quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

do Nepal ao Camboja (parte 8/12)

...continuação
Os condutores de riquixás abordaram gentilmente na plataforma da estação. Após as pechinchas de praxe, surpreendeu a ausência de tentativas de arrastar a hotéis que lhes pagavam comissão. Ainda mais em cidade turística como Varanasi. O riquixá percorreu diversos becos, entrou à esquerda, à direita, entrou no pátio interno e parou nas escadas em frente à recepção. Quanta atenção e carinho! Embora com preços levemente acima da média, o quarto razoável agradou. Mas somente no momento de preencher o formulário na recepção percebi que era outro hotel. Em nenhum lugar visível dentro ou fora do sobrado exibiam o nome em destaque. O condutor do riquixá desaparecera na poeira, com a comissão obviamente. E aquele hotel se localizava distante da margem do rio Ganges, o contrário do desejado inicialmente.
Em longa caminhada ao centro antigo de Varanasi, nas imediações da margem do Ganges, contato direto com a incrível e fascinante confusão da cidade. O trânsito beirava o absurdo, mesmo sem ônibus, caminhões, poucos carros. Os vendedores de serviços e objetos em geral abordavam a todo instante. A atmosfera religiosa com peregrinos, becos muito estreitos, gente por todos os lados, cheiro de leite fervido e das coalhadas caseiras, vacas e mais vacas gordas e bem nutridas, sem falar no rio com toda a parafernália mística e espiritual nos degraus da margem.
Opções melhores e mais caras de hospedagem seduziam pela privilegiada localização no centro antigo, pela vista deslumbrante do Ganges, os degraus, as cerimônias, os becos, os telhados das casas antigas, se descortinando das janelas e sacadas dos quartos decorados à indiana.

Varanasi era referência musical na Índia. À noite, procura de recitais de música clássica indiana. O primeiro local era praticamente inacessível à noite devido à completa escuridão dos becos da cidade antiga. Nem com o acompanhamento “desinteressado” das crianças dava para encarar aquele breu. A segunda tentativa, em bar e restaurante, estava às moscas, sem sinal de música. O terceiro local lotava de espectadores e quiseram nos jogar no fundo escondido e longe dos músicos. Nos restaurantes, com música de fita, eles impunham lixo estadunidense. Mas, se pedia música indiana, concordavam sem pestanejar. Ufa, alívio para a mente e corpo.
Varanasi tornava-se a cidade com mais assédios e abordagens interesseiras. Nenhum minuto de sossego, sobretudo na margem do Ganges. Multidão de vendedores, massagistas, homens sagrados, guias, estudantes de história, agentes de empresas de turismo, muitos inteiramente falsos, procuravam turistas desavisados. Da linha das águas, ou mesmo nos degraus, os barqueiros ofereciam passeios, a todo instante, insistentemente. Nem nos setores das cremações davam trégua.
Tarde de domingo para pegar uma sessão de cinema. Finalmente o famoso Raja Hindusthani, o mais comentado e adorado filme indiano daquela temporada.
Depois da fila imensa, as bilheterias ofereciam diversos preços conforme o setor da sala. Mais próximo à tela e nas laterais, os mais baratos. No balcão superior, os mais caros. Ainda nem todos tinham entrado e o filme já começara. Com as luzes acesas. Ninguém parecia se importar com isso. Não se apressavam, continuavam a entrar, conversavam alto, iam e voltavam do banheiro, comiam, bebiam. E o filme seguia na tela. As luzes finalmente se apagaram. Tudo indicava que viria o silêncio e eles prestariam atenção. Nada disso. Não parava de entrar gente e a gritaria prosseguia. Os lanterninhas mais atrapalhavam que ajudavam. Os seguranças disfarçavam e nem pressionavam para botar ordem no recinto. As luzes se acendiam e apagavam diversas vezes. E o filme seguia na tela. De repente entrou um sujeito com uma bandeja repleta de xícaras de café com leite e as ofereceu em voz alta. Alguns aceitavam. Outros falavam. Os lanterninhas e os seguranças circulavam para lá e para cá. E o filme seguia na tela. Sim, tinha gente que prestava atenção no filme, gritava e aplaudia. Outros vendedores entraram na plateia. Agora carregavam caixas de refrigerantes e de salgadinhos. Raspavam o abridor nas garrafas de vidro, berravam as ofertas, todos ao mesmo tempo, com nas feiras livres. E o filme seguia na tela. Veio o intervalo. A maioria se levantou, comprou comes e bebes, foi ao banheiro. O intervalo terminou sem qualquer aviso. O filme recomeçou com a maior parte dos espectadores ainda do lado de fora. Novamente ninguém se abalou ou se apressou para voltar às cadeiras. Mais divertido pela balbúrdia indiana na plateia do que pelo filme de mais de três horas de duração, falado em hindi, sem legendas. A barreira da língua nunca seria problema. Dramalhões, interpretações exageradas e risíveis, enredo mais que óbvio orientavam a entender o enredo. Bastaram as penúltimas cenas apareceram na tela, para a maioria se levantar e se dirigir às saídas. Mas o filme ainda não terminara!
A afirmação que os indianos são a principal paisagem na Índia era a mais pura verdade durante uma sessão de cinema.
À noite finalmente restaurante com música clássica indiana, ao vivo. A apresentação se resumiu a menos da metade do prometido. E aquilo nunca foi música clássica indiana. Os tais que se exibiam no minúsculo palco no canto do ambiente apostavam na ignorância dos fregueses, cem por cento de estrangeiros, e enrolavam improvisos nas cítaras, flautas, tablas. Nada além de embromação para turistas.

