sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 9/12)

...continuação
Até a descida empolgou. E mais samosas, tickias, xícaras de café com leite cremoso. Retorno ao quarto do hotel ao anoitecer.
Subidas em dois outros picos na manhã seguinte, caminhando sobre a neve. Era dia eleitoral e nada funcionou. Relaxar e preguiça. Havia os pequenos lanches e local para comer masala dosa e chowmein. O quarto do hotel agradava. A cidade e os moradores conquistaram logo de cara. As caminhadas maravilhavam. Não havia razões para mudanças ou partida de Nainital.
Já eram mais de três meses na estonteante Índia. O país fascinava e muito. As eventuais frustrações jamais lhe tirariam o brilho. A maioria dos indianos encontrados, no entanto, primava pela chatice. Os adolescentes puxavam a fila. Invariavelmente com visual de astros de cinema indiano, vestidos à moda dos anos de 1930, projetos de bigodes, pentes nos bolsos traseiros das calças para acertar os repartidos dos cabelos, esses indivíduos faziam o sangue subir. Não conversavam nada de interessante, apenas perguntavam. Grudavam e não se afastavam. Mas eles jamais tirariam o brilho dos detalhes e do conjunto da Índia.
Uma barraquinha de rua, na beira do lago, servia pão com omelete pelas manhãs. E havia o café com leite na barraca ao lado. Eu comia dois sanduíches e vários copos, tudo quente, preparado na hora. A fuligem enegrecia as mãos do homem da barraca e ele as usava diretamente nos ovos e pães. E, como toque final, colocava uma das fatias de pão sobre a omelete e a pressionava com a mão escurecida para penetrar o gosto, da omelete e das mãos dele. Nunca fez mal e repeti inúmeras vezes. E, para arrematar a refeição matinal, dois copos de coalhada artesanal no beco mais adiante.

Dia para relaxar e apreciar o movimento dos moradores sob o sol de inverno. Na volta, parada em bar para o chá com leite. O rapaz do balcão ofereceu a mesa na calçada. Então saíram os três funcionários do bar em direções diferentes. Um correu para o lado direito, outro para o lado esquerdo e o terceiro subiu na moto e disparou. Sumiram todos de vista. O bar ficou vazio, sem ninguém para atender. Dez minutos depois voltaram com pacotes nas mãos. Um com chá, outro com leite, o terceiro com o açúcar. Somente aí iniciaram a preparação. E serviram. Era a Índia. O chá temperado com leite empolgou, como sempre, ainda mais naquele friozinho de fim de tarde.
Nova subida ao pico Tiffin. Voltamos ao hotel, estendemos as roupas ao sol, nos sentamos. Permanecemos horas assim. Sentimos suave sensação de calor enquanto líamos e apreciávamos a paisagem.
Após pães com omelete, sucos, café com leite cremoso, durante a manhã na beira do lago, descida de ônibus para Kathgodan. Entre salgadinhos, chá no bar da plataforma, circuladas pelas ruas sem graça da cidade sem graça, o tempo passava lentamente. O relógio não andava. Mas o trem noturno finalmente partiu, pontualmente.
Em Delhi troquei livros e guias em sebo no meio da calçada. E saí com dois exemplares bem gorduchos, ambos em inglês, do escritor russo Leon Tolstoi, Guerra e Paz e Anna Karenina. Teria a viagem toda, e mais um pouco, para lê-los.
E bem cedo, o trem expresso, com comes e bebes incluídos na passagem, vagões com cadeiras reclináveis, contribuíram para o astral do percurso. Na estação ferroviária de Ajmer, ônibus para Pushkar, dessa vez sem a feira de camelos.
Pushkar mantinha-se linda e charmosa, mas o crescimento vertiginoso do turismo deixava marcas profundas. Meninos e meninas perambulavam pelas ruas e becos pedindo ou exigindo dinheiro, agressivamente. Os restaurantes ofereciam pratos ocidentalizados no formato de bufê. A comida com gosto de hospital preparada sem inspiração carecia de tempero. Somente depois de buscas prolongadas, vinham as comidas indianas. Pratos vegetarianos do sul do país, quase impossível. Paradoxal em cidade sagrada, vegetariana e abstêmia como Pushkar.
Café da manhã tardio e farto, longas e soltas caminhadas pela cidade, bastante música clássica indiana nas tendas. Sem a feira de camelos e os preços abusivos de meses antes, quando de nossa primeira visita, Pushkar agradava bem mais.
A mente se sentia leve, sem rumo, sem compromissos, sem roteiros. Os instintos conduziriam para cá, para lá, para lugar nenhum. Do topo de imensa duna de areia, o deserto de Thar sem fim. Um camelo descansava sob a sombra de árvore. Ignorávamos as crianças que continuavam a pedir de tudo. Nada dos bufês ocidentais que infestavam a cidade. Comíamos somente nos raros e escondidos restaurantes de comida indiana.

