terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 4/12)

...continuação
Do ônibus de linha regular a paisagem rompeu a monotonia das planícies perto da chegada em Monte Abu quando engrenou na subida íngreme da serra pedregosa. A cidade era destino de casais indianos em lua de mel, fins de semana de famílias, passeios convencionais. O hotel caro, mesmo depois de pechinchado, era de frente para o lago, sem banheiro privativo, mas com baratas.
Monte Abu reservava calma e tranquilidade, sobretudo nas margens do lago. Menos pedintes. Mais verde. E valeu a visita ao complexo de templos jainistas Deewara, situado na encosta do morro. Impressionavam os detalhes dos trabalhos em mármore nas estátuas, portas, janelas, colunas. Parecia que os antigos utilizaram materiais plásticos e maleáveis, moldaram as formas e endureceram depois. Mas a cidade em si não atraía. As construções urbanas, os acabamentos, as decorações externas e internas, incomodavam pelo mau gosto. Assim como na cidade vietnamita de Ha Long, Monte Abu abusava de cores e brilhos. Os indianos arrumados vestiam calças sociais com bocas de sino, camisas vivamente estampadas de mangas compridas. Os penteados e bigodes eram aparados no esquadro. Muitos passeavam durante a noite na beira do lago com terno e gravata.
Durante os momentos de relaxamento no quarto do hotel, analisamos no mapa da Índia as próximas paradas. Cara e excessivamente turística, Goa estaria em plenos festejos do natal, altíssima temporada. Invadida e ocupada por portugueses durante séculos, Goa contava com influência cristã e preservava tradições das festas natalinas e de fim de ano. E também possuía a triste fama de abrigar turistas ocidentais em busca de festas intermináveis e previsíveis, regadas à música eletrônica, álcool, drogas e outras maravilhas “bem” indianas. Goa saiu dos planos.
Mais demoras na partida do ônibus a Udaipur. Mais que na hora de voltar ao conforto, segurança e eficiência dos trens. No momento do embarque, um grupo de indianos queria ser fotografado ao nosso lado. Fotografaram o grupo e nós, um casal e nós, somente nós. Em Monte Abu nos tornamos a sensação dos indianos arrumadinhos.
Em Udaipur, a pé até o hotel já conhecido. Dezembro era o mês dos casamentos na Índia. Muita gente, roupas coloridas, música alta, noivos a cavalo, danças, alegria, pelo menos dos parentes e convidados. À noite, desfiles fortemente iluminados. Logo atrás do cortejo, um veículo transportava o gerador de eletricidade, de onde saíam vários e longos fios que alcançavam pesadas luminárias carregadas por peões ao redor dos convidados. Enquanto o centro festejava, gritava, cantava, dançava, os pobres coitados sustentavam pesadas lâmpadas nas mãos. E em movimento pelas ruas.
Udaipur reservava becos, lagos, casas antigas, palácios, gente e cultura fascinantes. E a despedida da cidade, em grande estilo, foi jantando a legítima comida indiana no restaurante de sempre. Comida boa e farta. O incêndio da pimenta se amenizou com refrigerantes de manga.
Embarque em ônibus noturno, velho e lotado. Mais nenhum ocidental sentado. O vídeo do ônibus no último volume massacrou durante a primeira metade do percurso. Depois o motorista colocou música em volume suportável. Nas demais paradas, já no estado de Gujarat, viramos a principal atração. Os indianos, curiosos e espantados, encaravam como se fôssemos alienígenas. Vez ou outra, um mais atirado se aproximava e puxava diálogo curto. As placas, cartazes, avisos, orientações, jornais, somente em gujarati, a língua estadual.
Na chegada a Rajkot, não foi fácil comunicar com os vendedores de passagens. Ninguém falava ou entendia inglês. Naquele itinerário os trens estavam fora de questão. Apesar de a cidade ser importante ponto de conexão do estado, não havia terminal unificado de transporte rodoviário. Nenhum ônibus seguia para Bhuj nas proximidades. Um garoto desfez o impasse. Arranjou riquixá e indicou ao condutor o local do ônibus desejado.
Passagens compradas, mochilas arriadas, tempo de espera. Pequenos ratos brincavam para lá e para cá no meio das mochilas. Não morderam, não roeram, nem defecaram nelas. O embarque envolvia riquixá, incluído no preço da passagem, até o ônibus estacionado mais adiante. O riquixá quase transbordou de tanto peso e volume. Eram seis passageiros, malas, mochilas.
O motorista do ônibus detonou o toca-fitas no máximo volume. Em todos os lugares, eram sempre duas ou três músicas pertencentes à trilha sonora do filme Raja Hindustani, sucesso absoluto nas telas e fora delas. Não que fossem ruins, mas depois da centésima vez, uma seguida da outra, começava a torturar.