Para a estação ferroviária rumo ao embarque depois da meia noite. Com longos cassetetes de madeira pendurados no cinto, policiais abordavam e posavam de rigorosos na segurança das plataformas. Exibiam olhares inquisidores e enchiam de perguntas.
Pela primeira vez na Índia, um trem feio, velho, mal conservado. Mais parecia sucata. O desembarque em Satna na manhã seguinte aconteceu por pura sorte. No exato momento em que o trem parara, avistei sem querer, pela porta de saída, o nome da estação no muro da plataforma. Ainda adormecidos, conseguimos correr e descer assustados com as mochilas antes que o trem partisse.
Não havia trens de Satna a Khajuraho. O ônibus podre, caindo aos pedaços, seguiu por estradas esburacadas. O pequeno vilarejo de Khajuraho, no estado de Madhia Pradesh, oferecia paz e tranquilidade, quebradas apenas pelos berros dos insistentes donos de lojas de bugigangas.
Foram várias horas perambulando em meio aos templos de Khajuraho. Mereciam! Se dispunham ao redor de gramados e flores, formando conjuntos harmônicos e bem preservados. Mesmo depois de tantos templos visitados, encantavam profundamente, no geral e no detalhe. Guardavam arquitetura impecável, ricamente ornamentada com esculturas, imagens, trabalhos em alto relevo em rocha dos mais impressionantes em toda a Índia. Os detalhes incluíam temas variados da história, costumes, cenas cotidianas da vida, sexo, guerras, danças, festas, trabalho. As maravilhas emocionavam inclusive os discretos casais e as recatadas famílias indianas diante de posições nítidas e explícitas de sexo entre duas pessoas, casais, grupal, zoofilia. Poses sensuais de mulheres exibiam corpos perfeitos e a alegria de viver. A cada ângulo, os detalhes revelavam mais e mais belezas.
Perto da vila, outros grupos de templos. Embora bonitos, se ofuscavam pelo impacto dos templos principais. Valeu pela caminhada nas estradas e na vila velha de Khajuraho, por entre casinhas brancas com portas pequenas e baixas, chão de barro, gente colorida, muita delicadeza, limpeza. Os adultos sorriam e cumprimentavam. Desvirtuadas pelo turismo predatório, as crianças imploravam por caneta, chocolate, dinheiro.
À tarde preguiça gostosa e relaxante nos arredores da vila, ao embalo dos sons da natureza.
Ainda no escuro ônibus a Jhansi, em Uthar Pradesh, de onde o riquixá levou à estação ferroviária. Em vagão de segunda classe, quase vazio, chegada em Agra antes do tempo previsto. E mais parabéns ao eficiente transporte público e estatal indiano.
Possuidora da atração mais famosa da Índia, Agra não deixaria de contar com batalhões de chatos ainda na plataforma da estação. Cercaram e¸ com a insistência habitual, ofereceram riquixás, táxis, hotéis, passeios. Cobravam inicialmente preços altíssimos pela corrida. Alegavam que cumpriam a tabela. Tabelas de riquixás na Índia? Outros condutores se aproximaram e os preços baixaram gradualmente. E os condutores comunicaram solenemente que a região do Taj Ghanj, perto do Taj Mahal, não existia mais. Segundo eles, depois de repetidas enchentes, o governo demolira a área a fim de preservar o Taj Mahal. E que havia melhores opções de hospedagem em outros bairros, das quais, por acaso, eles tinham sugestões a mostrar. Impressionante a imaginação de inventar estórias mirabolantes para conduzir a hotéis dos quais arrancavam comissões. Nem pensar! Baixaram os preços, mais ainda. Depois de tanta encenação, um condutor de ciclo-riquixá, mais sereno, aceitou levar ao Taj Ghanj por preço justo.

