...continuação
Em Kerala não se via tanta vaca, religiosidade, lassi
e coalhada como nos estados da parte central do país. Sem ser bonita ou
marcante, Kollan seduzia pela simpatia e simplicidade.
De trem em percurso rápido até Thiruvananthapuran, a
capital de Kerala. O quarto da espelunca escolhida vivia na penumbra devido às
lâmpadas quebradas. Os funcionários jamais as trocavam. Os mosquitos reinavam
absolutos. Do chuveiro do banheiro, caíam apenas pingos isolados.
De nome tão longo, Thiruvananthapuran desagradava da
cabeça aos pés. Não faltava sujeira e barulho pelas ruas. Restaurantes ruins
mantinham a má reputação culinária de Kerala. E a turística praia de Kovallan,
perto dali, repelia com preços altos, acesso ruim, frequência de estrangeiros
convencionais, rumores de pequenos roubos.
Era a virada do ano. De antes da meia noite até alta
madrugada o hotel mergulhou em gritaria. Misturados com hóspedes estrangeiros,
funcionários imitavam os gringos, berravam, dançavam, se embebedavam, punham
músicas ocidentais no último volume. Nada nos seduzia a participar. Tudo era
agressivo e sem graça. Os terríveis mosquitos atacaram no escuro e nem o
ventilador os expulsou.
De ônibus local à praia de Kovallan. O conjunto de
diversas praias guardava ainda parte do charme original, anterior à invasão do
turismo, se compondo de coqueirais ao lado de pequenas baías, rochas,
pescadores com redes e barcos típicos. Os melhores pontos se afastavam da
agitação internacional e ofereciam praias mais bonitas, preservadas, quase
vazias. Mas o turismo predatório, com loiros selvagens do tipo que estavam no
barco pelos canais, maltratara demais a natureza. Vendedores de bugigangas e
pedintes abordavam a todo instante, grudavam, insistiam, tiravam chances de
momentos de paz. Algumas turistas tiravam a parte de cima do biquíni em flagrante
desrespeito à cultura local.
No cinema de Thiruvananthapuran para assistir a filme
falado em tamil. Não havia legendas, mas a estória simples divertia. O
personagem principal se vestia de mulher para se aproximar da amada, se
envolvendo em trapalhadas ingênuas. As cenas de dança se destacavam pelos
cenários inusitados e alheios ao filme. Do nada, surgiam dançarinos de dentro
de vagões de metrô, bailavam pelas plataformas e escadarias e, em segundos,
passavam a bailar em montanhas nevadas. O público acompanhava com palmas. A
sessão durou três horas, com intervalo, mas passou rápido.
Os filmes indianos não possuíam legendas, apenas o som
original. E isso em país cuja maioria dos estados falava apenas a própria
língua. Nos suplementos culturais dos jornais, os filmes anunciados vinham
separados, em hindi, kanada, malalayo, tamil,
bengalês, inglês, entre outras. Não era à toa que a Índia tinha a maior
produção cinematográfica do mundo. Em sessão do meio da tarde de dia útil, o
cinema lotava e longa fila se formava do lado de fora. Os atores atuavam em
vários filmes ao mesmo tempo. Cenas podiam ser reaproveitadas em outros filmes.
Havia debates no parlamento indiano sobre projeto de lei que tratava da
proibição do mesmo ator atuar em mais de trinta filmes ao mesmo tempo. Jamais
descobri como chegaram ao número trinta, mas fornecia ideia das dimensões da
indústria cinematográfica indiana.
Não havia linha ferroviária de Thiruvananthapuran ao
estado de Tamil Nadu. O ônibus noturno, velho e sujo deixava para trás Kerala,
o estado indiano sem coalhadas, sem vacas nas ruas, de comida insípida, dos
turistas ocidentais e selvagens.
Amanhecia no desembarque em Madurai, sul o estado de Tamil
Nadu. O bagageiro inferior do ônibus lambuzou de óleo e graxa as mochilas.
Depois de tentar hotéis pavorosos, sujos e caindo aos pedaços, escolhemos um
ainda inteiro, com o quarto em andar alto.
Na cidade sagrada de Madurai, a Índia de verdade. A
atmosfera indiana seduzia em cada beco, esquina, num prazer indescritível em se
perder nos trechos mais escondidos da cidade. A um quarteirão do hotel, inúmeras
vacas, ciclo-riquixás, bazares, pequenas cerimônias, aquela confusão absurda
nas ruas, cruzamentos, pedaços de calçadas. Era gente, muita gente. Vida pura.
