sábado, 12 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 6/12)

...continuação
Em Kerala não se via tanta vaca, religiosidade, lassi e coalhada como nos estados da parte central do país. Sem ser bonita ou marcante, Kollan seduzia pela simpatia e simplicidade.
De trem em percurso rápido até Thiruvananthapuran, a capital de Kerala. O quarto da espelunca escolhida vivia na penumbra devido às lâmpadas quebradas. Os funcionários jamais as trocavam. Os mosquitos reinavam absolutos. Do chuveiro do banheiro, caíam apenas pingos isolados.
De nome tão longo, Thiruvananthapuran desagradava da cabeça aos pés. Não faltava sujeira e barulho pelas ruas. Restaurantes ruins mantinham a má reputação culinária de Kerala. E a turística praia de Kovallan, perto dali, repelia com preços altos, acesso ruim, frequência de estrangeiros convencionais, rumores de pequenos roubos.
Era a virada do ano. De antes da meia noite até alta madrugada o hotel mergulhou em gritaria. Misturados com hóspedes estrangeiros, funcionários imitavam os gringos, berravam, dançavam, se embebedavam, punham músicas ocidentais no último volume. Nada nos seduzia a participar. Tudo era agressivo e sem graça. Os terríveis mosquitos atacaram no escuro e nem o ventilador os expulsou.
De ônibus local à praia de Kovallan. O conjunto de diversas praias guardava ainda parte do charme original, anterior à invasão do turismo, se compondo de coqueirais ao lado de pequenas baías, rochas, pescadores com redes e barcos típicos. Os melhores pontos se afastavam da agitação internacional e ofereciam praias mais bonitas, preservadas, quase vazias. Mas o turismo predatório, com loiros selvagens do tipo que estavam no barco pelos canais, maltratara demais a natureza. Vendedores de bugigangas e pedintes abordavam a todo instante, grudavam, insistiam, tiravam chances de momentos de paz. Algumas turistas tiravam a parte de cima do biquíni em flagrante desrespeito à cultura local.

No cinema de Thiruvananthapuran para assistir a filme falado em tamil. Não havia legendas, mas a estória simples divertia. O personagem principal se vestia de mulher para se aproximar da amada, se envolvendo em trapalhadas ingênuas. As cenas de dança se destacavam pelos cenários inusitados e alheios ao filme. Do nada, surgiam dançarinos de dentro de vagões de metrô, bailavam pelas plataformas e escadarias e, em segundos, passavam a bailar em montanhas nevadas. O público acompanhava com palmas. A sessão durou três horas, com intervalo, mas passou rápido.
Os filmes indianos não possuíam legendas, apenas o som original. E isso em país cuja maioria dos estados falava apenas a própria língua. Nos suplementos culturais dos jornais, os filmes anunciados vinham separados, em hindi, kanada, malalayo, tamil, bengalês, inglês, entre outras. Não era à toa que a Índia tinha a maior produção cinematográfica do mundo. Em sessão do meio da tarde de dia útil, o cinema lotava e longa fila se formava do lado de fora. Os atores atuavam em vários filmes ao mesmo tempo. Cenas podiam ser reaproveitadas em outros filmes. Havia debates no parlamento indiano sobre projeto de lei que tratava da proibição do mesmo ator atuar em mais de trinta filmes ao mesmo tempo. Jamais descobri como chegaram ao número trinta, mas fornecia ideia das dimensões da indústria cinematográfica indiana.
Não havia linha ferroviária de Thiruvananthapuran ao estado de Tamil Nadu. O ônibus noturno, velho e sujo deixava para trás Kerala, o estado indiano sem coalhadas, sem vacas nas ruas, de comida insípida, dos turistas ocidentais e selvagens.
Amanhecia no desembarque em Madurai, sul o estado de Tamil Nadu. O bagageiro inferior do ônibus lambuzou de óleo e graxa as mochilas. Depois de tentar hotéis pavorosos, sujos e caindo aos pedaços, escolhemos um ainda inteiro, com o quarto em andar alto.
Na cidade sagrada de Madurai, a Índia de verdade. A atmosfera indiana seduzia em cada beco, esquina, num prazer indescritível em se perder nos trechos mais escondidos da cidade. A um quarteirão do hotel, inúmeras vacas, ciclo-riquixás, bazares, pequenas cerimônias, aquela confusão absurda nas ruas, cruzamentos, pedaços de calçadas. Era gente, muita gente. Vida pura. Viva! O mais importante estado do sul da Índia se destacava pelas construções dravidianas. Junto com os Vedas, os Dravidianos são considerados os povos fundadores da Índia, não sofrendo influências dos invasores da Ásia Central que deixaram marcas na arquitetura, culinária, religião e costumes na Índia Central. Principal etnia do estado, de pele escura, o povo tamil é herdeiro direto dos Dravidianos.
Visita aos interiores do principal templo hindu e centro de peregrinação da cidade. Nos quatro cantos do complexo erguiam-se torres altas ornamentadas com divindades em alto relevo e intensamente coloridas. A força do templo residia na amplidão e nas atrações aos peregrinos. Tanto que em extensas áreas internas e em meio aos pilares, espalhavam-se dezenas de lojinhas e barracas de artigos religiosos, artesanato, bijuterias, lembranças. Os pedintes, verdadeiros atores, estalavam até chicotes para obter o dinheiro. Resistimos bravamente sem contribuir com a mendicância.

