terça-feira, 22 de março de 2011

Vale do Jequitinhonha (parte 2/3)

...continuação
Retornei à cidade por outro caminho, mais longo e pitoresco, até a avenida de entrada da cidade. Periquitos faziam a festa próxima ao paredão rochoso. Aranhas caranguejeiras do tamanho de um pires surgiam de todos os lados. Cruzavam o caminho não dando bola para minha presença. Não cumprimentaram, não sorriram, nem sequer me olharam. Nas ruas da cidade eu vi muitas delas secas ou esmagadas.
Evitei o restaurante da outra noite que lotava com os integrantes da banda Mulheres Perdidas. Arrisquei lugar parecido, mas entupido por integrantes da banda Anjo Azul. Os presunçosos sujeitos grunhiam frases de nível mais baixo que cu de cobra. As mulheres carregavam bundas exageradamente enormes, com peles perfuradas por crateras. Curiosos e fãs invadiram o restaurante para vê-los de perto. Sem essas bandas ocasionais, a cidade não contava com nenhuma atividade cultural para a população.
Definitivamente Pedra Azul beirava à catástrofe em matéria de restaurantes e afins. Pecavam pela aparência desanimadora, em frangalhos, lembrando galpões velhos e provisórios, e também pela comida por quilo monotonamente igual.
Avistei a rampa de pedra ao norte da cidade. A inclinação gradual facilitou o esforço da tarde com aberturas de sol ardido. A vista da cidade, com a pedra da Conceição ao fundo, encantou. Segui pelo tabuleiro de pedra, extensos lajedos quase em nível, até o início do mato ralo e do fim de estradinha de terra que vinha da cidade, me deparando com cacos de vidro, restos de garrafas, lixo esparso, camisinhas usadas, pedaços de roupas íntimas. Enorme área livre, pública, gratuita, passível de diversas atividades diurnas e noturnas, bem ao lado da cidade. Bastava sair da calçada e desbravar a imensidão rochosa. A imaginação dos moradores ganhava asas com tanto espaço disponível. Mas bem que poderiam trazer o lixo de volta.

Acordei cedo para pegar três ônibus para me deslocar somente 130 quilômetros, de Pedra Azul a Araçuaí. Pelo trajeto do primeiro ônibus apreciei formações rochosas de diversos tamanhos e formatos. Desembarquei na BR-116 de tráfego pesado de caminhões e me alojei sob o ponto de ônibus coberto, no aguardo da segunda etapa, junto a outros passageiros. Dois rapazes a trabalho e a casada tagarela rumo ao ortodontista iriam a Teófilo Otoni. A outra senhora ficaria em Medina.
Embarquei em veículo gelado devido ao supérfluo ar condicionado. As janelas, criminosamente parafusadas. Duas mulheres sentadas na frente com crianças pequenas reclamaram em vão do clima polar. Mais montanhas de pedra na beira da rodovia, sobretudo no trecho entre a miserável e horrorosa Medina e Itaobim, não menos miserável e horrorosa. Não havia terminal rodoviário em Itaobim. Tive que desembarcar no ponto de apoio da empresa, na margem da BR-116, um buraco sujo e triste, com bar sujo e caro, banheiro sujo e pago. Ao precisar me aliviar, me refugiei no fundo do terreno e mandei ver sobre o monte de sujeira. Comprei meia dúzia de bananas do ambulante e detonei junto a pacote de bolachas guardado na mochila. Tanto no segundo ônibus, como naquele fim de mundo, e em diversos pontos do vale do Jequitinhonha, abundavam os pedintes, implorando por dinheiro para comprar comida, inteirar passagens de ônibus, adquirir remédios.
E o terceiro ônibus partiu, atravessando a extensa ponte sobre o Jequitinhonha. Subiram outros passageiros no caminho, desembarcando a maioria em Itinga. No meio da tarde estacionou na rodoviária de Araçuaí.
Arrisquei hotel simples nas imediações do terminal.
A maioria dos restaurantes e afins não abriu à noite. Enquanto caminhava fui chamado pelo garçom que manejava carnes na grelha sobre a calçada. Parei, senti cheiro e resolvi aceitar.
Entre as conversas soltas durante o fraco café da manhã do hotel, as notícias do tremor de terra em Itacarambi, onde eu estivera anteriormente, renderam comentários espantados entre os hóspedes.
Da estação rodoviária, na margem da rodovia, Araçuaí descia à margem direita do rio de mesmo nome. Ladeiras surgiam de todos os lados, calçadas de paralelepípedos ou de pé-de-moleque. Na beira do rio Araçuaí, apenas o barranco e barracos esparsos.

