...continuação
Até a descida empolgou. E mais samosas, tickias,
xícaras de café com leite cremoso. Retorno ao quarto do hotel ao anoitecer.
Subidas em dois outros picos na manhã seguinte, caminhando
sobre a neve. Era dia eleitoral e nada funcionou. Relaxar e preguiça. Havia os
pequenos lanches e local para comer masala dosa e chowmein. O
quarto do hotel agradava. A cidade e os moradores conquistaram logo de cara. As
caminhadas maravilhavam. Não havia razões para mudanças ou partida de Nainital.
Já eram mais de três meses na estonteante Índia. O país
fascinava e muito. As eventuais frustrações jamais lhe tirariam o brilho. A
maioria dos indianos encontrados, no entanto, primava pela chatice. Os
adolescentes puxavam a fila. Invariavelmente com visual de astros de cinema
indiano, vestidos à moda dos anos de 1930, projetos de bigodes, pentes nos
bolsos traseiros das calças para acertar os repartidos dos cabelos, esses indivíduos
faziam o sangue subir. Não conversavam nada de interessante, apenas
perguntavam. Grudavam e não se afastavam. Mas eles jamais tirariam o brilho dos
detalhes e do conjunto da Índia.
Uma barraquinha de rua, na beira do lago, servia pão com
omelete pelas manhãs. E havia o café com leite na barraca ao lado. Eu comia dois
sanduíches e vários copos, tudo quente, preparado na hora. A fuligem enegrecia
as mãos do homem da barraca e ele as usava diretamente nos ovos e pães. E, como
toque final, colocava uma das fatias de pão sobre a omelete e a pressionava com
a mão escurecida para penetrar o gosto, da omelete e das mãos dele. Nunca fez
mal e repeti inúmeras vezes. E, para arrematar a refeição matinal, dois copos
de coalhada artesanal no beco mais adiante.
Dia para relaxar e apreciar o movimento dos moradores sob
o sol de inverno. Na volta, parada em bar para o chá com leite. O rapaz do
balcão ofereceu a mesa na calçada. Então saíram os três funcionários do bar em
direções diferentes. Um correu para o lado direito, outro para o lado esquerdo
e o terceiro subiu na moto e disparou. Sumiram todos de vista. O bar ficou
vazio, sem ninguém para atender. Dez minutos depois voltaram com pacotes nas
mãos. Um com chá, outro com leite, o terceiro com o açúcar. Somente aí
iniciaram a preparação. E serviram. Era a Índia. O chá temperado com leite
empolgou, como sempre, ainda mais naquele friozinho de fim de tarde.
Nova subida ao pico Tiffin. Voltamos ao hotel, estendemos
as roupas ao sol, nos sentamos. Permanecemos horas assim. Sentimos suave
sensação de calor enquanto líamos e apreciávamos a paisagem.
Após pães com omelete, sucos, café com leite cremoso, durante
a manhã na beira do lago, descida de ônibus para Kathgodan. Entre salgadinhos,
chá no bar da plataforma, circuladas pelas ruas sem graça da cidade sem graça,
o tempo passava lentamente. O relógio não andava. Mas o trem noturno finalmente
partiu, pontualmente.
Em Delhi troquei livros e guias em sebo no meio da
calçada. E saí com dois exemplares bem gorduchos, ambos em inglês, do escritor
russo Leon Tolstoi, Guerra e Paz e Anna Karenina. Teria a viagem toda, e
mais um pouco, para lê-los.
E bem cedo, o trem expresso, com comes e bebes incluídos
na passagem, vagões com cadeiras reclináveis, contribuíram para o astral do
percurso. Na estação ferroviária de Ajmer, ônibus para Pushkar, dessa vez sem a
feira de camelos.
Pushkar mantinha-se linda e charmosa, mas o crescimento
vertiginoso do turismo deixava marcas profundas. Meninos e meninas perambulavam
pelas ruas e becos pedindo ou exigindo dinheiro, agressivamente. Os
restaurantes ofereciam pratos ocidentalizados no formato de bufê. A comida com
gosto de hospital preparada sem inspiração carecia de tempero. Somente depois
de buscas prolongadas, vinham as comidas indianas. Pratos vegetarianos do sul
do país, quase impossível. Paradoxal em cidade sagrada, vegetariana e abstêmia
como Pushkar.
Café da manhã tardio e farto, longas e soltas caminhadas
pela cidade, bastante música clássica indiana nas tendas. Sem a feira de
camelos e os preços abusivos de meses antes, quando de nossa primeira visita,
Pushkar agradava bem mais.
A mente se sentia leve, sem rumo, sem compromissos, sem
roteiros. Os instintos conduziriam para cá, para lá, para lugar nenhum. Do topo
de imensa duna de areia, o deserto de Thar sem fim. Um camelo descansava sob a
sombra de árvore. Ignorávamos as crianças que continuavam a pedir de tudo. Nada
dos bufês ocidentais que infestavam a cidade. Comíamos somente nos raros e
escondidos restaurantes de comida indiana.