Viva! O mais importante estado do sul da Índia se destacava pelas construções dravidianas.
Junto com os Vedas, os Dravidianos
são considerados os povos fundadores da Índia, não sofrendo influências dos
invasores da Ásia Central que deixaram marcas na arquitetura, culinária,
religião e costumes na Índia Central. Principal etnia do estado, de pele
escura, o povo tamil é herdeiro direto dos Dravidianos.
Visita aos interiores do principal templo hindu e centro
de peregrinação da cidade. Nos quatro cantos do complexo erguiam-se torres
altas ornamentadas com divindades em alto relevo e intensamente coloridas. A
força do templo residia na amplidão e nas atrações aos peregrinos. Tanto que em
extensas áreas internas e em meio aos pilares, espalhavam-se dezenas de
lojinhas e barracas de artigos religiosos, artesanato, bijuterias, lembranças.
Os pedintes, verdadeiros atores, estalavam até chicotes para obter o dinheiro.
Resistimos bravamente sem contribuir com a mendicância.
Madurai merecia mais dias de explorações. Nada de viajar,
mudar, procurar hotéis. Melhor soltos, entre voltas e mais voltas pelas ruelas,
pequenos templos. Sem pressa na contemplação da movimentação dos peregrinos e
habitantes. De vez em quando conversas com palavras, sinais, sorrisos. Os
moradores saíam das casas ou se debruçavam nas janelas para se comunicarem. Os
homens vestiam sarongues estampados, curtos pelo calor. As mulheres não
abriam mão dos belíssimos saris.
Madurai é Índia!
As páginas do guia estrangeiro continuavam com os
escândalos de desinformação. Além de erros e omissões constantes, faziam
questão de enfatizar detalhes em desrespeito à cultura indiana. Exageravam nas
dicas sobre bebidas alcoólicas, sobretudo onde se proibia a comercialização,
chegando ao disparate de indicar onde tinha ilegalmente, como pedir
discretamente, até como subornar garçons. Para o tal guia, o bar ou restaurante
merecia ou não indicações se vendia cerveja. A maioria dos turistas de mochila
carregava o guia debaixo do braço, para todos os lados, seguindo-o fielmente,
como bíblia.
Fora da cama ainda no escuro devido ao volume das músicas
religiosas vindas dos alto-falantes. Em trem vazio, um casal de alemães se
sentou no mesmo compartimento, após percorrer toda a plataforma na busca do
melhor vagão. Com menos de trinta anos, eram simpáticos e comunicativos, apesar
de ela não falar praticamente nada de inglês. Em poucas horas, sem atrasos,
chegávamos a Thiruchirapalli.
Depois de nos perdermos nas ruas da cidade, graças aos
erros no mapa do guia, nos instalamos em hotel decadente, com quartos e
banheiros imensos, encanamento com problemas, telas contra mosquitos
destroçadas nas janelas, amplas sacadas privativas. Era construção mal
conservada em meio a parque semiabandonado. Silêncio e tranquilidade.
O restaurante animado, com mesas ao ar livre, frequentado
apenas por indianos, parecia sujo e mal cuidado. Os turistas estrangeiros não
tomavam a coragem de arriscar. Arriscamos. E valeu e muito a pena. Servia a legítima
comida vegetariana do sul da Índia. E legítimo também o atendimento.
Desorganizado, rude, descuidado. O inglês do garçom misturado com o sotaque tamil
era quase incompreensível. Mas o que mais importava era a comida. Perfeitos os
inúmeros masala dosa, idli. E usando apenas as mãos. Foi um
banquete deliciosamente apimentado. Para acompanhar, chá com leite ou café com
leite cremoso. Os olhos brilhavam, o estômago agradecia. Viramos atração na
mesa cercada de indianos. Além do garçom principal, havia crianças que
recolhiam pratos e copos. Vez ou outra, paravam em grupos e ficavam a nos
observar, rindo, bem de perto. O casal alemão nos viu da rua e entrou também, apesar
da desconfiança com o aspecto. Surgiu empatia entre os quatro e os assuntos não
acabavam. O dialogo entre ela e a alemã chamava a atenção. Quase não falavam, se
restringiam a substantivos, adjetivos, verbos soltos. Mas se comunicavam.
O restaurante fechou, seguimos pelas ruas, entramos na
área do hotel. As conversas não esfriavam. Ainda mais que o casal partiria na
manhã seguinte.
