...continuação
Último dia no Nepal. Kathamandu vivia o festival de luzes.
Os moradores iluminavam, coloriam, alegravam a cidade com fogos e bombinhas. As
crianças iam de loja em loja pedindo doações. À noite, vários estabelecimentos
apagaram as luzes e acenderam velas. A cidade ganhou outra luz, mais mágica e
fascinante. O Nepal e Kathmandu proporcionavam despedidas comoventes.
De madrugada rumo ao aeroporto. A cordilheira do Himalaia
esteve presente durante o voo à Índia, pintando imagem inesquecível.
Do aeroporto, ônibus para a velha Delhi, à região de
Pahargang, com a rua estreita, comercial, cheia de gente, veículos, animais. Hospedagem
difícil após superar os pentelhos que queriam levar aqui e ali. Banho frio e refrescante,
comida boa, sorvetes de complemento. Volta de reconhecimento nas imediações. O
mesmo festival de Kathmandu acontecia nas ruas de Delhi. Os fogos de artifício,
bombinhas, música alta, agitavam a cidade.
Logo cedo a bagunça começou dentro do hotel. Mas não vinha
do festival. Dezenas de funcionários pregavam batentes e madeiras, batiam
portas, falavam alto. Não consertavam nada. Nada acontecia. Em cenas comuns
pela Índia, apenas desempenhavam atividades barulhentas e inúteis.
Na velha Delhi, o Forte Vermelho valia pela frequência
diversificada de visitantes do campo e da cidade, de toda a Índia, que afluíam
em ônibus fretados, velhos, lotados. Variedade de cores de pele, rostos,
roupas, expressões, adornos dos indianos, que nos olhavam curiosos e
assustados. Depois a grande mesquita, por rua longa, estreita e comercial,
ocupada por muçulmanos, homens e mulheres vestidas de preto. Era outra Índia. Mergulho
em deliciosa comida indiana, regada a refrigerante de manga.
Na principal estação ferroviária de Delhi, depois de preencher
os formulários, entrar em longa fila, finalmente os bilhetes em mãos.
O trem a Amritsar foi confortável, com cadeiras amplas e
espaçadas, serviço eficiente. Das janelas, terras planas, totalmente cultivadas
com cereais e mostarda, nos estados de Haryana e Punjab.
Não havia pia nem chuveiro no banheiro do hotel em
Amritsar, apenas torneira com água fria, instalada a um metro do chão. Era meio
banho, sempre, mesmo ao lavar as mãos. A forte vazão espirrava água para todo
lado, ensopando o banheiro, tornando o piso escorregadio e sujeito a tombos.
O Punjab foi um dos estados que mais sofreu com a
separação criminosa entre Índia e Paquistão. Depois de ocupar militarmente a
Índia por mais de cem anos, os invasores do império britânico jogaram
muçulmanos contra hindus, provocando a partição da grande Índia em três países.
Milhares de indianos, muçulmanos e hindus, foram massacrados durante a fuga
para os lados opostos das fronteiras. A cidade principal do Punjab, Lahore,
ficou no atual Paquistão. A cidade sagrada dos sikhs, Amritsar, na
Índia.
A lanchonete servia pratos rápidos vegetarianos, principalmente
o estupendo masala dosa, regados
somente a refrigerante ou água de torneira. O refrigerante gasoso multiplicou por
mil o efeito da pimenta.
Amritsar era feia, suja, empoeirada, cinzenta, poluída. O
guia estrangeiro decepcionava a cada página. Ainda que de edição do mesmo ano,
as informações não inspiravam confiança. Contava com erros grosseiros de mapas,
preços, dicas. As recomendações suspeitavam pela parcialidade. Durante o
transcorrer da viagem pela Índia e por outros países da Ásia, os defeitos desses
guias seriam ainda piores.
Café da manhã em local escuro e espalhafatoso, parcamente
iluminado com luzes vermelhas. Decoração de puteiro.