A região de Taj Ghanj, claro, permanecia de pé, firme e forte, sem enchentes, sem demolições. A vista do hotel dirigido por muçulmano vestido a caráter exibia parte da cúpula do Taj Mahal.
Era o dia do nascer do sol no Taj Mahal. Ainda nem amanhecera. O Taj Mahal mudava gradativamente de cores à medida que o dia nascia. Nem o frio tirou o encanto do visual. Construído por encomenda de um muçulmano, o Taj Mahal guardava formas de mesquita. Mas, como o idealizador visava apenas guardar os restos mortais da ex-esposa, a face da construção não se voltou para Meca, impedindo que se transformasse em destino de fiéis. Foram horas apreciando as simétricas formas, de longe, de perto. Retorno ao Taj Mahal perto do meio-dia e também durante o pôr-do-sol. De todas as maneiras, sob todas as luzes, de todas as distâncias.
Mas nem tudo são flores no Taj Mahal. Os turistas dos países imperialistas, aqueles que os desinformados chamam de primeiro mundo, continuavam a dar espetáculos de má educação, desrespeito, arrogância, prepotência. Com posturas racistas, de superiores em contato com os inferiores, os sujeitos pisavam na grama, mesmo diante de avisos em inglês, grandes e visíveis. Sentavam nas escadas impedindo o livre trânsito dos demais visitantes. Empurravam. Jogavam lixo fora das lixeiras.
O muçulmano a caráter que dirigia o hotel gostava de conversar. Sempre parava para trocar frases e observações. Nunca tocou em assuntos religiosos ou tentou converter ninguém. Apenas queria falar e ouvir sobre assuntos em geral.
O vagão de segunda classe do trem para Delhi transbordou de passageiros. Não adiantou aguardar os trens seguintes. Era um mar de gente, muita gente. Permanecemos em pé, esmagados entre os outros passageiros, enquanto as mochilas eram esmagadas e pisoteadas.
Em Delhi, riquixá à outra estação ferroviária, de onde sairia o próximo trem. A estação oferecia boa infraestrutura para comer e descansar. O trem noturno entrou na manhã seguinte em Kathgodan, ponto final da ferrovia. Dali somente ônibus com destino a cidade serrana e gelada de Nainital, ainda em Uthar Pradesh.
O hotel contava com água quente no banheiro, quarto amplo com janelas, vista para o lago e para as montanhas mais ao fundo. A diária não era das mais baratas, mas a baixa temporada permitiu generoso desconto após as pechinchas de costume.
Nainital servia como destino dos indianos que se refrescavam do forte calor das planícies. Mas a temporada começaria somente em um mês. Era inverno ainda. Ventava, o frio castigava, na sombra e à noite. Ainda havia neve nas ruas e nas montanhas do outro lado do lago. A cidadezinha conquistou de imediato, com o grande lago, bazares, moradores simpáticos de tipos montanheses. A maioria dos hotéis e restaurantes se mantinha fechado e sobravam poucas opções de refeições, sobretudo à noite, em meio a ruas desertas e geladas. O céu estrelado se refletia nas águas espelhadas do lago. Era outra Índia, montanhosa, fria, bela.
A caminhada bem cedo visava alcançar o topo do pico Cheena, a poucas horas do centro da cidade. Mas já bem no alto da montanha o tempo nublara. Escurecia, ventava forte, o frio doía nos ossos. Nada feito. Meia volta volver. Descida e café da manhã reforçado em mercearia da cidade. E nos abastecemos de muita comida antes de retornar ao quarto do hotel e permanecer debaixo dos cobertores. Não saímos mais. Pela janela, deitados e aquecidos, víamos o tempo piorar. Escurecia, relampejava, trovoava, chovia, nevava, enevoava. E dificultava a visão do lago e das montanhas em frente. Delícia a preguiça. Leituras, sonecas, comes e bebes no quarto aconchegante e aquecido, dormir bem cedo.
Amanheceu dia brilhante, ensolarado, céu limpo, raras nuvens. A cidade cobria-se de neve nos telhados, árvores, veículos, ruas, estátuas.
Nova tentativa de subir o pico Cheena. Os caminhos se cobriam de neve. O branco predominava nas árvores da floresta, nas casas esparsas, no pequeno templo do início da subida. Dificuldades de avançar na neve espessa. Os pés afundavam, escorregavam, perdiam a trilha. Mas a brancura, a sombra da vegetação sobre a neve, a vista da cidade lá embaixo, compensavam as dificuldades. Mas novamente nada de topo. A trilha sumiu encoberta pela camada de neve. A fome e sede vieram com toda a força. De volta à cidade.