Desembarque em Bhuj depois de vinte horas de viagem desde Udaipur, na base de bolachas, banana e água. As mochilas nas costas, na busca de hotéis pelos becos comerciais, espantaram dos moradores. Dois turistas sujos, cansados e famintos, com enormes e pesadas cargas nas costas, caminhando no meio do povo, tornaram a atração daquele fim de tarde. Não foi fácil encontrar hotel. Os nomes na frente dos estabelecimentos, somente em gujarati. O hotel mais barato da viagem não podia ser grande coisa, perto da avenida principal da cidade, por onde passavam caminhões pesados, ônibus, muita gente. A janela do quarto dava para os corredores internos. A ventilação fraca tornava o ambiente frio e úmido. Não havia pia ou chuveiro no banheiro do quarto. Banho somente frio e sob a torneira a um metro do chão, entre malabarismos para enxaguar. Mas tudo se compensava em lugar fora da rota turística convencional.
A fadiga batia forte. Ao atravessar a empoeirada e perigosa avenida dos caminhões, a areia acumulada nas ruas e a poeira em suspensão impregnavam olhos e pulmões. Forramos o estômago com comida razoável. A areia, o barulho do trânsito, os olhares esbugalhados dos moradores, o sono incontornável, nos levou de volta ao hotel. Desabamos na cama e adormecemos imediatamente.
A primeira imagem Bhuj trazia poluição sonora e do ar, cor acinzentada, trânsito indescritivelmente pesado e caótico. O lago revelava nível baixo das águas e o cenário repelia pela aridez. Até a parte murada da cidade decepcionou. Apenas mais dois turistas ocidentais pelas ruas. Gujarat era um dos estados menos visitados da Índia. Bhuj estava distante, fora de mão, quase na divisa com o Paquistão.
De posse de castanhas, pistache, figos secos, uvas passas, sucos de manga, bastante água, só restava o merecido recolhimento ao escuro quarto do hotel. Um ágil ratinho circulava livremente pelo chão, sob as camas. Após empurrar o bichinho pelo baita espaço que existia debaixo da porta, tapamos a entrada com sacos vazios.
O capítulo referente à Gujarat no guia estrangeiro parecia brincadeira de mau gosto. Havia erros elementares de localizações, preços, omissões. Provavelmente o responsável pelo texto nunca viera ao estado e compilara, sem as devidas confirmações, dados de outras publicações. O café da manhã em local entusiasticamente recomendado naquelas páginas serviu ovo cozido fatiado, cinzento, gelado. Os pães com manteiga também vieram gelados e com consistência de borracha seca. Com a gororoba goela abaixo, rumamos ao bom e costumeiro restaurante, e claro, não indicado no guia.
Visita ao antigo palácio e museu, mal conservados e desprovidos de qualquer interesse, apesar de elogiados nas páginas do guia. O senhor que fornecia informações turísticas, simpático e prestativo, descreveu as pequenas vilas ao redor de Bhuj, ricas em artesanatos variados, peculiares pelos modos de vida intocados há séculos. Mas contavam com acesso para lá de complicado. Segundo ele, no estado havia a língua gujarati, oficial, escrita, usada em documentos, cartas, jornais, e a língua kutch, apenas falada, não contando com escrita correspondente.