Pushkar era vegetariana e proibia o consumo de álcool e drogas, de acordo com o código de conduta afixado em todos os cantos da cidade. O comércio de cigarros e do alucinógeno indiano bang, no entanto, se escancarava pelas lojas e ruas. Nada de ovos, mas tudo de laticínios em geral, venda de artigos de couro e demais derivados de animais. Sem falar nos golpes dos ônibus privados que sentíramos na pele meses antes. A cidade sofria nas mãos da casta dos brâmanes, para quem o lucro falava mais alto. A tal cidade sagrada, vegetariana e abstêmia constava apenas nos folhetos e guias turísticos. Os turistas, na esmagadora maioria, consumiam de tudo, sem ressalvas. E contribuíam para a descaracterização de lugar tão especial.
O pôr-do-sol de um lado do horizonte, enquanto a enorme lua cheia nascia do lado oposto, foi de cair o queixo. O alto do morro, como se não bastassem o sol e a lua, proporcionava imagens marcantes das construções brancas e azuladas da cidadezinha refletida nas águas espelhadas do lago. E, pelos becos da cidade, a refeição foi de katchori e gulab jamun.
Entre perambuladas pelas pequenas dunas nos arredores da cidade, cabras se aproximaram e gostaram da companhia. Chamamos o rebanho na volta à cidade. Seguiram bem de perto pelas ruas. Entra e sai de ruas, e elas atrás, firmes e animadas. Conseguimos despistá-las no centro da cidade somente após acelerar o passo e aumentar a distância delas.
De ônibus à cidade não turística de Ajmer. Em restaurante muito simples em frente à estação ferroviária, pedimos masala dosa. E vieram pegando fogo de tanta pimenta. As lágrimas se derramavam caudalosas dos olhos e molhavam as camisetas. A pimenta realmente incendiava por dentro. Mas não dava para parar de comer. Estava delicioso demais. E viramos atração mais uma vez. Os cozinheiros, garçons, frequentadores, não acreditavam no que viam, sobretudo depois de repetirmos os pratos. Os olhos estavam vermelhos, os rostos molhados de lágrimas que não paravam de brotar. Mas que masala dosa divino! O café e chá com leite cortou parcialmente o ardor generalizado.
O trem noturno partiu a Delhi, onde foi difícil conseguir riquixá à outra estação. Mais uma hora e meia para deixar as mochilas no guarda-volumes na estação de Nova Delhi.
Ao entrar no vagão do expresso Rajdhani, muita euforia diante da cabine privativa, exclusiva. A melhor cabine de primeira classe do melhor trem de toda a Índia aguardava ampla e arrumada. Enorme e confortável sofá de couro, carpete, armário, pia, duas pequenas mesas. O sofá virava cama abaixo de outra cama embutida mais acima. O serviço dos funcionários internos primava pela opulência. Trouxeram vasos de flores, jornais, travesseiros, água mineral, sabonetes, toalhas, entre dezenas de itens para tornar a viagem a mais agradável possível.

O expresso Rajdhani partiu à tarde rumo a Calcutá e todas as refeições estariam incluídas no baixo preço das passagens. Serviram chá em xícaras de porcelana pintada, acompanhado de biscoitos e bolachas. A imensa janela exibia as paisagens externas nitidamente. O som ambiente divulgava avisos sobre o funcionamento dos serviços e, para destoar da perfeição, vomitava lixo musical estadunidense, em imperdoável deslize da eficaz empresa estatal ferroviária da Índia. Tantas maravilhas da música clássica indiana e optaram justo por aquilo.
O jantar oferecia opção vegetariana ou não. Para manter a classe, foi servido em quatro etapas. A primeira consistia de sopa, pães, torradas, manteiga. A segunda incluía fatias de carneiro assado com batatas fritas e verdura cozida. A terceira chegou com maçã recheada e legumes. A quarta e última etapa coroou o lauto jantar com sorvete.
Mais à noite o prestativo funcionário trouxe lençóis perfumados e cobertores.
Logo ao amanhecer serviram chá com pães e biscoitos. Mas ainda não era o café da manhã. O verdadeiro surgiu em seguida, incluindo omeletes, peixe frito, batatas, queijo, maçã, mais chá.
As curtíssimas dezessete horas voaram e Calcutá se fazia visível pela enorme periferia. A escolha de viajar pelo expresso Rajdhani não poderia ter sido mais apropriada rumo à última cidade a ser visitada na Índia. Parabéns ao expresso Rajdhani. Parabéns a todo o sistema ferroviário estatal indiano, em constante expansão e modernização. Com muita admiração e inveja de dois viajantes residentes em um Brasil criminosamente rodoviário.
A Índia, os trens, as ferrovias, já deixavam saudades depois dos quatro meses de explorações pelo país. Foram tantas as imagens, internas e externas. As estações, os vendedores ambulantes, as filas imensas, os cagões matinais alinhados nas dormentes, os sacolejos, os assentos, as camas, os banheiros no estilo indiano, os lugares destinados às bagagens, as conversas, os indianos que nunca abriam mão de conforto, levando colchão, lençol, travesseiro, cobertor, gorro, sempre bem alimentados com comida de verdade, nada de lanches ocidentais. Difícil esquecer aqueles momentos ferroviários. Nem se eu quisesse. E eu não queria.
Calcutá contava com personalidade e charme de cidade grande. Diferentemente da industrial Mumbai e da administrativa Delhi, Calcutá era a capital intelectual da Índia. Ali residiam as principais cabeças culturais do país e produziam os filmes de qualidade que frequentavam festivais internacionais. Não parecia ser cidade tão barulhenta como diziam, reservava áreas verdes, árvores nas calçadas, construções antigas, cafés simpáticos. O eficiente metrô primava pela limpeza.
O jantar de despedida da Índia, em grande estilo, veio de apenas masala dosa e idli. Foram vários deles para a felicidade geral da nação.
A minoria de indianos no avião da manhã tornou-se maioria em razão do tumulto criado. Não paravam quietos, incomodavam as comissárias com pedidos insistentes, encaravam as pessoas, fumavam demais. O avião ainda nem aterrissara e se levantaram espalhafatosos. E imediatamente me lembrei das sessões de cinema quando os espectadores se assanhavam e saíam da sala antes do final do filme. Era a Índia que não queria ir embora, mesmo próximo do desembarque na tenebrosa Tailândia.