Madurai merecia mais dias de explorações. Nada de viajar, mudar, procurar hotéis. Melhor soltos, entre voltas e mais voltas pelas ruelas, pequenos templos. Sem pressa na contemplação da movimentação dos peregrinos e habitantes. De vez em quando conversas com palavras, sinais, sorrisos. Os moradores saíam das casas ou se debruçavam nas janelas para se comunicarem. Os homens vestiam sarongues estampados, curtos pelo calor. As mulheres não abriam mão dos belíssimos saris.
Madurai é Índia!
As páginas do guia estrangeiro continuavam com os escândalos de desinformação. Além de erros e omissões constantes, faziam questão de enfatizar detalhes em desrespeito à cultura indiana. Exageravam nas dicas sobre bebidas alcoólicas, sobretudo onde se proibia a comercialização, chegando ao disparate de indicar onde tinha ilegalmente, como pedir discretamente, até como subornar garçons. Para o tal guia, o bar ou restaurante merecia ou não indicações se vendia cerveja. A maioria dos turistas de mochila carregava o guia debaixo do braço, para todos os lados, seguindo-o fielmente, como bíblia.
Fora da cama ainda no escuro devido ao volume das músicas religiosas vindas dos alto-falantes. Em trem vazio, um casal de alemães se sentou no mesmo compartimento, após percorrer toda a plataforma na busca do melhor vagão. Com menos de trinta anos, eram simpáticos e comunicativos, apesar de ela não falar praticamente nada de inglês. Em poucas horas, sem atrasos, chegávamos a Thiruchirapalli.
Depois de nos perdermos nas ruas da cidade, graças aos erros no mapa do guia, nos instalamos em hotel decadente, com quartos e banheiros imensos, encanamento com problemas, telas contra mosquitos destroçadas nas janelas, amplas sacadas privativas. Era construção mal conservada em meio a parque semiabandonado. Silêncio e tranquilidade.
O restaurante animado, com mesas ao ar livre, frequentado apenas por indianos, parecia sujo e mal cuidado. Os turistas estrangeiros não tomavam a coragem de arriscar. Arriscamos. E valeu e muito a pena. Servia a legítima comida vegetariana do sul da Índia. E legítimo também o atendimento. Desorganizado, rude, descuidado. O inglês do garçom misturado com o sotaque tamil era quase incompreensível. Mas o que mais importava era a comida. Perfeitos os inúmeros masala dosa, idli. E usando apenas as mãos. Foi um banquete deliciosamente apimentado. Para acompanhar, chá com leite ou café com leite cremoso. Os olhos brilhavam, o estômago agradecia. Viramos atração na mesa cercada de indianos. Além do garçom principal, havia crianças que recolhiam pratos e copos. Vez ou outra, paravam em grupos e ficavam a nos observar, rindo, bem de perto. O casal alemão nos viu da rua e entrou também, apesar da desconfiança com o aspecto. Surgiu empatia entre os quatro e os assuntos não acabavam. O dialogo entre ela e a alemã chamava a atenção. Quase não falavam, se restringiam a substantivos, adjetivos, verbos soltos. Mas se comunicavam.
O restaurante fechou, seguimos pelas ruas, entramos na área do hotel. As conversas não esfriavam. Ainda mais que o casal partiria na manhã seguinte.

