...continuação
De madrugada, lotação ao lago. E o barco expresso, grande,
rápido, desconfortável, inseguro. No meio do trajeto, o piloto do barco não
atendeu aos chamados e os policiais dispararam rajadas de metralhadora. Nem
reparei se alguma bala atingiu o barco.
A pé o longo trajeto do rio ao hotel em Phnom Penh. E,
desaconselhável pela insegurança das ruas à noite, no restaurante do térreo,
camarão ao alho e óleo, diversos copos de chá gelado com limão, café com leite
gelado. Servido em copo cheio de gelo, o café misturado com leite condensado
realmente deliciava. Não dava para parar de tomar. Ganhava disparado daqueles
ótimos servidos no Vietnã dois anos antes. Comer e beber bem levanta a moral de
qualquer cidadão.
De dia na parte norte de Phnom Penh, por avenidas e ruas
planejadas, parecidas entre si. Não havia edifícios altos, mas extensos
conjuntos de cinco andares, e casas, a maioria mal conservada. Muitas ruas não
contavam com pavimentação e levantavam muita poeira misturada com lixo.
Deficientes físicos e mulheres com crianças no colo pediam esmolas pelas
calçadas. As imediações do mercado e feiras livres se destacavam pelas cores,
povo sorridente, cenário fotogênico.
À tarde, o museu Tual Sleng, nada além de peça de
propaganda do governo. Exibia fotos e gráficos ininteligíveis dos crimes do
regime dirigido por Pol Pot e o Khmer Vermelho entre os anos de 1975 e 1978.
Mas estranhamente suprimia os também hediondos crimes cometidos por quase cem anos
de ocupação pela França, e pela invasão dos Estados Unidos por mais de dez
anos.
O governo de plantão no Camboja, alinhado aos países
imperialistas, desejava que o povo cambojano esquecesse as atrocidades impostas
pelos regimes francês e estadunidense. Falsificava a história e não explicava
que o governo extremista de Pol Pot tomou o poder graças ao vazio deixado pelas
sucessivas guerras de agressão imperialistas. Também não explicava que em 1978
o país foi libertado da tirania de Pol Pot pelo exército do Vietnã. Pol Pot e o
Khmer Vermelho se refugiaram nas montanhas, aterrorizaram a população e
receberam apoio financeiro e militar dos Estados Unidos. A luta heroica pela
independência do país, com tantos mortos, feridos, traumas, envenenamento do
solo, águas, plantas, devido ao uso indiscriminado de armas químicas pelo
exército estadunidense, jamais poderia ser ignorada, desprezada ou distorcida.
Depois do sofrimento do povo por mais de um século, a antiga classe dominante,
servil ao imperialismo e colaboradora nos massacres da população, voltara ao
poder assim que o exército vietnamita deixou o Camboja. E ainda era chefiada
pelo mesmo rei submisso da época das invasões.
Em outro ponto da cidade, nos campos de extermínio do
regime de Pol Pot, vidros cheios de crânios e pedaços de roupa, buracos vazios
pelo chão, acima dos quais escreveram legendas do tipo “vala comum dos
adultos”, “vala comum das mulheres e crianças”, “vala comum dos sem cabeça”. E
pensar que nenhum centavo do dinheiro arrecadado nas visitas daquilo fluía para
o pobre povo cambojano. Não era de se estranhar os pedintes mutilados que se
arrastavam pelas ruas, ignorados pelo rei.
Além dos mochileiros de sempre, o restaurante do hotel
contava com suspeitos frequentadores, invariavelmente estadunidenses,
apresentando idade superior aos 50 anos e aspecto militar ou paramilitar.
Debatiam assuntos geopolíticos. Os doces agentes se deleitavam com a nova
conjuntura local e auxiliavam a monarquia de plantão a explorar e oprimir o
povo cambojano, a falsificar a história, a ocultar as atrocidades cometidas
pela França e pelos Estados Unidos.
No dia anterior à partida do Camboja, dezenove pessoas
morreram e cento e cinquenta ficaram feridas depois que uma bomba explodiu
durante manifestação em frente ao palácio real. Apenas os manifestantes foram
atingidos. Os policiais e agentes de repressão da monarquia nada sofreram.
Depois do voo a Bancoc, ônibus caro à região de Khao San,
onde compramos vale-passagens de ônibus até a cidade de Nong Kay, nordeste da Tailândia,
fronteira com o Laos.
