segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 7/12)

...continuação
Vestindo roupas demasiadamente sociais, calças, cinto, camisa por dentro das calças, sapatos e meias, os indianos pós-adolescentes perambulavam pela praia observando as turistas ocidentais de biquínis ou maiôs. Ao se aproximarem, diminuíam o passo e as olhavam de queixo caído. Raros os indianos que tiravam as roupas sociais, ficavam à vontade ou entravam no mar. As indianas, dentro de coloridos e insinuantes saris, apenas permaneciam sentadas na areia e, de longe, apreciavam a paisagem e a diversão dos homens da família. Os olhares revelavam sonhos e desejos não permitidos pela opressão machista da sociedade indiana.
Visita ao conjunto de templos mais ao sul da cidade. Cercado e com cobrança de ingressos, o complexo interessava pelo todo, perdendo feio nos detalhes para os templos da beira da praia. Os becos de Mahabalipuram se decoravam para o Pongal. Os moradores desenhavam figuras coloridas nas calçadas e ruas de areia, geralmente em forma de plantas e flores.
A cada dia o céu ficava mais limpo e a cor do mar se acentuava em tons azulados ou esverdeados. A correnteza diminuía e as águas se tornavam mais límpidas. Mas, na extensa praia de tombo oferecendo sequência de ondas ininterruptas e mar agitado, era entrar, tirar o suor, balançar para cá e para lá, voltar para a areia. Eram ali todos os finais da tarde. A luz do entardecer valorizava a beira do mar, becos, casinhas de pescadores, grutas, templos.

Depois de meses pela Índia, com olhos anestesiados, as coloridas roupas femininas já não chamavam tanto a atenção. Não que os saris, punjabis e sarongues não merecessem elogios. Apenas tinham perdido o impacto da novidade. Os indianos do sul chamavam mais a atenção e se diferenciavam dos colegas mais ao norte. A maioria vestia sarongues, estampados ou não, soltos até os tornozelos ou recolhidos acima dos joelhos para espantar o calor. Os tons da pele, no entanto, em ambos os sexos, evoluíam para o escuro.
A cidade amanheceu para o dia principal do Pongal. O comércio estava quase todo fechado. Moradores saíam às ruas para festejar. Não faltavam bêbados cambaleantes. Policiais observavam o movimento. Crianças entravam nos restaurantes turísticos e, com o cofrinho nas mãos, desejavam Feliz Pongal. E pediam dinheiro, por tradição ou por mendicância vinda do turismo.
Pela praia ao entardecer, a fim das despedidas da areia e do mar. Adolescentes e pós-adolescentes indianos, levemente bêbados, nos cercaram. Ela entrou no mar. Não desgrudavam os olhos na expectativa de a verem sair da água de maiô. Mudei de lugar na areia e ela fez o mesmo nadando. Não adiantou. Continuavam seguindo. Ao tentar espantá-los, me perguntavam o nome. O turismo predatório, aliado à invasão do lixo cultural ocidental, combinado com a sociedade indiana machista e repressora, provocava cenas absurdas como aquelas. Mas não com os mais velhos, mais simples, ainda imunes às influências do exterior, guardando mais simpatia, hospitalidade, tolerância.
Cedo o ônibus logo entrou na doce cidade de Chenai, o paraíso na Terra. Que alegria estar em cidade tão bela e acolhedora! Mas finalmente uma sorveteria, tão comum na Índia central, raras por ali. Foram duas enormes taças de três bolas, várias caldas, castanhas. Ainda sobrou espaço para a coalhada batida com sorvete de café. Aqueles sorvetes fizeram mudar o mundo.
Noite para comer masala dosa no bar instalado em sobrado horrível, cheio, desorganizado, esfumaçado, com atendimento odioso. Mas, quando chegava o soberbo masala dosa, nenhum mal ou problema existia, apenas prazeres diante da naquela delícia.
O trem procedente de cidades mais ao sul atrasou. O compartimento que continha os assentos e as camas reservadas estava entulhado de malas, sacolas, comida, bugigangas, pertencentes à família de quatro indianos de Calcutá. Como uma das camas era no nível superior, a usávamos para largar as mochilas durante o dia. Quando comia, a família se espalhava, não sobrando espaço para ninguém. Mas surgiram boas conversas durante o trajeto.
À noite o jeito foi dividir o exíguo espaço das camas com as grandes mochilas. Não conseguimos relaxar, nem pregar os olhos. E, na cama acima, um dos bengaleses roncava feito trator na subida com o afogador entupido.
As mais de vinte e quatro horas do trajeto cruzaram o nordeste de Tamil Nadu, Andhra Pradesh de sul a norte, o sudeste de Orissa. Além dos bons papos com os demais passageiros, daquele e de outros compartimentos, valeu o variado serviço de comida vendida nos vagões pelos ambulantes, aparecendo a todo instante com algo para comer, beliscar, beber. O cardápio incluía thalis completos, samosas, bolinhos, frituras em geral, pães, doces, sorvetes, frutas variadas, inclusive goiabas vermelhas e gordas salpicadas de pimenta vermelha.