 Após café da manhã tardio, ida ao templo principal, encravado acima do rochedo. Trechos fascinantes ao longo dos bazares próximos às escadarias. O templo conquistava mais pela localização privilegiada e a vista do alto do que pelos discretos interiores. Valia a visita, a caminhada, a subida.
De volta ao centro da cidade, o restaurante com aspecto mais desanimador que o da noite anterior. Era frequentado por indianos bem simples e servia apenas o thali, espécie de rodízio vegetariano do sul da Índia. As instalações eram para lá de precárias. Sem cardápios ou pedidos, esperamos o início dos serviços. Puseram folhas de bananeira sobre a mesa, uma para cada um, depois de limpá-las com panos encardidos tirados de balde com água escura. Em frente a cada uma das folhas de bananeira dispuseram diversos e pequenos potes de tempero líquido e de legumes cozidos. Outro garçom apareceu com enorme caldeirão e esparramou uma montanha de arroz branco sobre a folha de bananeira. Apareceu mais um e despejou um punhadinho de coco ralado ao lado do arroz. Outro ainda trouxe o pão que, de tão grande e fino, se desfazia assim que o tocávamos. Nada de talheres, apenas a mão, a mão direita. As mesas ao lado não paravam de nos observar. E atacamos. Formávamos blocos de arroz, juntávamos com coco ralado, mergulhávamos em um ou mais dos molhos à frente. Beliscávamos pedaços do pão delgado. O sabor agradava, sobretudo pelos molhos fortemente apimentados e diferentes entre si. Bastava baixar a montanha do arroz, o coco ralado desaparecer, o pão acabar ou os molhos secarem, para os garçons imediatamente reabastecerem sem dó nem piedade. Se não implorássemos para parar, iríamos até o estômago estourar. E deixavam também a jarra de água de torneira sobre as mesas. Preferimos água mineral. Queríamos viver muito ainda... Viramos, como não podia deixar de ser, a grande atração do restaurante. Os demais estrangeiros jamais entravam ali. Os garçons e clientes nos sorriam e apoiavam quando aceitávamos mais arroz, coco, pão, molhos. No final, as mãos direitas estavam para lá de lambuzadas. Não havia e nem precisávamos de guardanapos. Pias providenciais socorriam os clientes nos fundos do restaurante. Saímos satisfeitos sob os olhares sorridentes de todos.
Thiruchirapalli, agitada e barulhenta como autêntica cidade indiana, reservava povo simpático, curioso e, na maioria, desprovido de segundas intenções. A imagem do hotel evoluiu com o tempo e se tornou quase ideal. Tiramos proveito da imensidão do quarto, do banheiro, da sacada ampla e com cadeiras sombreadas, do silêncio nos corredores e demais dependências.
Café da manhã na base de ovos mexidos temperados com cebolas e condimentos. De ônibus local ao enorme e fascinante complexo de templos hindus de Sri Ranganathaswamy. Maravilhoso! Não nos cansamos de nos deslumbrar com a arquitetura e em percorrer os ricos interiores, cruzando portais dos vários círculos murados e concêntricos. Templos, oratórios, salões com centenas de colunas esculpidas. E o vaivém dos peregrinos e fiéis. A atmosfera nas diversas partes internas seduzia pela paz e ficamos horas por ali sem sentir cansaço ou monotonia. De ônibus à noite para Thiruchirapalli.
De trem à cidade de Thanjavur. Valeu e muito explorar o complexo hindu que incluía templos de diversos tamanhos em ótimo estado de conservação. De cor natural e dedicados a Shiva, apresentavam ricos trabalhos em pedra para formar figuras divinas em alto relevo. Impressionantes pinturas nas paredes e tetos retratavam o cotidiano da época. Nada de pressa por entre as várias construções para apreciar tanta beleza preservada. Retorno a Thiruchirapalli em trem lotado. Pela porta da extremidade do vagão, as paisagens próximas à ferrovia.
Para não perder o costume de comer bem no jantar, mais prazeres com os pratos vegetarianos do sul da Índia no restaurante favorito.
Em trem moderno rumo à capital do estado de Tamil Nadu. Na época ainda chamada de Madras, Chenai representava a filial do inferno na terra. Em quase todos os sentidos.