Após café da manhã
tardio, ida ao templo principal, encravado acima do rochedo. Trechos
fascinantes ao longo dos bazares próximos às escadarias. O templo conquistava
mais pela localização privilegiada e a vista do alto do que pelos discretos
interiores. Valia a visita, a caminhada, a subida.
De volta ao centro da cidade, o restaurante com aspecto
mais desanimador que o da noite anterior. Era frequentado por indianos bem
simples e servia apenas o thali, espécie de rodízio vegetariano do sul
da Índia. As instalações eram para lá de precárias. Sem cardápios ou pedidos,
esperamos o início dos serviços. Puseram folhas de bananeira sobre a mesa, uma
para cada um, depois de limpá-las com panos encardidos tirados de balde com
água escura. Em frente a cada uma das folhas de bananeira dispuseram diversos e
pequenos potes de tempero líquido e de legumes cozidos. Outro garçom apareceu
com enorme caldeirão e esparramou uma montanha de arroz branco sobre a folha de
bananeira. Apareceu mais um e despejou um punhadinho de coco ralado ao lado do
arroz. Outro ainda trouxe o pão que, de tão grande e fino, se desfazia assim
que o tocávamos. Nada de talheres, apenas a mão, a mão direita. As mesas ao
lado não paravam de nos observar. E atacamos. Formávamos blocos de arroz,
juntávamos com coco ralado, mergulhávamos em um ou mais dos molhos à frente.
Beliscávamos pedaços do pão delgado. O sabor agradava, sobretudo pelos molhos
fortemente apimentados e diferentes entre si. Bastava baixar a montanha do
arroz, o coco ralado desaparecer, o pão acabar ou os molhos secarem, para os
garçons imediatamente reabastecerem sem dó nem piedade. Se não implorássemos
para parar, iríamos até o estômago estourar. E deixavam também a jarra de água
de torneira sobre as mesas. Preferimos água mineral. Queríamos viver muito
ainda... Viramos, como não podia deixar de ser, a grande atração do
restaurante. Os demais estrangeiros jamais entravam ali. Os garçons e clientes
nos sorriam e apoiavam quando aceitávamos mais arroz, coco, pão, molhos. No
final, as mãos direitas estavam para lá de lambuzadas. Não havia e nem
precisávamos de guardanapos. Pias providenciais socorriam os clientes nos
fundos do restaurante. Saímos satisfeitos sob os olhares sorridentes de todos.
Thiruchirapalli, agitada e barulhenta como autêntica
cidade indiana, reservava povo simpático, curioso e, na maioria, desprovido de
segundas intenções. A imagem do hotel evoluiu com o tempo e se tornou quase
ideal. Tiramos proveito da imensidão do quarto, do banheiro, da sacada ampla e
com cadeiras sombreadas, do silêncio nos corredores e demais dependências.
Café da manhã na base de ovos mexidos temperados com
cebolas e condimentos. De ônibus local ao enorme e fascinante complexo de
templos hindus de Sri Ranganathaswamy. Maravilhoso! Não nos cansamos de nos
deslumbrar com a arquitetura e em percorrer os ricos interiores, cruzando
portais dos vários círculos murados e concêntricos. Templos, oratórios, salões
com centenas de colunas esculpidas. E o vaivém dos peregrinos e fiéis. A
atmosfera nas diversas partes internas seduzia pela paz e ficamos horas por ali
sem sentir cansaço ou monotonia. De ônibus à noite para Thiruchirapalli.
De trem à cidade de Thanjavur. Valeu e muito explorar o
complexo hindu que incluía templos de diversos tamanhos em ótimo estado de
conservação. De cor natural e dedicados a Shiva, apresentavam ricos
trabalhos em pedra para formar figuras divinas em alto relevo. Impressionantes
pinturas nas paredes e tetos retratavam o cotidiano da época. Nada de pressa por
entre as várias construções para apreciar tanta beleza preservada. Retorno a
Thiruchirapalli em trem lotado. Pela porta da extremidade do vagão, as
paisagens próximas à ferrovia.
Para não perder o costume de comer bem no jantar, mais
prazeres com os pratos vegetarianos do sul da Índia no restaurante favorito.
Em trem moderno rumo à capital do estado de Tamil Nadu. Na
época ainda chamada de Madras, Chenai representava a filial do inferno na
terra. Em quase todos os sentidos.
Nos hotéis mais em conta, nas imediações da estação
ferroviária, sempre a mesma resposta seca: “está cheio”. Em qualquer dia, em
qualquer hora, a resposta seria sempre a mesma: “está cheio”. Parecia gravação.