Na parte baixa que antecede a margem do rio, ficava o que restou do centro antigo e marco fundador da cidade, construções caindo literalmente aos pedaços, ruínas, escombros, áreas vazias, parecendo ter sido bombardeada recentemente. O antigo mercado, sobrados, outrora imponentes, quase destruídos, largados, para desabarem a qualquer momento. Boa parte dos escombros e entulhos compôs anos antes zonas de prostituição, bares, boates. Agora, viciados roubavam e matavam os desavisados que passavam por ali. O dono do vizinho posto de combustíveis e o proprietário de igreja comercial fundamentalista, mais conhecida como evangélica, adquiriram os terrenos e iniciaram a demolição. Visavam interesses imobiliários e especulativos na destruição da história da cidade, com a eventual construção de novos empreendimentos. Mas em pequeno largo no meio da confusão de ruínas, uma sala de cinema se preparava para inauguração, uma oficina cultural de estudantes exibia produtos artesanais.
Os principais centros de produção de artesanato e arte popular da região se situavam distantes, em pontos de difícil acesso. Ninguém na cidade parecia saber ou querer orientar coisa alguma.
Jantei em restaurante frequentado pela fina flor da sociedade de Araçuaí, localizado ao lado do bairro da elite local com direito a casas suntuosas. Uma barata voadora alvoroçou os frequentadores das mesas ao lado. Sustos, gritos, tentativas de exterminá-la, entre risadas dos corajosos e espanto dos medrosos. Mas ninguém sentiu nojo suficiente para interromper a comilança.
Peguei táxi-lotação ao entroncamento do povoado de Itira. Desembarquei no acesso e deixei o asfalto. Caminhei pela estradinha sinuosa de terra, até a entrada da vila, minúscula, calma, silenciosa, praticamente deserta.
Casinhas velhas e pobres se dispunham lado a lado ao redor de grande área livre, no centro da qual se erguia igreja construída pelos escravos no século XVIII. De aspecto pesado e traços retos, sem trabalhos rebuscados em madeira ou pedra, a construção impunha respeito pela idade e aspecto rústico. Pintada de branco, janelas e portas azuis, a igreja seria o centro da festa popular daí a três dias, durante a qual se apresentariam os batuqueiros de Itira e grupo teatral de fora. Passando a igreja, a rua de terra descia à margem do Jequitinhonha, que naquele local, ao pé do morro, recebia as águas do Araçuaí.
Ainda que velhas e pequenas, as casinhas de Itira reservavam charme especial, pelo menos do lado de fora. Conversei com uma senhora cuja filha exibia rosto e braços marcados por bexigas. Ambas sorriam um sorriso preguiçoso, como se de dentro delas brotasse apenas tristeza e desânimo. Em ruela próxima à entrada da vila, o dono me convidou a sentar na cadeira do cômodo da frente. Queria muito conversar e descrever fatos da vida vivida. Aposentado como vaqueiro, comprou a casa onde morava em paz merecida com a família. Participaria com o pandeiro do grupo de batuqueiros na festa do povoado. Mostrou-se pessoa leve e de bem com a vida, a despeito dos interiores precários da moradia.

Pela estradinha de terra retornei ao asfalto por onde passavam poucos carros. Os particulares não davam carona, os táxis, raros também, vinham lotados. Com os caminhões, por segurança minha e deles, eu nem tentava nada. Permaneci horas ali sob os restos de concreto do ponto de ônibus. E eis que surge de repente, não mais que de repente, o ônibus escolar levando crianças às escolas de Araçuaí. Praticamente estanquei na frente do ônibus. O motorista me resgatou daquele impasse. As crianças me olhavam com se vissem um bicho estranho, o que não era de todo mentira. O veículo buscou mais alunos no trajeto, deu baitas voltas em Araçuaí, desembarcando as crianças em escolas diferentes, até me deixar em frente à estação rodoviária.
Almocei comida mineira variada e autêntica, me esbaldando com arroz, tutu, leitão a pururuca, couve, mandioca, salada, coroada pelas sobremesas no ponto certo do açúcar. Pedi a descomunal jarra de suco de limão em função da sede infinita.
Desembarquei do ônibus em Itinga no meio da tarde. Cruzei a pé a ponte sobre o Jequitinhonha, rumo ao centrinho aconchegante, tomado de ruas e becos estreitos, calçamento pé-de-moleque, casas antigas, ainda que isoladas, a praça da matriz arborizada e providencial refúgio contra o sol. A sede não cessava e bebi líquidos e mais líquidos.
Retornei a Araçuaí ao anoitecer. Repeti o restaurante da noite anterior e voltei a comer bem em ambiente naturalmente arejado. A lua nova despontava à esquerda. Os filhos da elite de Araçuaí vinham de férias escolares à cidade, depois de meses em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo. Em Araçuaí os abismos sociais talvez justificassem o comportamento presunçoso de alguns, contrariando a hospitalidade da maioria dos mineiros.
Amanheceu céu azul, com sol de rachar mamona. A brisa do vale do Araçuaí me impelia a seguir em frente, aproveitar a ausência de chuvas e vencer os quilômetros de estrada de chão.
Deixaria saudades a saborosa comida mineira do almoço. Salada, abobrinha refogada, arroz, tutu, leitão a pururuca, mandioca frita, seguidas de sobremesas e do café, milagrosamente em Minas Gerais, sem açúcar. Servidos em jarras grandes, os sucos matavam a sede de qualquer cidadão. Sensação de estômago cheio, bem alimentado, feliz da vida.
O ônibus partiu no meio da tarde depois de boa prosa com um trabalhador rural de Chapada do Norte. Durante o percurso, o diretor de escola rural descreveu os perigos à noite pelas ruas de Araçuaí, principalmente na parte baixa e próxima ao rio. Em processo inexplicável de demolição, aquele pedaço abrigava por entre os escombros viciados dos mais variados tipos, elevando os índices de criminalidade. Claro, ao lado da miséria alarmante, mansões muradas e com cerca elétrica abrigavam a classe dominante local viciada em ostentar.