Lotação pelo insuportavelmente lento trânsito de Bancoc à
distante estação rodoviária. O motorista da lotação nos deixou com uma criança
que nos conduziu pelas calçadas apinhadas de barracas de ambulantes e entupidas
de gente até a rodoviária, ainda mais lotada e confusa. O garoto entregou os
bilhetes definitivos, indicou a plataforma e desapareceu. Mas era a plataforma
errada. No meio da confusão de milhares de pessoas, ônibus para todos os lados,
barulho, fumaça, ninguém queria ajudar. Depois de muita luta, descobrimos o
local correto, do outro lado do terminal.
Qualquer estação rodoviária do interior do Brasil, do mais
miserável recôndito brasileiro, era mais organizada e civilizada que aquele
buraco tailandês. Mas a Tailândia se submetia a todas as imposições da
indústria predatória do turismo, se tornando um paraíso sem restrições para as
transnacionais do ramo via degradação cultural, turismo sexual, tráfico de
drogas, contrabando, lucros fáceis. Daí tantos elogios em guias e folhetos, alardeando
a mentira de país “exótico” e “misterioso”.
Entre vários ônibus amontoados e fora das plataformas, multidões
de pessoas com malas e sacolas se esmagavam e brigavam para embarcar. Os
bilhetes escritos apenas em tailandês levariam somente até Udon Thani, e não a
mais distante Nong Kay conforme o valor pago. Os assentos marcados nas
passagens de nada valiam. O jeito era empurrar, abrir caminho, entrar em
qualquer daquelas dezenas de ônibus e sentar imediatamente. E isso depois de inúmeras
tentativas em vários ônibus. Era mais de meia noite, depois de cinco horas
pastando no inferno da rodoviária de Bancoc.
Em Udon Thani, desembarque no meio da rua. De tuc-tuc
até a estação rodoviária e, de lá, outro ônibus até Nong Kay, na margem direita
do rio Mekong. Do outro lado, Vientiane, capital do Laos. Os condutores de tuc-tuc
de Nong kay cobravam fortunas até o posto de fronteira tailandês. Nem pensar! O
caminho seria feito a pé mesmo. Um francês que viera no mesmo ônibus alegava
que da Europa cruzara por terra o Oriente Médio, Ásia Central, Índia. Mas caía
em contradição ou não sabia responder às perguntas. Mesmo cansados, suados,
famintos, e irritados, não deixamos de rir diante do farsante. E ele seguia com
as estórias mirabolantes. Teimava que cruzaria a fronteira da China, iria até a
Sibéria e embarcaria no trem transiberiano de volta à Europa e à França.
Pela distância sob o sol apelamos para lotação até a
fronteira. Depois de cruzar o rio, entrada no território do Laos. Mais um tuc-tuc
até o centro de Vientiane, vinte quilômetros adiante.
Optamos pelo primeiro hotel disponível em cidade sem
vagas. E para a primeira refeição em 24 horas havia ambulantes oferecendo sanduíches
feitos de baguete recheado com patê e verdura. Detonei dois imensos,
mais copos de sucos de frutas frescas. Depois banho demorado e cama.
Após quatorze horas contínuas de sono profundo e merecido,
nenhuma vontade de explorações. Então mais comida e mais cama. Despertar e mais
desânimo. Entre voltas sob o calor tórrido de Vientiane, nada de fome, somente sucos
deliciosos de frutas frescas. E novamente hotel.
Vientiane guardava atmosfera calma e tranquila. Nada de
correrias, congestionamentos, gente apressada, poluição sonora. O tal progresso
ainda não afetara o bucolismo da capital do Laos. Com exceção de avenidas
periféricas, Vientiane mais se assemelhava a cidadezinha do interior. Em poucos
minutos de caminhada a partir do centro, apareciam ruas de terra de vilarejo
afastado. Casas simples, gente simpática e sorridente. Havia pobreza, mas sem
miséria ou indigência. A margem do rio Mekong reservava bares e restaurantes de
madeira, simples e despretensiosos. Mais adiante, cafés e restaurantes
refinados e voltados para outros bolsos.
Caminhamos horrores sob o sol de rachar mamona e nada de
ônibus a Luang Prabang, ponto ou terminal rodoviário, apenas passagens a Vang
Vieng, cidade bem antes de Luang Prabang.
