domingo, 20 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 10/12)

...continuação
Surgiu a ideia de voar Bancoc, Yangon, circulando por Mianmar, Vientiane e retornar por terra pelo Laos e nordeste da Tailândia. Sair de Bancoc e percorrer outras paisagens empolgou os sonhos.
Nada feito. Não havia mais voos entre Yangon e Vientiane. Teríamos que retornar para Bancoc para seguir ao Laos. Outra agência ofereceu melhores preços de voos para Yangon, Mianmar. Novamente ótimas possibilidades.
Eu não entendia uma cidade sem atrativos como Bancoc atrair tantos estrangeiros. Mas se abarrotava de turistas. Era enorme, feia, poluída, com trânsito infernal, descaracterizada culturalmente. O povo antipático destratava a maioria dos estrangeiros, queria tirar vantagens financeiras em tudo. Jamais sorria, mudava os preços conforme a cara do turista. Só mesmo os guias escritos por empresas transnacionais para rotularem a Tailândia de “exótica” e “misteriosa”, e chamarem o tailandês de “povo sorriso”. Pela segunda vez no país, eu constatava exatamente o contrário.
E a viagem a Mianmar também deu errado. A agência tailandesa comunicou que o voo semanal estava lotado. Devolveu o dinheiro das passagens, mas embolsou o valor dos vistos. E isso depois de garantir os lugares no voo dias antes. Jogou o dinheiro das passagens na mesa e se virou para outro lado. Nem sequer ouviu as reclamações. Confiava na impunidade do golpe. Conhecia o país onde morava.

Nada havia a esperar daquele buraco. Compramos passagens no voo mais barato para a América do Sul, somente de ida, para Buenos Aires. Mas somente para um baita tempão depois. Dois meses inteiros se apresentavam à frente antes da libertação definitiva do inferno.
A Tailândia se ocidentalizava em ritmo acelerado. A influência estadunidense se apresentava a todo instante. Músicas, roupas, propagandas, camisetas, carros com bandeiras daquele país. Os Estados Unidos fizeram da Tailândia o quintal durante as invasões das tropas estadunidenses ao Vietnã, Laos e Camboja. Usaram-na como base para atacar os povos dos países vizinhos. Desrespeitaram a cultura local e impuseram costumes ocidentais. Trataram o povo como escravo. Transformaram a Tailândia em mera colônia para atender à máquina de guerra estadunidense. A indústria da prostituição, o tráfico de drogas, o turismo sexual, marcas registradas da Tailândia, nasceram naquela época e ainda sobrevivem graças ao turismo predatório.
De lotação até a cidadezinha de Laen Ngop, ainda no continente, através de estradas monótonas, ao lado de paisagens feias, ocidentalizadas. Depois barco à ilha de Ko Chang ao entardecer. Chalés mal construídos predominavam ao longo da praia, a maioria em palha e madeira fina, a preços altíssimos. A praia medíocre também não empolgava. No chalé simples, com banheiro, cama suspensa do chão, mosquiteiro, as formigas circulavam impunemente.
Pelas praias de Ko Chang não se ia muito longe, pois logo surgiam pedras e corais pontiagudos. Os insuportáveis mosquitos tailandeses combinavam com o país. A estrada atrás dos chalés oferecia trânsito pesado de caminhões, jipes, motos. Compensou pelos cajus arrancados das árvores na beira do asfalto. Na maioria dos lugares da praia onde havia música tratava-se do lixo estadunidense. Os turistas, sobretudo australianos, se deslumbravam. E tudo continuava assim. O restaurante com mesas sobre a areia da praia oferecia boa comida, baseada em ensopados de frutos do mar.
Em todos os dias, na minúscula sacada da frente do chalé, horas sem fim de leituras. Ao olhar a praia sem graça, desânimo, mais leituras e preguiça geral. Tailandesas passavam pela areia oferecendo serviços de massagem. Um ou outro turista caía no papo. Nada havia de massagem, apenas enganação para as pencas de turistas deslumbrados.

Os infindáveis engarrafamentos pelas avenidas e minhocões deram as boas vindas ao pesadelo de Bancoc. Mais dias no inferno do Bancoc sem fazer absolutamente nada, apenas aguardando o voo ao Camboja.
Os tailandeses, sobretudo os de Bancoc, gananciosos, só se aproximavam com intenções de tirar o sangue. E mantinham submissão exagerada diante das figuras do rei e da rainha. Ninguém ousava questionar, criticar, zombar, fazer brincadeiras de qualquer tipo com os monarcas. Chegavam a ponto de jamais lamberem os selos com imagens do casal absolutista. Humilhação semelhante ocorria frente aos monges budistas. As mulheres não podiam tocá-los, nem lhes produzir sombra, obrigando-as a se abaixarem, a se contorcerem. A juventude e a maior parte da população se deslumbravam com o lixo musical e cinematográfico estadunidense. Rostos e corpos ocidentais ditavam padrões de beleza nos cartazes, propagandas em geral. Os tailandeses exibiam bandeiras estadunidenses afixadas nas roupas, carros, adornos pessoais.
Cruzar a fronteira terrestre da Tailândia com o Camboja era perigoso. Desde a invasão dos Estados Unidos ocorriam confrontos armados e poucos eram os lugares seguros. Recentemente tinham morrido turistas ao cruzar a fronteira terrestre. Voo tranquilo e visto rápido no aeroporto da capital do Camboja, Phnom Penh.
A lotação levou ao hotel mais comentado da cidade. A segurança precária desaconselhava andanças pelas ruas da capital depois das 20h.
Bem cedo ao apertado barco para Siem Reap, com teto baixo, janelas pequenas e escuras. A paisagem fluvial guardava sequências de palafitas, barcos, pescadores, habitantes sorridentes.
Em terra, lotação de pousada escolhida a esmo, situada em parte calma e silenciosa da cidade. Muitas pechinchas para adquirir as entradas para os templos de Angkor, o guia e o aluguel da moto durante vários dias. Siem Reap ardia de calor e não parávamos de beber água.