Sobrou hotel cobrando quatro vezes mais que as diárias habituais em outras
cidades indianas. E ainda incluíam mais 20% de “taxas” sei lá de quê. A
recepção levou a quarto pequeno, abafado, com odor de mofo e baratas circulando
impunemente. Com jatos fracos e irregulares, o chuveiro do banheiro mais
molhava a parede.
As ruas de Chenai estavam arrebentadas, esburacadas,
sujas, barulhentas. O atendimento na maioria dos lugares primava pela
desorganização e rispidez.
Para a compra das passagens de trem ao estado de Orissa,
através da concorrida linha entre Chenai e Calcutá, foi uma verdadeira via
sacra. Foram quatro lugares distante entre si, invariavelmente mal atendidos e
enfrentando imensas filas. Somente depois de cinco horas de peregrinações e
chateações conseguimos os tão preciosos bilhetes de trem.
Entre ofertas apenas em inglês, escolhi o livro Cousin Bette, de Honoré de Balzac em
sebo despretensioso do centro da cidade.
Mais cansaço para obter informações sobre ônibus para a
cidade litorânea de Mahabalipuram. Não havia ferrovias até lá e ninguém
informava nada de útil.
E mais facetas de Chenai no terminal rodoviário oficial.
Era o caos completo. Não havia nenhum tipo de lógica no funcionamento. Nem
Gujarat era tão confuso. Não existiam plataformas nem horários ou destinos
afixados nos veículos. Corríamos com as mochilas nas costas de um lado para
outro, completamente perdidos, na tentativa de descobrir qual, dentre as
dezenas de ônibus, seguiria para Mahabalipuram. Abutres queriam cobrar para conseguir
assentos nos ônibus desejados. O exército de parasitas seguia e assediava. Foram
inúmeras consultas a vários motoristas até encontrar, entrar e sentar tranquilamente
no veículo certo. Mesmo assim, surgiu do nada um pivete que pedia dinheiro,
alegando ter sido ele quem encontrara o ônibus. Está esperando a grana até
hoje! Livres, por alguns dias, de Chenai.
O curto percurso transcorreu rapidamente à pequena
Mahabalipuram. Rodamos bastante para encontrar hotel barato oferecendo quarto
básico com mosquiteiro, banheiro e chuveiro forte.
Durante a madrugada, as músicas dos alto-falantes de
templo próximo ao hotel. Crianças batiam lata incessantemente. O Pongal, festival da colheita, se
aproximava e a cidade não dormia. Os moradores de Tamil Nadu seguiam o rumo
normal da vida.
Mahabalipuram abrigava os únicos templos localizados
na beira da praia em toda a Índia. Eram maravilhosos com os trabalhos em rocha,
externa e internamente, grutas. Esculturas, elefantes entalhados, cenas do
hinduismo e da história dos ancestrais do povo tamil de mil anos atrás
se distribuíam pelos quatro cantos do complexo. O encanto provocado pela beleza
e riqueza dos templos compensava o assédio dos pedintes, vendedores de
bugigangas, crianças insistentes.
continua...
Belíssimas fotos! Dignas de participar em concursos.
ResponderExcluirQuando estive em Roma, voltando de Portugal para retornar ao Brasil via aeroporto Fiumicino, passei pelo mesmo problema de hotel que vc. Porém, um anjo nos socorreu e levou-nos a um albergue muito limpo, tranquilo; o único porém é que a acomodação foi coletiva, eu na ala feminina, meu marido na masculina. No mais, tudo de bom!
Olá, obrigado pelos elogios.
ResponderExcluirRealmente esses contratempos fazem parte das viagens independentes. Mas sempre vale a pena viajar livre, leve e solto.
E nos adoramos isso, certo?
Abraços!
...............................................Finalmente voltávamos à Índia de verdade. A atmosfera indiana seduzia em cada beco, esquina, num prazer indescritível em se perder nos trechos mais escondidos da cidade. A um quarteirão do hotel nos deparávamos com inúmeras vacas, ciclo-riquixás, bazares, pequenas cerimônias, aquela confusão absurda nas ruas, cruzamentos, pedaços de calçadas. Era gente, muita gente. Vida pura. Viva!
ResponderExcluir...............................................
Esta é a India que sonho conhecer!
A cultura indiana é muito rica e diversificada. Continuo...
Bom dia!!!
ResponderExcluirE tenho certeza que conhecerá, adorará e relatará em detalhes para que eu e outros amantes de viagens profundas compartilhemos suas emoções.
Obrigado pelo comentário. Continue...
Abraços!