Os banheiros nas extremidades dos vagões se separavam entre os de estilo indiano e os de estilo ocidental. Os primeiros não possuíam vaso sanitário, apenas latrina pouco acima do nível do chão. Mais higiênicos ao impedirem contatos físicos e mais convenientes nas eventuais prisões de ventre, foram os eleitos em todos os trens na Índia.
Desembarque do trem lotado em Khurda Road, estação de conexão ferroviária rodeada de poucas e esparsas casinhas.
Os moradores do vilarejo aos poucos se aproximaram da estação ainda vazia. E, tomados de infinita curiosidade, se aproximavam mais e mais. Revelavam expressões de espanto e perplexidade diante de seres tão incomuns. Os mais corajosos chegavam bem perto e olhavam estupefatos. Não acreditavam no que viam. Dois estrangeiros despenteados, sujos, vestidos como malucos, com bagagem esquisita nas costas. Adolescentes na maioria se arrumaram e se pentearam antes de se aproximar. Não assimilavam um ser do sexo feminino, vestido de camiseta, calça esverdeada, com cabelos pretos e cacheados, um enorme saco junto ao corpo. Um deles vestia camisa e calça folgadas, ambas sociais e coloridas, sandália de dedo e, apesar do calor, cachecol verde limão cuidadosamente enlaçado no pescoço. Às vezes puxava o pente do bolso traseiro da calça e ajeitava as franjas dos cabelos pretos e lisos. Escolheu postura e olhar de ator de cinema indiano e se posicionou na frente dela. A menos de um metro de distância, cruzou os braços, se compenetrou e examinou cada centímetro. Os olhos dele percorriam o corpo dela de baixo para cima sem deixar nada despercebido. Quanto mais a olhava e a analisava, menos ele compreendia. Não pronunciou nenhuma palavra. Depois de tentar em vão explicar o inexplicável, se retirou cheio de interrogações. Outros se seguiram nas infrutíferas investigações e partiam intrigados de volta às casas.
Horas depois o trem de passageiros chegou, lotado. E partiu lotadíssimo. Fomos empurrados no canto próximo à porta do vagão e esmagados pelos passageiros que entravam ou saíam. E todos nos olhavam como se fôssemos extraterrestres.
Desembarque em Puri, amassados, cansados, com as pernas bambas, braços doloridos. Aceitamos o primeiro hotel, pequeno e razoável. Era Orissa, mais um estado indiano com língua, escrita e culturas diferenciadas. Nocauteados pelos dois desgastantes trajetos ferroviários, jantar e cama cedo. Camas confortáveis, poucos mosquitos, temperatura agradável, contribuíram para o sono ininterrupto.
Após café da manhã reforçado, caminhada ao centro da cidade nas imediações do templo hindu de Jagarnath. Como de praxe, não permitiam a entrada de não hindus. Ao redor, o febril movimento dos fiéis, religiosos, homens sagrados, peregrinos, mendigos, vendedores em geral, vacas, búfalos. O colorido e a vida pulsante impressionavam. Os becos nas proximidades do templo, sem turistas, tranquilos, se ocupavam por gente simples e gentil.

