...continuação
Do ônibus de linha regular a paisagem rompeu a monotonia
das planícies perto da chegada em Monte Abu quando engrenou na subida íngreme
da serra pedregosa. A cidade era destino de casais indianos em lua de mel, fins
de semana de famílias, passeios convencionais. O hotel caro, mesmo depois de
pechinchado, era de frente para o lago, sem banheiro privativo, mas com
baratas.
Monte Abu reservava calma e tranquilidade, sobretudo nas
margens do lago. Menos pedintes. Mais verde. E valeu a visita ao complexo de
templos jainistas Deewara, situado na encosta do morro. Impressionavam
os detalhes dos trabalhos em mármore nas estátuas, portas, janelas, colunas.
Parecia que os antigos utilizaram materiais plásticos e maleáveis, moldaram as
formas e endureceram depois. Mas a cidade em si não atraía. As construções
urbanas, os acabamentos, as decorações externas e internas, incomodavam pelo
mau gosto. Assim como na cidade vietnamita de Ha Long, Monte Abu abusava de
cores e brilhos. Os indianos arrumados vestiam calças sociais com bocas de
sino, camisas vivamente estampadas de mangas compridas. Os penteados e bigodes
eram aparados no esquadro. Muitos passeavam durante a noite na beira do lago
com terno e gravata.
Durante os momentos de relaxamento no quarto do
hotel, analisamos no mapa da Índia as próximas paradas. Cara e excessivamente
turística, Goa estaria em plenos festejos do natal, altíssima temporada. Invadida
e ocupada por portugueses durante séculos, Goa contava com influência cristã e
preservava tradições das festas natalinas e de fim de ano. E também possuía a
triste fama de abrigar turistas ocidentais em busca de festas intermináveis e
previsíveis, regadas à música eletrônica, álcool, drogas e outras maravilhas
“bem” indianas. Goa saiu dos planos.
Mais demoras na partida do ônibus a Udaipur. Mais que na
hora de voltar ao conforto, segurança e eficiência dos trens. No momento do
embarque, um grupo de indianos queria ser fotografado ao nosso lado.
Fotografaram o grupo e nós, um casal e nós, somente nós. Em Monte Abu nos
tornamos a sensação dos indianos arrumadinhos.
Em Udaipur, a pé até o hotel já conhecido. Dezembro era o
mês dos casamentos na Índia. Muita gente, roupas coloridas, música alta, noivos
a cavalo, danças, alegria, pelo menos dos parentes e convidados. À noite,
desfiles fortemente iluminados. Logo atrás do cortejo, um veículo transportava
o gerador de eletricidade, de onde saíam vários e longos fios que alcançavam
pesadas luminárias carregadas por peões ao redor dos convidados. Enquanto o
centro festejava, gritava, cantava, dançava, os pobres coitados sustentavam
pesadas lâmpadas nas mãos. E em movimento pelas ruas.
Udaipur reservava becos, lagos, casas antigas, palácios,
gente e cultura fascinantes. E a despedida da cidade, em grande estilo, foi
jantando a legítima comida indiana no restaurante de sempre. Comida boa e farta.
O incêndio da pimenta se amenizou com refrigerantes de manga.
Embarque em ônibus noturno, velho e lotado. Mais nenhum
ocidental sentado. O vídeo do ônibus no último volume massacrou durante a
primeira metade do percurso. Depois o motorista colocou música em volume
suportável. Nas demais paradas, já no estado de Gujarat, viramos a principal
atração. Os indianos, curiosos e espantados, encaravam como se fôssemos
alienígenas. Vez ou outra, um mais atirado se aproximava e puxava diálogo
curto. As placas, cartazes, avisos, orientações, jornais, somente em gujarati,
a língua estadual.
Na chegada a Rajkot, não foi fácil comunicar com os vendedores
de passagens. Ninguém falava ou entendia inglês. Naquele itinerário os trens
estavam fora de questão. Apesar de a cidade ser importante ponto de conexão do
estado, não havia terminal unificado de transporte rodoviário. Nenhum ônibus
seguia para Bhuj nas proximidades. Um garoto desfez o impasse. Arranjou riquixá
e indicou ao condutor o local do ônibus desejado.
Passagens compradas, mochilas arriadas, tempo de espera. Pequenos
ratos brincavam para lá e para cá no meio das mochilas. Não morderam, não
roeram, nem defecaram nelas. O embarque envolvia riquixá, incluído no preço da
passagem, até o ônibus estacionado mais adiante. O riquixá quase transbordou de
tanto peso e volume. Eram seis passageiros, malas, mochilas.