Pushkar era vegetariana e proibia o consumo de álcool e
drogas, de acordo com o código de conduta afixado em todos os cantos da cidade.
O comércio de cigarros e do alucinógeno indiano bang, no entanto, se
escancarava pelas lojas e ruas. Nada de ovos, mas tudo de laticínios em geral,
venda de artigos de couro e demais derivados de animais. Sem falar nos golpes
dos ônibus privados que sentíramos na pele meses antes. A cidade sofria nas
mãos da casta dos brâmanes, para quem o lucro falava mais alto. A tal cidade
sagrada, vegetariana e abstêmia constava apenas nos folhetos e guias
turísticos. Os turistas, na esmagadora maioria, consumiam de tudo, sem
ressalvas. E contribuíam para a descaracterização de lugar tão especial.
O pôr-do-sol de um lado do horizonte, enquanto a enorme
lua cheia nascia do lado oposto, foi de cair o queixo. O alto do morro, como se
não bastassem o sol e a lua, proporcionava imagens marcantes das construções
brancas e azuladas da cidadezinha refletida nas águas espelhadas do lago. E,
pelos becos da cidade, a refeição foi de katchori e gulab jamun.
Entre perambuladas pelas pequenas dunas nos arredores da
cidade, cabras se aproximaram e gostaram da companhia. Chamamos o rebanho na
volta à cidade. Seguiram bem de perto pelas ruas. Entra e sai de ruas, e elas
atrás, firmes e animadas. Conseguimos despistá-las no centro da cidade somente
após acelerar o passo e aumentar a distância delas.
De ônibus à cidade não turística de Ajmer. Em restaurante
muito simples em frente à estação ferroviária, pedimos masala dosa. E
vieram pegando fogo de tanta pimenta. As lágrimas se derramavam caudalosas dos
olhos e molhavam as camisetas. A pimenta realmente incendiava por dentro. Mas
não dava para parar de comer. Estava delicioso demais. E viramos atração mais
uma vez. Os cozinheiros, garçons, frequentadores, não acreditavam no que viam,
sobretudo depois de repetirmos os pratos. Os olhos estavam vermelhos, os rostos
molhados de lágrimas que não paravam de brotar. Mas que masala dosa
divino! O café e chá com leite cortou parcialmente o ardor generalizado.
O trem noturno partiu a Delhi, onde foi difícil conseguir
riquixá à outra estação. Mais uma hora e meia para deixar as mochilas no
guarda-volumes na estação de Nova Delhi.
Ao entrar no vagão do expresso Rajdhani, muita euforia
diante da cabine privativa, exclusiva. A melhor cabine de primeira classe do
melhor trem de toda a Índia aguardava ampla e arrumada. Enorme e confortável
sofá de couro, carpete, armário, pia, duas pequenas mesas. O sofá virava cama
abaixo de outra cama embutida mais acima. O serviço dos funcionários internos
primava pela opulência. Trouxeram vasos de flores, jornais, travesseiros, água
mineral, sabonetes, toalhas, entre dezenas de itens para tornar a viagem a mais
agradável possível.
O expresso Rajdhani partiu à tarde rumo a Calcutá e todas
as refeições estariam incluídas no baixo preço das passagens. Serviram chá em
xícaras de porcelana pintada, acompanhado de biscoitos e bolachas. A imensa
janela exibia as paisagens externas nitidamente. O som ambiente divulgava
avisos sobre o funcionamento dos serviços e, para destoar da perfeição,
vomitava lixo musical estadunidense, em imperdoável deslize da eficaz empresa
estatal ferroviária da Índia. Tantas maravilhas da música clássica indiana e
optaram justo por aquilo.
O jantar oferecia opção vegetariana ou não. Para manter a
classe, foi servido em quatro etapas. A primeira consistia de sopa, pães,
torradas, manteiga. A segunda incluía fatias de carneiro assado com batatas
fritas e verdura cozida. A terceira chegou com maçã recheada e legumes. A
quarta e última etapa coroou o lauto jantar com sorvete.
Mais à noite o prestativo funcionário trouxe lençóis
perfumados e cobertores.
Logo ao amanhecer serviram chá com pães e biscoitos. Mas
ainda não era o café da manhã. O verdadeiro surgiu em seguida, incluindo
omeletes, peixe frito, batatas, queijo, maçã, mais chá.
As curtíssimas dezessete horas voaram e Calcutá se fazia
visível pela enorme periferia. A escolha de viajar pelo expresso Rajdhani não
poderia ter sido mais apropriada rumo à última cidade a ser visitada na Índia.
Parabéns ao expresso Rajdhani. Parabéns a todo o sistema ferroviário estatal
indiano, em constante expansão e modernização. Com muita admiração e inveja de
dois viajantes residentes em um Brasil criminosamente rodoviário.
A Índia, os trens, as ferrovias, já deixavam saudades
depois dos quatro meses de explorações pelo país. Foram tantas as imagens,
internas e externas. As estações, os vendedores ambulantes, as filas imensas,
os cagões matinais alinhados nas dormentes, os sacolejos, os assentos, as
camas, os banheiros no estilo indiano, os lugares destinados às bagagens, as
conversas, os indianos que nunca abriam mão de conforto, levando colchão,
lençol, travesseiro, cobertor, gorro, sempre bem alimentados com comida de
verdade, nada de lanches ocidentais. Difícil esquecer aqueles momentos
ferroviários. Nem se eu quisesse. E eu não queria.
