...continuação
Retornei à cidade por outro caminho, mais longo e
pitoresco, até a avenida de entrada da cidade. Periquitos faziam a festa
próxima ao paredão rochoso. Aranhas caranguejeiras do tamanho de um pires
surgiam de todos os lados. Cruzavam o caminho não dando bola para minha
presença. Não cumprimentaram, não sorriram, nem sequer me olharam. Nas ruas da
cidade eu vi muitas delas secas ou esmagadas.
Evitei o restaurante da outra noite que lotava com os
integrantes da banda Mulheres Perdidas. Arrisquei lugar parecido, mas entupido
por integrantes da banda Anjo Azul. Os presunçosos sujeitos grunhiam frases de
nível mais baixo que cu de cobra. As mulheres carregavam bundas exageradamente
enormes, com peles perfuradas por crateras. Curiosos e fãs invadiram o
restaurante para vê-los de perto. Sem essas bandas ocasionais, a cidade não
contava com nenhuma atividade cultural para a população.
Definitivamente Pedra Azul beirava à catástrofe em matéria
de restaurantes e afins. Pecavam pela aparência desanimadora, em frangalhos,
lembrando galpões velhos e provisórios, e também pela comida por quilo
monotonamente igual.
Avistei a rampa de pedra ao norte da cidade. A inclinação
gradual facilitou o esforço da tarde com aberturas de sol ardido. A vista da
cidade, com a pedra da Conceição ao fundo, encantou. Segui pelo tabuleiro de
pedra, extensos lajedos quase em nível, até o início do mato ralo e do fim de
estradinha de terra que vinha da cidade, me deparando com cacos de vidro,
restos de garrafas, lixo esparso, camisinhas usadas, pedaços de roupas íntimas.
Enorme área livre, pública, gratuita, passível de diversas atividades diurnas e
noturnas, bem ao lado da cidade. Bastava sair da calçada e desbravar a
imensidão rochosa. A imaginação dos moradores ganhava asas com tanto espaço
disponível. Mas bem que poderiam trazer o lixo de volta.
Acordei cedo para pegar três ônibus para me deslocar
somente 130 quilômetros, de Pedra Azul a Araçuaí. Pelo trajeto do primeiro
ônibus apreciei formações rochosas de diversos tamanhos e formatos.
Desembarquei na BR-116 de tráfego pesado de caminhões e me alojei sob o ponto
de ônibus coberto, no aguardo da segunda etapa, junto a outros passageiros.
Dois rapazes a trabalho e a casada tagarela rumo ao ortodontista iriam a
Teófilo Otoni. A outra senhora ficaria em Medina.
Embarquei em veículo gelado devido ao supérfluo ar
condicionado. As janelas, criminosamente parafusadas. Duas mulheres sentadas na
frente com crianças pequenas reclamaram em vão do clima polar. Mais montanhas
de pedra na beira da rodovia, sobretudo no trecho entre a miserável e horrorosa
Medina e Itaobim, não menos miserável e horrorosa. Não havia terminal
rodoviário em Itaobim. Tive que desembarcar no ponto de apoio da empresa, na
margem da BR-116, um buraco sujo e triste, com bar sujo e caro, banheiro sujo e
pago. Ao precisar me aliviar, me refugiei no fundo do terreno e mandei ver sobre
o monte de sujeira. Comprei meia dúzia de bananas do ambulante e detonei junto
a pacote de bolachas guardado na mochila. Tanto no segundo ônibus, como naquele
fim de mundo, e em diversos pontos do vale do Jequitinhonha, abundavam os
pedintes, implorando por dinheiro para comprar comida, inteirar passagens de
ônibus, adquirir remédios.
E o terceiro ônibus partiu, atravessando a extensa ponte
sobre o Jequitinhonha. Subiram outros passageiros no caminho, desembarcando a
maioria em Itinga. No meio da tarde estacionou na rodoviária de Araçuaí.
Arrisquei hotel simples nas imediações do terminal.
A maioria dos restaurantes e afins não abriu à noite. Enquanto
caminhava fui chamado pelo garçom que manejava carnes na grelha sobre a
calçada. Parei, senti cheiro e resolvi aceitar.
Entre as conversas soltas durante o fraco café da manhã do
hotel, as notícias do tremor de terra em Itacarambi, onde eu estivera anteriormente,
renderam comentários espantados entre os hóspedes.
Da estação rodoviária, na margem da rodovia, Araçuaí
descia à margem direita do rio de mesmo nome. Ladeiras surgiam de todos os
lados, calçadas de paralelepípedos ou de pé-de-moleque. Na beira do rio
Araçuaí, apenas o barranco e barracos esparsos.