O motorista do ônibus detonou o toca-fitas no máximo
volume. Em todos os lugares, eram sempre duas ou três músicas pertencentes à
trilha sonora do filme Raja Hindustani, sucesso absoluto nas telas e
fora delas. Não que fossem ruins, mas depois da centésima vez, uma seguida da
outra, começava a torturar.
Desembarque em Bhuj depois de vinte horas de viagem desde
Udaipur, na base de bolachas, banana e água. As mochilas nas costas, na busca
de hotéis pelos becos comerciais, espantaram dos moradores. Dois turistas
sujos, cansados e famintos, com enormes e pesadas cargas nas costas, caminhando
no meio do povo, tornaram a atração daquele fim de tarde. Não foi fácil
encontrar hotel. Os nomes na frente dos estabelecimentos, somente em gujarati.
O hotel mais barato da viagem não podia ser grande coisa, perto da avenida
principal da cidade, por onde passavam caminhões pesados, ônibus, muita gente.
A janela do quarto dava para os corredores internos. A ventilação fraca tornava
o ambiente frio e úmido. Não havia pia ou chuveiro no banheiro do quarto. Banho
somente frio e sob a torneira a um metro do chão, entre malabarismos para
enxaguar. Mas tudo se compensava em lugar fora da rota turística convencional.
A fadiga batia forte. Ao atravessar a empoeirada e
perigosa avenida dos caminhões, a areia acumulada nas ruas e a poeira em
suspensão impregnavam olhos e pulmões. Forramos o estômago com comida razoável.
A areia, o barulho do trânsito, os olhares esbugalhados dos moradores, o sono
incontornável, nos levou de volta ao hotel. Desabamos na cama e adormecemos
imediatamente.
A primeira imagem Bhuj trazia poluição sonora e do ar, cor
acinzentada, trânsito indescritivelmente pesado e caótico. O lago revelava
nível baixo das águas e o cenário repelia pela aridez. Até a parte murada da
cidade decepcionou. Apenas mais dois turistas ocidentais pelas ruas. Gujarat
era um dos estados menos visitados da Índia. Bhuj estava distante, fora de mão,
quase na divisa com o Paquistão.
De posse de castanhas, pistache, figos secos, uvas passas,
sucos de manga, bastante água, só restava o merecido recolhimento ao escuro
quarto do hotel. Um ágil ratinho circulava livremente pelo chão, sob as camas. Após
empurrar o bichinho pelo baita espaço que existia debaixo da porta, tapamos a entrada
com sacos vazios.
O capítulo referente à Gujarat no guia estrangeiro parecia
brincadeira de mau gosto. Havia erros elementares de localizações, preços,
omissões. Provavelmente o responsável pelo texto nunca viera ao estado e
compilara, sem as devidas confirmações, dados de outras publicações. O café da
manhã em local entusiasticamente recomendado naquelas páginas serviu ovo cozido
fatiado, cinzento, gelado. Os pães com manteiga também vieram gelados e com
consistência de borracha seca. Com a gororoba goela abaixo, rumamos ao bom e
costumeiro restaurante, e claro, não indicado no guia.
Visita ao antigo palácio e museu, mal conservados e
desprovidos de qualquer interesse, apesar de elogiados nas páginas do guia. O senhor
que fornecia informações turísticas, simpático e prestativo, descreveu as
pequenas vilas ao redor de Bhuj, ricas em artesanatos variados, peculiares
pelos modos de vida intocados há séculos. Mas contavam com acesso para lá de complicado.
Segundo ele, no estado havia a língua gujarati, oficial, escrita, usada
em documentos, cartas, jornais, e a língua kutch, apenas falada, não
contando com escrita correspondente.
Os sacos sob a porta do quarto do hotel não contiveram as
investidas do ratinho. Estava no canto da parede no exato instante em que se
preparava para fugir por baixo da porta. O quarto, apesar dos pesares, era
amplo e silencioso.
Os dois trajetos da partida de Bhuj correram bem em miniônibus.
A música em volume ensurdecedor do primeiro quase nos levou à loucura. O
segundo, no entanto, ousou na seleção musical em volume suportável, aliviando os
tímpanos. Desta vez a conexão na cidade de sempre, Rajkot, não incomodou.
Chegada tranquila em Junagadh. Nada das recomendações furadas do guia ocidental.