As ruelas e becos de Nainital se animavam pelos carregadores, as lojinhas lado a lado. A neve derretia rapidamente sob o sol, escorria dos telhados, permanecia apenas nos lugares sombreados. O cenário brilhava sob a luz típica de inverno. Reforços ao estoque de comestíveis para o quarto. Circuladas despretensiosas ao redor do lago, pelos bazares da outra extremidade da cidade. Muita leveza das sensações e prazeres.
O cardápio do bar simples do centro da cidade não ia além do chowmein e do divino masala dosa. Foram vários dessas maravilhas apimentadas, sempre regadas a xícaras de café com leite bem quente e cremoso coberto com chocolate em pó.
Subida do pico Tiffin, do outro lado do lago, por trilha fácil e agradável. A visão da cidade e da cordilheira do Himalaia ao fundo era impressionante. Animados com a visão das montanhas, nova tentativa da subida do pico Cheena. Após ultrapassar o ponto de impasse do dia anterior, o rumo certo, um pouco mais visível, entre florestas cobertas de neve. A luz do sol penetrava por entre as árvores e brilhava todo o cenário. Caminhar sobre a neve era desgastante, mas as diferentes paisagens espantavam o cansaço. E, depois de subir mais e mais, caminhar bastante sobre neve escorregadia, finalmente o topo do pico Cheena. Na terceira tentativa. E que visual! A extensa faixa da cordilheira do Himalaia dominava o horizonte com dezenas de picos nevados. Nainital e o lago azulado marcavam a visão do lado oposto. Difícil descrever exatamente os sentimentos. Demais! Ninguém queria sair dali.
continua...

2 comentários:

  1. ...............................................finalmente atingimos o topo do pico Cheena. Na terceira tentativa. O visual das alturas nos deixou de queixos caídos. A extensa faixa da cordilheira do Himalaia dominava o horizonte com dezenas de picos nevados. Nainital e o lago azulado marcavam a visão do lado oposto. Difícil descrever exatamente os sentimentos. Demais!
    Quem sabe um dia poderei sentir os mesmos sentimentos que sentiram diante de tanta beleza. Imagino que além da fantástica paisagem, uma incrível sensação de paz.
    Continuo na bagagem...

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  2. Só você para me relembrar desse momento no topo daquela trilha. Realmente, depois de tantas tentativas, atoladas na neve e erros de caminho, nos sentimos presenteados por aquela pintura de todos os lados.
    Adorei Nainital e a atmosfera de fora de temporada que reinava na cidadezinha.
    Matei saudades rssss.

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