Nos hotéis mais em conta, nas imediações da estação ferroviária, sempre a mesma resposta seca: “está cheio”. Em qualquer dia, em qualquer hora, a resposta seria sempre a mesma: “está cheio”. Parecia gravação. Sobrou hotel cobrando quatro vezes mais que as diárias habituais em outras cidades indianas. E ainda incluíam mais 20% de “taxas” sei lá de quê. A recepção levou a quarto pequeno, abafado, com odor de mofo e baratas circulando impunemente. Com jatos fracos e irregulares, o chuveiro do banheiro mais molhava a parede.
As ruas de Chenai estavam arrebentadas, esburacadas, sujas, barulhentas. O atendimento na maioria dos lugares primava pela desorganização e rispidez.
Para a compra das passagens de trem ao estado de Orissa, através da concorrida linha entre Chenai e Calcutá, foi uma verdadeira via sacra. Foram quatro lugares distante entre si, invariavelmente mal atendidos e enfrentando imensas filas. Somente depois de cinco horas de peregrinações e chateações conseguimos os tão preciosos bilhetes de trem.
Entre ofertas apenas em inglês, escolhi o livro Cousin Bette, de Honoré de Balzac em sebo despretensioso do centro da cidade.
Mais cansaço para obter informações sobre ônibus para a cidade litorânea de Mahabalipuram. Não havia ferrovias até lá e ninguém informava nada de útil.
E mais facetas de Chenai no terminal rodoviário oficial. Era o caos completo. Não havia nenhum tipo de lógica no funcionamento. Nem Gujarat era tão confuso. Não existiam plataformas nem horários ou destinos afixados nos veículos. Corríamos com as mochilas nas costas de um lado para outro, completamente perdidos, na tentativa de descobrir qual, dentre as dezenas de ônibus, seguiria para Mahabalipuram. Abutres queriam cobrar para conseguir assentos nos ônibus desejados. O exército de parasitas seguia e assediava. Foram inúmeras consultas a vários motoristas até encontrar, entrar e sentar tranquilamente no veículo certo. Mesmo assim, surgiu do nada um pivete que pedia dinheiro, alegando ter sido ele quem encontrara o ônibus. Está esperando a grana até hoje! Livres, por alguns dias, de Chenai.
O curto percurso transcorreu rapidamente à pequena Mahabalipuram. Rodamos bastante para encontrar hotel barato oferecendo quarto básico com mosquiteiro, banheiro e chuveiro forte.
Durante a madrugada, as músicas dos alto-falantes de templo próximo ao hotel. Crianças batiam lata incessantemente. O Pongal, festival da colheita, se aproximava e a cidade não dormia. Os moradores de Tamil Nadu seguiam o rumo normal da vida.
Mahabalipuram abrigava os únicos templos localizados na beira da praia em toda a Índia. Eram maravilhosos com os trabalhos em rocha, externa e internamente, grutas. Esculturas, elefantes entalhados, cenas do hinduismo e da história dos ancestrais do povo tamil de mil anos atrás se distribuíam pelos quatro cantos do complexo. O encanto provocado pela beleza e riqueza dos templos compensava o assédio dos pedintes, vendedores de bugigangas, crianças insistentes.
continua...

4 comentários:

  1. Belíssimas fotos! Dignas de participar em concursos.
    Quando estive em Roma, voltando de Portugal para retornar ao Brasil via aeroporto Fiumicino, passei pelo mesmo problema de hotel que vc. Porém, um anjo nos socorreu e levou-nos a um albergue muito limpo, tranquilo; o único porém é que a acomodação foi coletiva, eu na ala feminina, meu marido na masculina. No mais, tudo de bom!

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  2. Olá, obrigado pelos elogios.
    Realmente esses contratempos fazem parte das viagens independentes. Mas sempre vale a pena viajar livre, leve e solto.
    E nos adoramos isso, certo?
    Abraços!

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  3. ...............................................Finalmente voltávamos à Índia de verdade. A atmosfera indiana seduzia em cada beco, esquina, num prazer indescritível em se perder nos trechos mais escondidos da cidade. A um quarteirão do hotel nos deparávamos com inúmeras vacas, ciclo-riquixás, bazares, pequenas cerimônias, aquela confusão absurda nas ruas, cruzamentos, pedaços de calçadas. Era gente, muita gente. Vida pura. Viva!
    ...............................................
    Esta é a India que sonho conhecer!
    A cultura indiana é muito rica e diversificada. Continuo...

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  4. Bom dia!!!
    E tenho certeza que conhecerá, adorará e relatará em detalhes para que eu e outros amantes de viagens profundas compartilhemos suas emoções.
    Obrigado pelo comentário. Continue...
    Abraços!

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