Seguimos a hotel frequentado por indianos, oferecendo quarto amplo, barato, com
banheiro no quarto.
As ruas de Junagadh revelavam vida, luz, movimento
intenso. Os moradores, mesmo encarando boquiabertos, guardavam simpatia e
tomavam a iniciativa de cumprimentar. Ainda mais que no Rajastão, a fraca
iluminação dos banheiros em Gujarat reservava lâmpadas de cor verde ou azul
escura. Não iluminava quase nada e criava atmosfera de puteiro. O mesmo ocorria
nos restaurantes médios e procurados pelos indianos, de longe as melhores
opções, servindo comidas autênticas e saborosas.
Seguimos imediatamente à montanha Gir, nos arredores da
cidade. A primeira missão seria superar os dez mil degraus da escadaria até o
topo, seiscentos metros acima, onde se localizava o complexo de templos hindus
e jains. O corte de caminho por ladeira sinuosa diminuiu a subida para
“apenas” sete mil degraus.
A dispersão dos templos nas encostas da montanha, a vista
para cima e para baixo dos outros templos, das montanhas e da cidade bem
abaixo, deslumbrava de todas as maneiras. As construções não contavam com
tantos detalhes nas paredes de pedra. O estado de conservação deixava a
desejar, havendo construções abandonadas ou fechadas.
Ao contrário da subida, a descida pelos milhares de
degraus massacrou os joelhos. Doeram muito, durante dias, obrigando me apoiar
para não despencar.
Em barraca de rua entupida de bugigangas pedi chinelo de
dedo por similaridade de tamanho do pé. E virei atração da barraca, das outras
vizinhas, de todos que passavam pela rua movimentada. Sentei-me na guia da
calçada e experimentei alguns modelos. Formou-se um semicírculo de indianos
para assistirem a cena. Separei o par desejado, pechinchei no preço, saí com o
novo nos pés. Os indianos curiosos ainda permaneceram por um tempo ao lado da
barraca, alternando os olhares ao vendedor e a mim que avançava pelo quarteirão.
Éramos muito observados em todos os cantos da cidade.
Muitos paravam para analisar em detalhes. Outros riam. A maioria sorria, nos
recebia com simpatia, misturada com timidez e curiosidade. Os moradores
costumavam beber os tradicionais chás com leite no pires e não nas xícaras.
Ajudava a esfriar e a não queimar a língua. A língua inglesa definitivamente
não era difundida em Gujarat. Nem mesmo o hindi. Para além da
comunicação essencial, nem sempre alcançada, restavam os gestos e sinais.
O sistema ferroviário de Gujarat, além da pequena
extensão, também passava por reformas. Novamente a mercê do problemático
transporte rodoviário indiano. Nas agências de ônibus na busca por passagens
para a cidade de Diu, anunciadas nos cartazes frontais, os vendedores alegavam
não haver linhas diretas. Outra agência também com anúncios e nada. O jeito foi
adquirir passagens apenas para o primeiro trecho, até Veraval. E os bancos não
faziam câmbio com cartões de crédito, também apesar dos avisos afirmarem o
contrário.
Enquanto caminhava me apoiando no ombro dela para poupar
os joelhos, um senhor de meia idade me bateu nas costas. Raivoso e indignado, ele
gritava histérico. Entre tantas expressões irreconhecíveis, proferiu “proibido”
em inglês, se referindo ao meu braço no ombro dela. Permaneci apoiado, para não
cair. Mas ele se mantinha andando ao lado e esbravejando sem desistir.
Continuei até ele reduzir o passo e desaparecer na multidão. E os moradores de
Junagadh não se cansavam de nos olhar de todas as maneiras. O ciclista que a
apreciava, com o queixo caído, quase atropelou o idoso que atravessava a rua.
Em outro ponto da cidade, pelo mesmo motivo, o riquixá, a lambreta e a
bicicleta se chocaram levemente.
O que poderia ser percorrido em apenas um ônibus, passou
para três até a cidade de Diu. Os veículos indianos, grandes ou pequenos,
primavam pelo desconforto, desorganização de horários, de pontos de partida e
chegada, falta de segurança. E estavam sempre lotados. Na maioria as bagagens
ficavam na cobertura, no corredor, ou no colo mesmo. Durante a espera em Una do
terceiro e último ônibus do dia, ainda amontoados na porta de entrada, um
adolescente se aproximou e apalpou os seios dela por cima da roupa. E correu
imediatamente. Mas não nos portávamos ou nos vestíamos de maneira inadequada ou
ofensiva aos costumes locais. Após cruzar de balsa o canal que separava o
continente da ilha, o último ônibus nos deixou em Diu, antiga propriedade dos
invasores europeus, no caso portugueses.