Depois de Virgem da Lapa o percurso em via estreita emocionou, com direito a tudo que uma estrada de terra legítima podia oferecer. Buracos, bicos de pedra, poeira na seca, lama nas chuvas, abismos de ambos os lados, aclives e declives acentuados, curvas fechadas, altas pontes de madeira que estalavam e trepidavam durante a passagem do ônibus, enquanto o rio corria mais de cem metros abaixo, travessias de riachos sem ponte ou destruídas pelas correntezas. O rio Araçuaí e os afluentes exibiam incríveis imagens, sobretudo nos trechos mais acidentados, de vales estreitos e profundos. O ônibus chacoalhou bastante, principalmente entre Berilo e Chapada do Norte, o trecho mais alto do trajeto. Cruzou estreita e frágil ponte de madeira sobre o rio Araçuaí, ali espremido pelas encostas. Berilo estava literalmente encravada no topo da montanha, entre becos e ruas, ladeiras íngremes calçadas de pedra, a praça da matriz, composta de patamares em desnível, em frente à igreja. A cidade de Francisco Badaró, próxima dali, era ainda mais acidentada. A estrada seguiu com muitas curvas e subidas até chegar em Chapada do Norte, dotada de construções vistosas. Ao anoitecer entramos em Minas Novas, cidade repleta de casarões antigos, ruas estreitas e, claro, ladeiras bem mineiras.
Fiquei em pousada ao lado de casario barroco disposto ao redor de pequeno largo, no centro do qual reinava absoluta a igrejinha de São José. A lâmpada do ventilador acima do quarto estava instalada entre as lâminas e o teto, de modo que, com ela acesa e ele ligado, o quarto iluminava-se na base do pisca-pisca.
Muitas construções históricas da cidade estavam abandonadas, condenadas a ruir, como o casarão ao lado da pousada. Como se não bastasse o descaso com a restauração dos prédios históricos, imagens e objetos valiosos das igrejas e museus haviam sido roubados e negociados com os estrangeiros do assim chamado primeiro mundo. Provavelmente muitas dessas peças fariam sucesso, inclusive entre brasileiros, em exposições caríssimas naqueles países. Minas Novas, a passos largos, era subtraída em tenebrosas transações.
A população do vale do Jequitinhonha se entristecia e lamentava profundamente o prolongamento da seca. Durante as manhãs, tardes e noites, olhavam o céu e reclamavam da falta de chuvas. E eu, no meio deles, passando os dias ao lado deles, não deixava de me comover também.
continua...

2 comentários:

  1. texto maravilhoso!
    Estou indo conhecer o Vale nesse final de semana, por conta de um projeto social do qual estou participando e por acaso encontrei o blog, estou realmente instigado... =)

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  2. Obrigado pelo comentário!
    Estes relatos ao vale do Jequitinhonha correspondem à primeira de uma série de viagens que fiz pela região.
    Já estão aqui neste blog os relatos referentes às explorações seguintes, sob os nomes de “Sertões de Minas e Bahia”, publicado em abril de 2011, e “Norte de Minas-5”, publicado em novembro de 2011. Confira...
    Minha mais recente viagem à região, incluindo também o vale do Jequitinhonha, contará com relatos chamados “Norte de Minas-6”, a serem publicados em breve. Aguarde...
    Boas leituras e boa viagem!!!
    Abraços.

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