Os sacos sob a porta do quarto do hotel não contiveram as investidas do ratinho. Estava no canto da parede no exato instante em que se preparava para fugir por baixo da porta. O quarto, apesar dos pesares, era amplo e silencioso.
Os dois trajetos da partida de Bhuj correram bem em miniônibus. A música em volume ensurdecedor do primeiro quase nos levou à loucura. O segundo, no entanto, ousou na seleção musical em volume suportável, aliviando os tímpanos. Desta vez a conexão na cidade de sempre, Rajkot, não incomodou. Chegada tranquila em Junagadh. Nada das recomendações furadas do guia ocidental. Seguimos a hotel frequentado por indianos, oferecendo quarto amplo, barato, com banheiro no quarto.
As ruas de Junagadh revelavam vida, luz, movimento intenso. Os moradores, mesmo encarando boquiabertos, guardavam simpatia e tomavam a iniciativa de cumprimentar. Ainda mais que no Rajastão, a fraca iluminação dos banheiros em Gujarat reservava lâmpadas de cor verde ou azul escura. Não iluminava quase nada e criava atmosfera de puteiro. O mesmo ocorria nos restaurantes médios e procurados pelos indianos, de longe as melhores opções, servindo comidas autênticas e saborosas.
Seguimos imediatamente à montanha Gir, nos arredores da cidade. A primeira missão seria superar os dez mil degraus da escadaria até o topo, seiscentos metros acima, onde se localizava o complexo de templos hindus e jains. O corte de caminho por ladeira sinuosa diminuiu a subida para “apenas” sete mil degraus.
A dispersão dos templos nas encostas da montanha, a vista para cima e para baixo dos outros templos, das montanhas e da cidade bem abaixo, deslumbrava de todas as maneiras. As construções não contavam com tantos detalhes nas paredes de pedra. O estado de conservação deixava a desejar, havendo construções abandonadas ou fechadas.
Ao contrário da subida, a descida pelos milhares de degraus massacrou os joelhos. Doeram muito, durante dias, obrigando me apoiar para não despencar.
Em barraca de rua entupida de bugigangas pedi chinelo de dedo por similaridade de tamanho do pé. E virei atração da barraca, das outras vizinhas, de todos que passavam pela rua movimentada. Sentei-me na guia da calçada e experimentei alguns modelos. Formou-se um semicírculo de indianos para assistirem a cena. Separei o par desejado, pechinchei no preço, saí com o novo nos pés. Os indianos curiosos ainda permaneceram por um tempo ao lado da barraca, alternando os olhares ao vendedor e a mim que avançava pelo quarteirão.
Éramos muito observados em todos os cantos da cidade. Muitos paravam para analisar em detalhes. Outros riam. A maioria sorria, nos recebia com simpatia, misturada com timidez e curiosidade. Os moradores costumavam beber os tradicionais chás com leite no pires e não nas xícaras. Ajudava a esfriar e a não queimar a língua. A língua inglesa definitivamente não era difundida em Gujarat. Nem mesmo o hindi. Para além da comunicação essencial, nem sempre alcançada, restavam os gestos e sinais.

