis num ponto de concentração alienígena. Não fossem as circunstâncias desfavoráveis ao turismo da Tunísia ali estaria entupido de visitantes. E junto com a horda de estrangeiros, a indústria do turismo oferecia, ao redor dos acampamentos, bares badalados, artistas de ocasião, o comércio ambulante vendendo de tudo e de qualidade duvidosa, as frotas de quadriciclos, os dromedários para passeio, eventuais aproveitadores.
Deixamos aquilo que não se decidiu entre hotel e acampamento. O ziguezaguear da estradinha marcou a passagem do deserto arenoso e aplainado para deserto rochoso e montanhoso, cortado por vales menos inférteis e parcamente cultivados, nas imediações de Bir Soltane.
Chegamos a Tamezret, cidadezinha de maioria berbere, encantadora, encravada no alto da colina rochosa, erguida inicialmente no século XI.
Primeiramente a contemplei de longe, enquanto saboreava café aromatizado com hortelã e observava a paisagem árida e acidentada do entorno. Depois, perambulei a pé, sem pressa, pelos becos, escadarias, ruelas sinuosas, ladeiras, em meio ao silêncio absoluto da manhã. A maioria dos moradores se deslocara ao campo para obter o pouco para comer ou comercializar. Apreciar calmamente o casario de pedra não poderia ter sido melhor naquele momento da viagem. Me revigorou. Portas em arco, muito baixas, de madeira grossa pintada de azul, contrastando com o branco caiado das paredes e muros. A mesquita também branca com o minarete de base quadrada. Subidas, descidas, um ou outro morador vestido à moda tradicional berbere. A vista panorâmica dos vales e colinas ao redor sobre o solo rochoso, árido, ocre.
Seguimos adiante cortando relevo acidentado do deserto rochoso. Próximas à rodovia, moradias encravadas nas encostas, cavadas montanha adentro, compondo o conjunto das famosas casas dos trogloditas de Matmata. E ali, ao contrário da Capadócia turca, ainda era habitada por famílias que viviam o dia a dia da Tunísia rural de maneira simples, sem ambições maiores.
Entramos em uma delas. O portal em arco, estreito e baixo, escavado na rocha, nos levava ao pátio central, do qual portas abriam para a cozinha, quartos, dispensa para mantimentos, tudo em ambiente naturalmente resfriado no verão e morno no inverno. Dentro dos cômodos, o mínimo necessário para a sobrevivência, sem supérfluos, sem sujeira aparente. A moradora interrompeu a moagem de cevada usando pedras pequenas e antigas, em processo totalmente manual, para nos preparar e servir chá com hortelã em minúsculos copos de vidro transparente.
O sol, quando não neutralizado pelas raras nuvens finas ou pela névoa seca, queimava e massacrava. Na sombra, a sensação térmica era fresca e agradável, pelo menos no meio da primavera. O ar extremamente seco incomodava levemente as vias respiratórias e vez ou outra entupia uma das narinas.
O trajeto rodoviário entre Matmata e Toujene empolgou pelos sobes e desces, curvas fechadas, precipícios, a vista espetacular do alto das montanhas, os vales abaixo, os pequenos vilarejos, as montanhas mais ao longe, as encostas pedregosas e áridas, a rara vegetação e, mais ao fundo, as planícies da Líbia, país em fase de destruição social, saques e pilhagens pelas corporações capitalistas da Europa e daquele regime terrorista ao norte do México.
A luz do fim da tarde valorizava o ocre das rochas e areia das encostas, as irregularidades do relevo, as construções encravadas na montanha. E, serpenteando pela estradinha, chegamos ao vilarejo berbere de Toujene, erguido inicialmente no século XI. Dotada de inúmeras construções de pedra, em ruínas, abandonadas, becos e vielas inclinadas, ladeiras e escadarias, Toujene me conquistou logo de cara. Os berberes desenvolveram relações com a natureza, muitas das quais mantidas até os dias de hoje, entre elas buscar água no poço comunitário, único para toda a cidadezinha, em enormes galões sustentados nas costas ou carregados por jumentos.
O guia se impressionou ao ouvir a anciã local se espantar com estrangeiros vindos de longe, ou, nas palavras dela, vindo de trás da Líbia, visitarem e gostarem daquele vilarejo velho, feio, sem graça. Ele não cansava de repetir a história, sempre se indignando com a ignorância da idosa. Certamente ele não captara a singeleza daquelas impressões. Ao sairmos de nossas culturas e paisagens, buscamos as diferenças, nos surpreendemos com as diferenças, admiramos as diferenças. E, se essas distintas culturas nos visitassem, também se surpreenderiam e admirariam. A curiosidade, a perplexidade, o fascínio diante do outro, diante da diferença, faz parte dos seres humanos. Daí o encanto que as viagens profundas exercem sobre os viajantes. E daí a preocupação diante da padronização cultural do mundo, cada vez mais acelerada e imposta pelas corporações dos países dominantes.
Entre conversas preguiçosas, o chá de hortelã natural sobre a laje de casa de família carente, mas com vista magnífica de Toujene, dos vales abaixo e das montanhas acima, encerrou a exploração daquela adorável cidadezinha berbere do sul da Tunísia, próxima à fronteira da Líbia.
Na volta, percorremos as montanhas pelas mesmas estradas da ida, lentamente, permitindo a visão de despedida de Toujene, antes da última curva fechada. E, ao anoitecer, nos dirigimos ao hotel nos arredores de Matmata, onde também ali, os moradores, antes escondidos nas sombras internas das casas, mostravam as caras em espaços externos e coletivos ao cair do sol.
continua...

2 comentários:

  1. Eu não resistiria a compra do tapete...risos, mas não comeria dromedário, de modo algum! Fiquei curiosa com a harissa, deve ser como a nossa maionese, imagino eu. Obrigada, fico realmente feliz em ler teus relatos, é como se eu estivesse lá. Sigo.Abraços.

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  2. Oi Ivete, obrigado pelos comentários!
    Entendi o que quis dizer. Porém, o gosto da carne de dromedário é infinitamente menos "salgado" que os preços dos tapetes, sobretudo dos deslumbrantes de seda. Nem me lembro dos números. Eram astronômicos e doeram só de ouvi-los rsss.
    De qualquer maneira, você iria se deliciar com as paisagens e a cultura do povo tunisiano, sempre simpático e acolhedor.
    Comente sempre!

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