Calcutá contava com personalidade e charme de cidade
grande. Diferentemente da industrial Mumbai e da administrativa Delhi, Calcutá
era a capital intelectual da Índia. Ali residiam as principais cabeças
culturais do país e produziam os filmes de qualidade que frequentavam festivais
internacionais. Não parecia ser cidade tão barulhenta como diziam, reservava
áreas verdes, árvores nas calçadas, construções antigas, cafés simpáticos. O
eficiente metrô primava pela limpeza.
O jantar de despedida da Índia, em grande estilo, veio de
apenas masala dosa e idli. Foram vários deles para a felicidade
geral da nação.
A minoria de indianos no avião da manhã tornou-se maioria
em razão do tumulto criado. Não paravam quietos, incomodavam as comissárias com
pedidos insistentes, encaravam as pessoas, fumavam demais. O avião ainda nem
aterrissara e se levantaram espalhafatosos. E imediatamente me lembrei das
sessões de cinema quando os espectadores se assanhavam e saíam da sala antes do
final do filme. Era a Índia que não queria ir embora, mesmo próximo do
desembarque na tenebrosa Tailândia.
O avião pousou à noite em Bancoc debaixo de calor forte e
abafado. Foi difícil encontrar quarto livre no hotel em que me hospedara dois
anos antes. Um pat thay na rua, outras coisinhas para completar o
estômago e cama.
Pela famigerada região de Khao San tentamos traçar planos
das próximas etapas. Não havia disposição para nada. Rango novamente nas
barracas de rua, local mais saboroso, mais fresco e ventilado que os
restaurantes. Entre mapas, fotos, guias, agências de viagens, muitos planos,
muitas incertezas, nada decidido. O calor beirava o insuportável, fazendo
transpirar por todas as partes do corpo, nas ruas, bares, sob o ventilador do
quarto do hotel. A região do Grand Palace lotava de turistas como sempre.
À noite, durante andanças pelas ruas previsíveis de Khao
San, eu vestia camiseta amarela com frases e propagandas de produtos
tipicamente brasileiros. De dentro de um das dezenas de bares entupidos de
turistas, saiu um cabeludo de pouco mais de vinte anos. Correu em minha
direção, balançando os braços, gritando qualquer coisa. Só quando se aproximou
percebi o motivo. Brasileiro e por muito tempo sem contatos com outros
brasileiros, ele me reconhecera pela camiseta. Os olhos dele brilhavam de
emoção indisfarçável. E convidou à mesa do bar junto a mais brasileiros que
também viajavam havia muito tempo. Moraram na Austrália, passaram por vários
países e planejavam voltar ao Brasil. Foram horas e copos sem perceber o tempo
passar. Brasileiros fazem festa quando encontram brasileiros, sobretudo durante
longas viagens restritas a contatos com turistas insípidos dos demais países.
Depois da estonteante Índia, nada despertava
entusiasmo. O tremendo equívoco cometido no roteiro da viagem começava a
aparecer. Eu já sentira parcialmente a frustração dois anos antes. O sudeste
asiático atraía bem menos que o subcontinente indiano. Desta vez o choque
negativo fora mais intenso. A decisão correta seria ter tomado rumo oeste, em
direção ao Paquistão, Irã, Síria, Turquia. A viagem ganharia contornos mais
desafiadores e instigantes.
continua...
Fico pensando como escolheu as fotos...queria mais...
ResponderExcluirOlá, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirA seleção de fotos foi bem difícil. Por bem ou por mal, tive que incluir umas e excluir muitas.
Abraços!
Adorei a descrição da India. Um dia ainda vou conhecer esse país.
ResponderExcluirOi Marcela, obrigado pela visita.
ResponderExcluirNessa minha segunda vez na Índian fiquei quatro meses mergulhado nas paisagens, culturas, povos, cheiros, comidas, sons. Tudo para degustar esse que foi o país que mais me encantou depois do Brasil.
Abraços!
Emocionante, já estou com saudades, apenas dei asas à minha imaginação e vivi momentos inesquecíveis, vi vilarejos, Himalaia, templos, picos, cidades pitorescas...experimentei uma culinária um tanto exótica...conheci pessoas com suas diferenças...vivi momentos intensos, ora alegres, ora apreensivos...aprendi muito sobre a cultura indiana. Adorei cada momento que passei aqui, lendo seus relatos tão descritivos. Não vou desembarcar, continuo...mas quero lhe dizer, muito obrigada por ter me permitido o acesso a tamanho acervo literário. Até breve.
ResponderExcluirIvete, até eu sinto saudades, pelo tempo que já passou da viagem, por ficar anos sem reler esses relatos, por reviver parte do que senti naqueles momentos únicos no planeta Índia.
ResponderExcluirE você me ajudou nessa empreitada gratificante.
Obrigado!