De ônibus à pequena Vang Vieng para agarrar o último quarto
livre da pousada, simples, com banheiro coletivo, sem chuveiro, sem água
corrente. Banho, somente de cuia. Na margem oposta do rio ao lado da cidade
erguiam-se montanhas altas e escarpadas formando instigante paisagem no
horizonte. Os moradores comentavam sobre cavernas no meio daqueles paredões.
O café da manhã típico da região, sopa com macarrão,
verduras, ovos e demais temperos veio servido em enorme tigela. Deliciosa e bem
preparada, a sopa levantava até defunto. O estômago agradeceu aquela maravilha.
As tais cavernas comentadas se encontravam em processo
acelerado de destruição, com aterros, canalização do córrego de águas azuladas.
A fauna e flora, aparentemente, ainda abundavam. Chalés turísticos se
espalhavam pelo local ao lado de restaurantes com música ao vivo. Cobravam
ingressos para entrar. Nada feito.
O ponto alto da pequena e barulhenta Vang Vieng, em obras por
todos os cantos, ficava por conta da feira diária ao ar livre. Ao lado de
produtos agrícolas tradicionais, barracas e ambulantes ofereciam iguarias finas
do país, como besouros vivos, cobras, ratos secos, unhas, patas. Eram muito
procurados pelos moradores e vendidos em poucos minutos.
Pela manhã em caminhonete lotada à cidadezinha de Kasi. A
paisagem pela janela encantava com enormes montanhas escarpadas, bocas de
cavernas entre vegetação espessa, vilarejos pitorescos de madeira, arrozais da
região de Phatang.
Desembarque no acostamento, ao lado de Kasi, onde pararia
transporte a Luang Prabang. Passaram somente dois ônibus abarrotados e sem
garantias aonde iriam. Foram seis longas horas em vilarejo perdido no meio do
nada. Os moradores permaneciam paralisados e com os olhos esbugalhados. Em nada
ajudaram. Não moviam um nervo sequer do rosto. Mas não tiravam os olhos.
Do outro lado da estradinha apareceu ônibus em sentido
contrário. Retornamos a Vang Vieng. Hospedagem em outra pousada, mais limpa,
espaçosa, silenciosa e barata. As chuvas fortes trouxeram goteiras sobre a cama
à noite. Mas não atrapalharam o sono.
De volta a Vientiane, concluímos pela enésima vez que o
decepcionante sudeste asiático dera o que tinha que dar. Na capital do Laos
havia uma imitação do arco do triunfo, construído durante a invasão e ocupação
pela França por cem anos. Mesmo sem traços de forte personalidade, Vientiane
seduzia pela calma, tranquilidade, apontando para cidade agradável de morar. Até
quando?
Após cruzar a fronteira da Tailândia, passagem de trem
para a Bancoc, a fim de evitar o pesadelo dos ônibus tailandeses. A boa e farta
comida do restaurante em Nong Kay se contrapunha com o lixo estadunidense no
último volume que vinha da televisão. E os interiores do trem noturno eram
tristes, a frequência triste, o serviço de bordo triste, como regra naquele
país triste. Na chegada a Bancoc, passagens conjugadas de ônibus e barco à ilha
de Ko Pi Pi, com a intenção de passar o tempo até a data do voo salvador que
nos libertaria do sudeste asiático.
continua...
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ResponderExcluirMas a Tailândia se submetia a todas as imposições da indústria predatória do turismo, se tornando um paraíso para as transnacionais do ramo, jamais restringindo que os estrangeiros a transformassem em quintal para as mais variadas formas de degradação cultural, turismo sexual, tráfico de drogas, contrabando, lucros fáceis. Então, a indústria do turismo a elogiava, trazia mais e mais turistas, alardeando a mentira de país “exótico” e “misterioso”. Neste trecho, você mostra bem a cara da Tailândia e o que a ganância do homem faz com o turismo, o que deveria ser prazer torna-se desprazer.Gostei da capital de Laos, acolhedora, por enquanto, até os olhos do turismo predatório enxergar. Continuo de encontro ao último capítulo.
Ivete, mais uma vez você condensou tudo o que eu afirmei em poucas e elucidativas frases.
ResponderExcluirÉ por aí mesmo. Só de me imaginar novamente naquele inferno de país, sinto calafrios rsss.
Ainda bem que a Ásia e o mundo não se resumem àquele horror!
Mas é assim, precisamos ir para conferir.
Abraços!