De micro-ônibus ao vilarejo de Konark. Deslumbrante o complexo do templo do Sol, entre diversas construções distribuídas nos gramados. Seduzia pela grandeza e imponência, apesar de pontos em ruínas e mal conservados. Milhares de figuras finamente trabalhadas nas paredes de rocha mostravam cenas eróticas, danças, poses sensuais. Em certos momentos parecia que não daria mais para suportar visitas a templos. Mas, ao deparar com construções imperdíveis, a emoção brotava ao lado do desejo de contemplar por mais tempo. Assim era com Konark, tombado formalmente pela UNESCO. Mas a entidade não contribuía com dinheiro ou assistência. Era uma placa e nada mais.
Ao contrário de Tamil Nadu, terra de gorduchos e barrigudos, os habitantes de Orissa apresentavam corpos magros e franzinos, ainda de tez escura, mas pequenos e esqueléticos.
Puri reservava atmosfera calma, com pouco movimento nas imediações da praia. Pelo labirinto de cabanas de palha montadas sobre a areia da vila de pescadores, poços comunitários, peixes espalhados para secagem, gente colorida e alegre chamando e saudando. As crianças irritavam pelo assédio, pedindo dinheiro, caneta, fotos. As principais atividades ocorriam fora das cabanas, em espaços comuns, tornando constante o contato entre os moradores. O passeio fascinava do início ao fim, entre cenas emocionantes, marcantes.
À beira-mar, o belo e o horror se misturavam. Homens teciam, consertavam redes de pesca, ou, junto a mulheres e crianças, as puxavam do mar, num forte colorido de roupas. Como contraponto, merda, mas muita merda mesmo, e lixo amontoado, se estendiam ao longo da linha da maré. Cemitérios de peixes se espalhavam na areia, ao lado de carcaças de tubarões, enguias que mais pareciam cobras, caranguejo com jeito de aranhas. Sem falar nas águas-vivas e cachorros mortos às dezenas largados na beira da água.
Resolvemos mudar a disposição do quarto hotel. As lâmpadas do banheiro foram para o quarto, que, sem o lustre, ficou mais claro e agradável. Giramos as duas camas em noventa graus. Diante do pouco espaço interno, a operação foi difícil e barulhenta. Caíram pedaços da armação do mosquiteiro que estavam presas à janela pelo varal de roupas improvisado. Quase quebrei o vidro da janela no momento em que ajeitava as ripas de madeira. As mudanças trouxeram mais claridade e espaço livre.
A praia de Puri se dividia etnicamente em duas partes. Os indianos permaneciam ao sul, os estrangeiros e ocidentais se postavam ao norte. A maioria dos indianos se compunha de turistas provenientes de Calcutá. As mulheres se vestiam de sari, da cabeça aos pés, sob o sol, em plena areia da praia. Às vezes levantavam poucos centímetros da roupa e molhavam os pés. Raras as que entravam no mar e jamais tiravam o sari. Os homens que se banhavam usavam apenas calções, sem as camisas. Não se cansavam de tirar fotos, sempre em grupos, fazendo poses de cinema.
À noite esfriava suavemente. O céu amanheceu azul e sem nuvens. Mas, calor mesmo, só perto do meio-dia. Caminhadas sem compromisso pela região do templo Jagarnath, pelos becos, em meio ao dia a dia das pessoas. Leituras durante boa parte da tarde na sacada do quarto do hotel. Preguiça bem-vinda. Puri não contava com praias lindas. Mas o conjunto agradava. A sensação de rotina, vez ou outra, caía bem. E sempre vinha mais um dia de estadia em Puri.
Nos diversos restaurantes experimentados a comida nunca passou do comível. Nenhum lugar muito bom ou muito ruim. O café da manhã tornou-se a vedete do dia. Saboroso demais, em especial a coalhada caseira. Os lugares favoritos daquele lugar cativante mereciam incontáveis repetições. Vila de pescadores, becos ao redor do templo Jagarnath, praia, recepção dos barcos vindos do mar seguidos de leilões dos peixes frescos, sol, pôr-do-sol.
Viagem tranquila e rápida em vagão de segunda classe no trem para a capital de Orissa, Bhubaneswar. Para não perder o costume, o mapa da cidade no tal guia estrangeiro reservava erros grosseiros e fez dar voltas desnecessárias até o ponto desejado.

Comemos thali insípido em ambiente pesado. Os thalis variavam de estado para estado. Aquele fora o thali típico de Gujarat, adocicado, provocando saudades dos saborosos thalis de Tamil Nadu. Barraquinhas vendiam pan, um coquetel de pós, sementes, cremes, envoltos em folha de bethel. Feito para mascar, tornava-se mania entre homens e mulheres de Orissa. Mascavam e cuspiam líquidos, deixando o calçamento das ruas cheias de manchas coloridas, os lábios e dentes avermelhados.
Orissa contava com comunidades isoladas da chamada civilização, mantendo estilos de vida intocados há milhares de anos. Depois de experiências mal sucedidas com o turismo, o governo indiano suspendeu a visitação àquelas áreas.
À noite, minúsculos pontos, em geral nas calçadas, serviam pratos da cozinha chinesa, como sopas substanciosas, rolinhos primavera, chowmein. Só funcionavam no início da noite e não ofereciam lugares para sentar. Era de pé ou sentados nas guias das calçadas ao lado dos fregueses.
 Longa distância separava o centro da região dos templos da capital. Pelo caminho, multidões e congestionamentos nas ruas e avenidas. Bhubaneswar revelava o charme durante a noite. A tênue iluminação pública e do comércio proporcionava atmosfera instigante. Miniaturas de lojinhas vendiam doces, bebidas, sorvetes, pratos rápidos da culinária chinesa. E nas ruazinhas transversais, incrivelmente fazia silêncio, ou pouco barulho, fornecendo à cidade peculiaridade especial e cativante. Mas somente à noite.
Desta vez foi moleza dormir no trem noturno a Varanasi. O compartimento jamais lotou. Dava para relaxar, esticar, escolher posições, e até deitar antes do horário estipulado. O serviço de bordo não chegava aos pés das outras linhas, mas abasteceu o estômago. Adormeci. Desembarque em Varanasi, no estado de Uthar Pradesh, no meio da manhã.
continua...

2 comentários:

  1. Viajante Sustentável, seus relatos riquíssimos em detalhes, desperta cada vez mais minha curiosidade, me leva a todos os lugares que descreve, cada um com suas características, pessoas alegres ou taciturnas, curiosas, crianças mendigando,arte, crença,culinária,ou seja, um turismo cultural.Citou entre tantos, rolinhos de primavera, que por coincidência adoro-os.As descrições de tuas viagens, são meu entretenimento no final de semana.Obrigada amigo! Continuo na carona...risos.

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  2. Ivete, eu é que me sinto honrado por ter uma leitora de tamanho gabarito como o seu. O que comenta só me traz mais confiança e incentivo a relatar mais e mais.
    Mas, sem dúvidas, a Índia, o país mais fascinante, depois do Brasil obviamente, pelo qual viajei, sempre me impulsionou a refletir em meio àquele delicioso choque cultural.
    Valeu!

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