Longa visita ao Templo Dourado, local sagrado e de
peregrinação para os adeptos da religião sikh. Para entrar, necessário tirar
os sapatos e cobrir as cabeças com tecidos cedidos na entrada. O Templo Dourado,
um dos locais mais belos e fascinantes da Índia, contava com o piso e as
principais construções em mármore branco. A enorme piscina ocupava a parte
central. Na ponta da água erguia o templo coberto de ouro, de formato
retangular com núcleo alto e arredondado. Os sikhs se banhavam vestidos
nas águas da piscina. Os guias espirituais cantavam versos sagrados dentro do
domo central, acompanhados de instrumentos rústicos. Os alto-falantes
propagavam os cânticos pela amplidão do ambiente. A beleza e leveza do cenário,
o movimento lento dos fiéis, a água, o som contagiante tornavam a atmosfera
especial. Ficamos ali sentados ou perambulando por quase o dia todo. Os frequentadores,
retraídos e tímidos, trocavam sorrisos, leves acenos, saudações. Os raros que
se aproximavam, o faziam de maneira desajeitada, mas sempre transmitindo
curiosidade sincera, simplicidade, naturalidade. O senhor idoso e o casal com
vários filhos se destacaram nos contatos, fazendo companhia, pedindo fotos,
olhando sorridentes.
Retorno a Delhi em vagão com bancos duros de madeira. Em
cada estação subiam mais passageiros. Não importava se no assento cabiam apenas
quatro passageiros. O quinto, o sexto, o sétimo, cavava novo lugar. Fiz o
possível para me garantir sentado. A maioria dos passageiros entrava e saía
calada, revelava expressões tristonhas, não oferecia chances de conversas.
Em Delhi novamente à região de Pahargang. Os hotéis caros
eram caros demais, os baratos, ruins demais. A má conservação dos hotéis e
imóveis indianos assustava. Pisos, escadas, paredes, móveis, instalações
elétricas e hidráulicas, pareciam cair aos pedaços. Era milagre nada explodir.
A limpeza não ficava atrás. Tanto lençóis como cobertores exibiam manchas
diversas, cores escurecidas. E no andar do hotel as obras pararam somente no
meio da noite.
Em sebo optei por O
Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Novamente em inglês. Novamente
releitura.
Nas calçadas do grande círculo de Nova Delhi os indianos
ofereciam aos turistas pacotes de viagem, passagens, artesanato, jóias,
maconha, ofertas de loja. Abordavam mal, com modos bruscos, desajeitados, sem
convicção. Rejeitávamos com frases malucas, aleatórias, em português.
Viagem tranquila a Ajmer em trem executivo, mais caro,
exclusivo para viagens diurnas, com lanche incluído. De Ajmer, ônibus comum,
lotado, barato e rápido para Pushkar.
No hotel dentro de antigo palácio, com banheiro coletivo, a
porta do quarto se compunha apenas de grade vazada, expondo o ambiente interno
ao vento frio da noite.
Todos os hotéis de Pushkar iriam multiplicar os preços das
diárias por cinco ou dez vezes em razão da feira anual de camelos. O mesmo
ocorreria com os restaurantes. A fama da feira se espalhara pelo mundo e os
turistas pagavam qualquer valor, contribuindo para inflacionar e alimentar a
cadeia de aproveitadores. Falsos homens sagrados, pedintes, golpistas,
fervilhavam pelas ruas na busca do dinheiro dos trouxas.
Era melhor partir e voltar depois do festival.
O sistema ferroviário do estado do Rajastão passava por
reformas. Restou comprar passagens de ônibus para Jaisalmer em agência para lá
de informal. Mas as demais eram ainda piores.
Do alto da colina próxima à cidade, a bela vista da cidade
e da enorme quantidade de camelos estacionados. Independente do uso turístico,
a feira servia como oportunidade privilegiada para comercialização dos animais
e ponto de encontro dos moradores do deserto de Thar. Era fascinante caminhar
por entre os camelos, donos e condutores, invariavelmente com turbantes
coloridos. Os beduínos montaram barracas de comes e bebes, parque de diversões,
serviços de dentista, barbeiro, massagem, emergências. Tudo improvisado. Um
idoso implantava um dente em pacato cidadão do deserto que escolhera dentre os
oferecidos em caixinha de papelão.