O sistema ferroviário de Gujarat, além da pequena extensão, também passava por reformas. Novamente a mercê do problemático transporte rodoviário indiano. Nas agências de ônibus na busca por passagens para a cidade de Diu, anunciadas nos cartazes frontais, os vendedores alegavam não haver linhas diretas. Outra agência também com anúncios e nada. O jeito foi adquirir passagens apenas para o primeiro trecho, até Veraval. E os bancos não faziam câmbio com cartões de crédito, também apesar dos avisos afirmarem o contrário.
Enquanto caminhava me apoiando no ombro dela para poupar os joelhos, um senhor de meia idade me bateu nas costas. Raivoso e indignado, ele gritava histérico. Entre tantas expressões irreconhecíveis, proferiu “proibido” em inglês, se referindo ao meu braço no ombro dela. Permaneci apoiado, para não cair. Mas ele se mantinha andando ao lado e esbravejando sem desistir. Continuei até ele reduzir o passo e desaparecer na multidão. E os moradores de Junagadh não se cansavam de nos olhar de todas as maneiras. O ciclista que a apreciava, com o queixo caído, quase atropelou o idoso que atravessava a rua. Em outro ponto da cidade, pelo mesmo motivo, o riquixá, a lambreta e a bicicleta se chocaram levemente.
O que poderia ser percorrido em apenas um ônibus, passou para três até a cidade de Diu. Os veículos indianos, grandes ou pequenos, primavam pelo desconforto, desorganização de horários, de pontos de partida e chegada, falta de segurança. E estavam sempre lotados. Na maioria as bagagens ficavam na cobertura, no corredor, ou no colo mesmo. Durante a espera em Una do terceiro e último ônibus do dia, ainda amontoados na porta de entrada, um adolescente se aproximou e apalpou os seios dela por cima da roupa. E correu imediatamente. Mas não nos portávamos ou nos vestíamos de maneira inadequada ou ofensiva aos costumes locais. Após cruzar de balsa o canal que separava o continente da ilha, o último ônibus nos deixou em Diu, antiga propriedade dos invasores europeus, no caso portugueses.
Em cidade turística na beira do mar, os hotéis, ainda que simples, eram mais caros. A sacada do quarto dava para o canal. Ao fundo, a linha de coqueiros, palmeiras e bananeiras do continente. Os banheiros coletivos do hotel não impediam os olhares curiosos. De alguma maneira, teríamos que conviver e contornar os obstáculos.
A caminhada da volta quase completa ao redor da ilha de Diu ofereceu paz, tranquilidade, silêncio. As paisagens faziam bem aos olhos. O aspecto bucólico valorizava cada trecho percorrido. A maioria das praias reservava recifes ou rochas, afastando a possibilidade de banhos. Com palmeiras plantadas e mar calmo, a praia de Nagoa era a única frequentável. As igrejas brancas, becos estreitos e sinuosos, sobrados antigos, vazios urbanos sem alma viva, faziam de Diu local ideal para parar, descansar, relaxar do ritmo frenético da Índia. Não havia circulação de pessoas pelas ruas. O calçamento, as principais construções, as calçadas, primavam pela higiene e bom estado de conservação. Não se corria o risco, como na maior parte da Índia, de atolar os pés na merda ou desaparecer em buracos imundos. Ainda que mais visitada que Bhuj ou Junagadh, Diu abrigava poucos turistas, especialmente jovens de vinte e poucos anos, do tipo bicho-grilo, autênticos ou não. O consumo de bebidas alcoólicas era liberado escancaradamente, tornando a ilha o paraíso dos bêbados. Mas Diu caíra bem no meio da longa viagem.
Dias de vadiagem pelas praias, campos vazios, becos do centro da cidade, apreciando sem pressa a vista das escarpas na beira do mar. E o camarão ensopado veio ricamente temperado. O proprietário e os filhos arranhavam um pouco de português. Menos do que alegavam e mais do que o esperado.
Sons de músicas e cantorias atravessavam o canal e chegavam aos ouvidos. Ainda no auge da temporada dos casamentos as festas não paravam uma noite sequer. O último dia no paraíso de Diu foi para visitar o forte construído pelos invasores portugueses e assistir ao pôr-do-sol na praia.
Embarque noturno a Ahmedabad em lataria velha que chacoalhava de todos os lados provocando alta barulheira. Não deu para dormir ou descansar.
Então Ahmedabad, a capital de Gujarat, a capital da poluição, do ar e sonora. Andanças sem fim pelas infindáveis avenidas em meio ao caos do trânsito infernal, em meio a veículos leves, pesados e gente, muita gente. Além dos ruídos incessantes e da fumaça, a cidade vibrava, tremia, de tantos ônibus e caminhões. As marginais em São Paulo, num fim de tarde chuvoso de março, poderiam ser consideradas pitorescas e bucólicas se comparados com Ahmedabad naquela manhã de céu azul. Árdua tarefa em Ahmedabad para encontrar banco que fornecesse rúpias. Intervalo para comer alguma coisa somente no meio da tarde. E finalmente à estação ferroviária para descansar, comer mais, esperar o trem.
continua...

4 comentários:

  1. Querida,

    Adorei seu blog. Sou formada em turismo, e acredito que discussões tratadas por profissionais da aréa, são altamente positivas em prol da melhoria do turismo no país.

    Beijo

    Ana Carla Nunes
    www.festasdabahia.com

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  2. Muito obrigado. Fique à vontade para ler os demais relatos de minhas viagens aos interiores do Brasil e a outros países. Comente, indique, sugira. Você será sempre bem-vinda. Beijos!

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  3. Mente, olhos, gosto pela leitura tudo se enrola nessa supreendente mistura cultural. Detalha o bom e o ruim do turismo, como pessoas simpáticas e pessoas desinteressantes...mas acredito que em todo lugar há os dois lados e que vocês souberam conviver muito bem. Indo percorrer mais um trecho...Até.

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  4. Ivete, as sensações vividas foram uma mistura das duas facetas que mencionou.
    A Índia, os indianos, nos provocam uma relação de amor e ódio a todo instante.
    Daí o fascínio que o país e as culturas ali presentes nos exerceram de um jeito ou de outro.
    Abraços!

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