O avião pousou à noite em Bancoc debaixo de calor forte e abafado. Foi difícil encontrar quarto livre no hotel em que me hospedara dois anos antes. Um pat thay na rua, outras coisinhas para completar o estômago e cama.
Pela famigerada região de Khao San tentamos traçar planos das próximas etapas. Não havia disposição para nada. Rango novamente nas barracas de rua, local mais saboroso, mais fresco e ventilado que os restaurantes. Entre mapas, fotos, guias, agências de viagens, muitos planos, muitas incertezas, nada decidido. O calor beirava o insuportável, fazendo transpirar por todas as partes do corpo, nas ruas, bares, sob o ventilador do quarto do hotel. A região do Grand Palace lotava de turistas como sempre.
À noite, durante andanças pelas ruas previsíveis de Khao San, eu vestia camiseta amarela com frases e propagandas de produtos tipicamente brasileiros. De dentro de um das dezenas de bares entupidos de turistas, saiu um cabeludo de pouco mais de vinte anos. Correu em minha direção, balançando os braços, gritando qualquer coisa. Só quando se aproximou percebi o motivo. Brasileiro e por muito tempo sem contatos com outros brasileiros, ele me reconhecera pela camiseta. Os olhos dele brilhavam de emoção indisfarçável. E convidou à mesa do bar junto a mais brasileiros que também viajavam havia muito tempo. Moraram na Austrália, passaram por vários países e planejavam voltar ao Brasil. Foram horas e copos sem perceber o tempo passar. Brasileiros fazem festa quando encontram brasileiros, sobretudo durante longas viagens restritas a contatos com turistas insípidos dos demais países.
Depois da estonteante Índia, nada despertava entusiasmo. O tremendo equívoco cometido no roteiro da viagem começava a aparecer. Eu já sentira parcialmente a frustração dois anos antes. O sudeste asiático atraía bem menos que o subcontinente indiano. Desta vez o choque negativo fora mais intenso. A decisão correta seria ter tomado rumo oeste, em direção ao Paquistão, Irã, Síria, Turquia. A viagem ganharia contornos mais desafiadores e instigantes.
continua...

6 comentários:

  1. Fico pensando como escolheu as fotos...queria mais...

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  2. Olá, obrigado pelo comentário.
    A seleção de fotos foi bem difícil. Por bem ou por mal, tive que incluir umas e excluir muitas.
    Abraços!

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  3. Adorei a descrição da India. Um dia ainda vou conhecer esse país.

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  4. Oi Marcela, obrigado pela visita.
    Nessa minha segunda vez na Índian fiquei quatro meses mergulhado nas paisagens, culturas, povos, cheiros, comidas, sons. Tudo para degustar esse que foi o país que mais me encantou depois do Brasil.
    Abraços!

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  5. Emocionante, já estou com saudades, apenas dei asas à minha imaginação e vivi momentos inesquecíveis, vi vilarejos, Himalaia, templos, picos, cidades pitorescas...experimentei uma culinária um tanto exótica...conheci pessoas com suas diferenças...vivi momentos intensos, ora alegres, ora apreensivos...aprendi muito sobre a cultura indiana. Adorei cada momento que passei aqui, lendo seus relatos tão descritivos. Não vou desembarcar, continuo...mas quero lhe dizer, muito obrigada por ter me permitido o acesso a tamanho acervo literário. Até breve.

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  6. Ivete, até eu sinto saudades, pelo tempo que já passou da viagem, por ficar anos sem reler esses relatos, por reviver parte do que senti naqueles momentos únicos no planeta Índia.
    E você me ajudou nessa empreitada gratificante.
    Obrigado!

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