Os rituais hindus seguiam nos degraus da beira do lago. No
meio dos verdadeiros, pentelhos profissionais disfarçados de homens sagrados
vendiam cerimônias aos desavisados. Pushkar permanecia deslumbrante e
relaxante, mas o clima comercial e turístico da feira ofuscava o autêntico.
Aproveitadores se amontoavam nas ruas, becos, esquinas, calçadas, a fim de
depenar alguém. Os turistas preservavam e até agravavam a situação, pagando
para fotografar os malandros, adorando se passar por idiotas em cerimônias
fraudulentas na beira do lago. Os becos e ruas mais afastadas do centro sofriam
menor influência da comercialização da feira. Os pacotes turísticos não
apareciam e os moradores sorriam e acolhiam com naturalidade.
Em barraca de sucos no meio da rua, ela pediu banana lassi.
O vendedor entendeu ou fingiu entender bang lassi. Bang, espécie
de droga legal, era vendida oficialmente em pontos licenciados. Ainda perguntou
se era a primeira vez, se preferia forte ou médio. Ela tomou metade do copo.
Logo se sentiu zonza, as pernas falharam, as coisas giraram ao redor.
Permaneceu assim até o jantar, vomitando quase tudo. Seguiu-se moleza,
sonolência, preguiça.
Fomos à agência esperar o ônibus rumo a Jaisalmer. Ela
ainda se sentia mal, não enxergava direito, os movimentos do corpo não
obedeciam ao cérebro. O homem que se dizia proprietário nos levou à outra
agência e sumiu na escuridão. Ao verificar os bilhetes, o responsável da
segunda agência afirmou não serem válidos, não se responsabilizando por nada. A
possibilidade seria viajar na cabine do motorista ou em pequenos bancos de
palha improvisados no corredor do ônibus. Ou então reaver o dinheiro na
primeira agência e comprar novas passagens na dele para a noite seguinte. O
dono da primeira agência, claro, desaparecera e deixara um adolescente
atrapalhado que alegava nada saber. De volta à segunda agência, insistimos em
viajar aquela noite. Ele repetiu as alternativas já mostradas. Decidimos
arriscar o jipe lotado de passageiros e bagagens rumo à periferia de Ajmer para
esperar o ônibus. Não havia terminal rodoviário, parada de ônibus, ou escritório
de agência. O ônibus apareceu apenas à meia noite. Como seriam as próximas dez
horas em banquinhos no corredor? Mas, ao embarcar, por encanto, arranjaram
assentos para todos, eu, ela e mais quatro passageiros lesados em agência
diferente. Os golpistas falavam com sorrisos benevolentes como se nos tivessem
tirado da forca. E que sem a intervenção deles ficaríamos perdidos na noite. Obviamente
esperavam ser recompensados. Nem um centavo! Os quatro gringos, também lesados,
encheram os picaretas de rúpias e dólares. Afinal, não há malandros sem
otários.
O ônibus chacoalhava demais na parte traseira. Esperei
horas para conseguir descer e me aliviar. Nada de banheiros ou mictórios na
parada. Penetrei nos fundos de construção semiabandonada, escolhi a sombra de
uma árvore e mandei ver.
O ônibus encostou pela manhã no lado externo do forte em
Jaisalmer. Com as mochilas nas costas, entramos na cidade fortificada rumo a
hotel barato e ruim. Comemos algo e reservamos hotel melhor para o dia seguinte,
também dentro do forte, dotado de banheiro privativo, sacada ampla com vista
panorâmica do deserto de Thar. A maioria dos banheiros indianos não possuía
papel higiênico, apenas torneira ao lado do buraco no chão. Muitos não tinham
chuveiros. Outros não ofereciam pia.