Garupa da moto ainda no escuro a fim de assistir ao nascer do sol no Angkor Wat, surgindo atrás das pontas do complexo de templos. Depois, os templos de Bayon e arredores, numa impressionante sequência de rostos esculpidos na rocha, pequenas áreas ricas em esculturas, entalhes em pedra. À tarde, volta a Angkor Wat, para explorá-lo por inteiro internamente, até o pôr-do-sol. Grupos de turistas se espalhavam pelas inúmeras dependências. A maioria dos templos da civilização Khmer estava em ruínas, em restauração ou se resumia a blocos de pedra amontoados. O tórrido calor desconcentrava e só queríamos beber líquidos.
Apesar de retraído, o motoqueiro, e também guia, conquistava pela simpatia e pontualidade. Eram os três na moto pequena. Não era aconselhável circular livremente em Siem Reap pela falta de segurança nas estradas e caminhos. O contato com o país real, povo, cultura local, inexistia até aquele momento.
Pela manhã, os templos da região de Ta Phron. As ruínas em meio às árvores lhes forneciam atmosfera misteriosa e intrigante. E sempre por caminhos entre blocos desmoronados, passagens estreitas, portais de templos, esculturas perdidas, galerias com pedras trabalhadas. A vegetação crescia nas paredes e rochas. O cenário formado pelos extensos labirintos, a ausência de turistas naquele horário, o verde intenso, as sombras refrescantes, os entalhes surpreendentes com desenhos de divindades e cenas de época, encantavam a cada nova descoberta.
Liberamos o motoqueiro até o começo da tarde. Nada da programação previsível e turística matinal por Angkor. Melhor mergulhar no Camboja real, ao lado dos cambojanos. Ignoramos as advertências sobre a insegurança. Caminhamos aos templos de Roulus, por ruas, a estrada principal, as estradas secundárias fornecendo perfil da vida rural do país. Casas de palha suspensas do solo, lavouras primitivas e pouco aproveitadas, vaivém de bicicletas, motos, caminhões. Os habitantes sorriam espontaneamente, interrompiam os afazeres, procuravam conversar. Mesmo apenas com gestos, olhares, havia a comunicação e as trocas de carinho.  De volta a Siem Reap, o mercado com o colorido e os burburinhos. Todos olhavam e lançavam sorrisos soltos. Comemos nas barraquinhas de rua. Mais saboroso e mais barato, sem falar no contato direto com os cambojanos. Nenhum outro turista se arriscava a conhecer o verdadeiro país, se restringindo em visitar os lugares indicados nas páginas dos famigerados guias.

À tarde, o pneu da moto furou e o guia a levou para a reparação. Enquanto esperávamos na beira da estrada, sozinhos, os cambojanos passavam e sorriam, estranhando dois estrangeiros parados no meio do nada. Um senhor de bicicleta parou, desceu, veio conversar. Três lavradoras também pararam as bicicletas.  Sorriram, gesticularam, falaram espontaneamente, deram batata doce. A mímica funcionou e bem em ambos os casos. O povo cambojano, distante do contato diário com o turismo, revelava-se mais simpático e acolhedor.
Com a moto reparada, repetição do pedaço favorito de Angkor, as ruínas de Ta Phron, durante horas pelos caminhos e restos de templos. Delicioso se perder pelas ruínas em meio às árvores, sentindo a magia daquela atmosfera. Retorno somente ao anoitecer.
Depois das comidas das barracas nas ruas do mercado, nunca mais a comida de hospital da pousada. Barata e boa comida em contato com o simpático povo cambojano. As donas da barraca habitual se sentaram para conversar. E despedidas festivas na certeza de que contatos com povo real valem mil vezes mais que visitas burocráticas a atrações turísticas.
continua...

2 comentários:

  1. Sempre imaginei a Tailândia como exótica e misteriosa,fiquei decepcionada,uma porque considerava Bancoc uma cidade cosmopolita, com povo simpático, educado, organizado e é ao contrário, em compensação nos cambojanos vertem alegria, hospitalidade... Os EUA, como sempre dominando, este é um país que não me desperta curiosidade. Gostei de ver como nós sulamericanos somos mais carismáticos, sempre há empatia, lógico que nós brasileiros já nascemos simpáticos...rsrsr. Estou aqui imaginando a paz encontrada nos templos...que bom que a sentiram. Seguindo viagem, abraços.

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  2. Oi Ivete!!!
    Me impressionei com a síntese de seus comentários. Tá tudo ali.
    Nem vou comentar o que comentou para não estragar.
    Você resumiu muito bem minhas impressões em poucas linhas.
    Concordamos em gênero, número e grau.
    Abraços!

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