Em cidade turística na beira do mar, os hotéis, ainda que
simples, eram mais caros. A sacada do quarto dava para o canal. Ao fundo, a
linha de coqueiros, palmeiras e bananeiras do continente. Os banheiros
coletivos do hotel não impediam os olhares curiosos. De alguma maneira,
teríamos que conviver e contornar os obstáculos.
A caminhada da volta quase completa ao redor da ilha de
Diu ofereceu paz, tranquilidade, silêncio. As paisagens faziam bem aos olhos. O
aspecto bucólico valorizava cada trecho percorrido. A maioria das praias
reservava recifes ou rochas, afastando a possibilidade de banhos. Com palmeiras
plantadas e mar calmo, a praia de Nagoa era a única frequentável. As igrejas
brancas, becos estreitos e sinuosos, sobrados antigos, vazios urbanos sem alma
viva, faziam de Diu local ideal para parar, descansar, relaxar do ritmo
frenético da Índia. Não havia circulação de pessoas pelas ruas. O calçamento,
as principais construções, as calçadas, primavam pela higiene e bom estado de
conservação. Não se corria o risco, como na maior parte da Índia, de atolar os
pés na merda ou desaparecer em buracos imundos. Ainda que mais visitada que
Bhuj ou Junagadh, Diu abrigava poucos turistas, especialmente jovens de vinte e
poucos anos, do tipo bicho-grilo, autênticos ou não. O consumo de bebidas
alcoólicas era liberado escancaradamente, tornando a ilha o paraíso dos
bêbados. Mas Diu caíra bem no meio da longa viagem.
Dias de vadiagem pelas praias, campos vazios, becos do
centro da cidade, apreciando sem pressa a vista das escarpas na beira do mar. E
o camarão ensopado veio ricamente temperado. O proprietário e os filhos
arranhavam um pouco de português. Menos do que alegavam e mais do que o esperado.
Sons de músicas e cantorias atravessavam o canal e
chegavam aos ouvidos. Ainda no auge da temporada dos casamentos as festas não
paravam uma noite sequer. O último dia no paraíso de Diu foi para visitar o
forte construído pelos invasores portugueses e assistir ao pôr-do-sol na praia.
Embarque noturno a Ahmedabad em lataria velha que chacoalhava
de todos os lados provocando alta barulheira. Não deu para dormir ou descansar.
Então Ahmedabad, a capital de Gujarat, a capital da
poluição, do ar e sonora. Andanças sem fim pelas infindáveis avenidas em meio
ao caos do trânsito infernal, em meio a veículos leves, pesados e gente, muita
gente. Além dos ruídos incessantes e da fumaça, a cidade vibrava, tremia, de
tantos ônibus e caminhões. As marginais em São Paulo, num fim de tarde chuvoso
de março, poderiam ser consideradas pitorescas e bucólicas se comparados com
Ahmedabad naquela manhã de céu azul. Árdua tarefa em Ahmedabad para encontrar
banco que fornecesse rúpias. Intervalo para comer alguma coisa somente no meio
da tarde. E finalmente à estação ferroviária para descansar, comer mais, esperar
o trem.
continua...
Querida,
ResponderExcluirAdorei seu blog. Sou formada em turismo, e acredito que discussões tratadas por profissionais da aréa, são altamente positivas em prol da melhoria do turismo no país.
Beijo
Ana Carla Nunes
www.festasdabahia.com
Muito obrigado. Fique à vontade para ler os demais relatos de minhas viagens aos interiores do Brasil e a outros países. Comente, indique, sugira. Você será sempre bem-vinda. Beijos!
ResponderExcluirMente, olhos, gosto pela leitura tudo se enrola nessa supreendente mistura cultural. Detalha o bom e o ruim do turismo, como pessoas simpáticas e pessoas desinteressantes...mas acredito que em todo lugar há os dois lados e que vocês souberam conviver muito bem. Indo percorrer mais um trecho...Até.
ResponderExcluirIvete, as sensações vividas foram uma mistura das duas facetas que mencionou.
ResponderExcluirA Índia, os indianos, nos provocam uma relação de amor e ódio a todo instante.
Daí o fascínio que o país e as culturas ali presentes nos exerceram de um jeito ou de outro.
Abraços!