Reencontro com o casal de franceses do Nepal. O homem era
falador e boa companhia. Ela mantinha-se calada com expressão de tédio. A
cidade parecia mais vazia que durante minha primeira visita dois anos antes.
Hotéis e restaurantes não lotavam. Talvez a manada de turistas estivesse
concentrada na feira de camelos de Pushkar. Era delicioso se perder nos becos
estreitos da parte interna da fortificação. Os demais turistas apareciam
somente pelas manhãs e se concentravam ao redor do palácio e templo jain.
Encontrei um exemplar em inglês de Rainha Bandida da Índia, da escritora indiana Mala Sen. Contava a
longa e atribulada vida de Phoolan Devi, uma espécie de versão indiana e
feminina de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, pelas ravinas e vilarejos
da Índia central.
Dias soltos, relaxantes, reconfortantes, pela fascinante
Jaisalmer, pelos becos do forte e pelas ruas da cidade abaixo dos muros. Entre
passeios sem compromisso, leituras na sacada do quarto do hotel, alternando os
olhares entre o livro e o deserto de Thar. O cenário se valorizava ainda mais
durante a noite, quando as luzes amareladas iluminavam as construções e os
becos, ambos de pedra. As casas reservavam interiores arrumados e limpos. A
atmosfera geral emanava magia e poesia do deserto.
Em país com extensa e excelente rede ferroviária,
temporariamente fechada para manutenção no Rajastão, os ônibus indianos
careciam de conforto e segurança. De Jaisalmer, troca de ônibus em Jodhpur e
desembarque em Udaipur antes do dia clarear. O famoso lago da cidade ficava à
pequena caminhada do hotel, acessado de riquixá.
Dias para apreciar a região do palácio sem pressa. Era a
grande vantagem de viagens longas, sem datas, sem roteiros fixos. Deixar o
adiável para o dia seguinte e só fazer o que dava na telha.
Por agência local a passeio de bate e volta em Ranakpur. A
maioria dos turistas era de indianos de classe média. Logo após a partida pela
manhã o pneu do ônibus furou. Mas houve tempo para apreciar o estonteante
templo jain, com milhares de colunas em mármore e trabalhadas em
desenhos diferentes entre si. A iluminação natural, o silêncio, a limpeza
extrema, os tons claros do mármore das colunas e imagens, requeriam calma e
relaxamento. Imperdível! À noite volta a Udaipur.
Incursões pelos lagos da parte norte da cidade, vazia de
turistas e estrangeiros, pelos becos da cidade velha, com casas azuis, desenhos
de marajás, imagens religiosas nas paredes das residências. Dezenas de
restaurantes se espalhavam na margem do lago principal com vistas privilegiadas
da região. Mas a comida deixava a desejar. Sem falar nos amontoados de gringos
sentados por ali durante horas e horas, a fim de verem e serem vistos. Em
avenida movimentada e afastada do lago encontramos restaurante frequentado
somente por indianos, servindo comida autêntica, saborosa, extremamente
apimentada. Perfeito.
As lavadeiras dos degraus na beira do lago não
gostavam de serem fotografadas. Indiferente à cultura local, uma estrangeira
loura e magrela fotografou-as bem de perto. Não satisfeita com a grosseria,
presenteou as mulheres com algo parecido com creme facial, talvez como
compensação ao desrespeito. Sem trocar nenhuma palavra com as indianas, a
gringa imediatamente se retirou. Os vários cafés nas proximidades do centro
velho de Udaipur não se cansavam de exibir aos turistas vídeos do filme 007
contra Octopussy, com cenas filmadas na cidade.
continua...
Perdão, não estou lendo e sim devorando. História, geografia, se misturam, mostrando-nos uma cultura com suas belezas, suas deficiências...O deserto de Thar, como descreve deve ser uma visão única. Imperdível esta viagem, continuo na carona.
ResponderExcluirOi, Ivete!!!
ResponderExcluirE imperdíveis são seus comentários. Eles são um baita incentivo para eu continuar viajando e relatando.
Leitores como você é que motivam tudo.
Abraços!