Na parte baixa que antecede a margem do rio, ficava o que
restou do centro antigo e marco fundador da cidade, construções caindo
literalmente aos pedaços, ruínas, escombros, áreas vazias, parecendo ter sido
bombardeada recentemente. O antigo mercado, sobrados, outrora imponentes, quase
destruídos, largados, para desabarem a qualquer momento. Boa parte dos
escombros e entulhos compôs anos antes zonas de prostituição, bares, boates. Agora,
viciados roubavam e matavam os desavisados que passavam por ali. O dono do
vizinho posto de combustíveis e o proprietário de igreja comercial
fundamentalista, mais conhecida como evangélica, adquiriram os terrenos e
iniciaram a demolição. Visavam interesses imobiliários e especulativos na
destruição da história da cidade, com a eventual construção de novos
empreendimentos. Mas em pequeno largo no meio da confusão de ruínas, uma sala
de cinema se preparava para inauguração, uma oficina cultural de estudantes
exibia produtos artesanais.
Os principais centros de produção de artesanato e arte
popular da região se situavam distantes, em pontos de difícil acesso. Ninguém
na cidade parecia saber ou querer orientar coisa alguma.
Jantei em restaurante frequentado pela fina flor da
sociedade de Araçuaí, localizado ao lado do bairro da elite local com direito a
casas suntuosas. Uma barata voadora alvoroçou os frequentadores das mesas ao
lado. Sustos, gritos, tentativas de exterminá-la, entre risadas dos corajosos e
espanto dos medrosos. Mas ninguém sentiu nojo suficiente para interromper a
comilança.
Peguei táxi-lotação ao entroncamento do povoado de Itira.
Desembarquei no acesso e deixei o asfalto. Caminhei pela estradinha sinuosa de
terra, até a entrada da vila, minúscula, calma, silenciosa, praticamente
deserta.
Casinhas velhas e pobres se dispunham lado a lado ao redor
de grande área livre, no centro da qual se erguia igreja construída pelos
escravos no século XVIII. De aspecto pesado e traços retos, sem trabalhos
rebuscados em madeira ou pedra, a construção impunha respeito pela idade e aspecto
rústico. Pintada de branco, janelas e portas azuis, a igreja seria o centro da
festa popular daí a três dias, durante a qual se apresentariam os batuqueiros
de Itira e grupo teatral de fora. Passando a igreja, a rua de terra descia à
margem do Jequitinhonha, que naquele local, ao pé do morro, recebia as águas do
Araçuaí.
Ainda que velhas e pequenas, as casinhas de Itira
reservavam charme especial, pelo menos do lado de fora. Conversei com uma
senhora cuja filha exibia rosto e braços marcados por bexigas. Ambas sorriam um
sorriso preguiçoso, como se de dentro delas brotasse apenas tristeza e
desânimo. Em ruela próxima à entrada da vila, o dono me convidou a sentar na
cadeira do cômodo da frente. Queria muito conversar e descrever fatos da vida
vivida. Aposentado como vaqueiro, comprou a casa onde morava em paz merecida
com a família. Participaria com o pandeiro do grupo de batuqueiros na festa do
povoado. Mostrou-se pessoa leve e de bem com a vida, a despeito dos interiores
precários da moradia.
Pela estradinha de terra retornei ao asfalto por onde passavam
poucos carros. Os particulares não davam carona, os táxis, raros também, vinham
lotados. Com os caminhões, por segurança minha e deles, eu nem tentava nada.
Permaneci horas ali sob os restos de concreto do ponto de ônibus. E eis que
surge de repente, não mais que de repente, o ônibus escolar levando crianças às
escolas de Araçuaí. Praticamente estanquei na frente do ônibus. O motorista me
resgatou daquele impasse. As crianças me olhavam com se vissem um bicho
estranho, o que não era de todo mentira. O veículo buscou mais alunos no
trajeto, deu baitas voltas em Araçuaí, desembarcando as crianças em escolas
diferentes, até me deixar em frente à estação rodoviária.
Almocei comida mineira variada e autêntica, me esbaldando
com arroz, tutu, leitão a pururuca, couve, mandioca, salada, coroada pelas
sobremesas no ponto certo do açúcar. Pedi a descomunal jarra de suco de limão
em função da sede infinita.
Desembarquei do ônibus em Itinga no meio da tarde. Cruzei
a pé a ponte sobre o Jequitinhonha, rumo ao centrinho aconchegante, tomado de
ruas e becos estreitos, calçamento pé-de-moleque, casas antigas, ainda que
isoladas, a praça da matriz arborizada e providencial refúgio contra o sol. A
sede não cessava e bebi líquidos e mais líquidos.
Retornei a Araçuaí ao anoitecer. Repeti o restaurante da
noite anterior e voltei a comer bem em ambiente naturalmente arejado. A lua
nova despontava à esquerda. Os filhos da elite de Araçuaí vinham de férias
escolares à cidade, depois de meses em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São
Paulo. Em Araçuaí os abismos sociais talvez justificassem o comportamento
presunçoso de alguns, contrariando a hospitalidade da maioria dos mineiros.
Amanheceu céu azul, com sol de rachar mamona. A brisa do
vale do Araçuaí me impelia a seguir em frente, aproveitar a ausência de chuvas
e vencer os quilômetros de estrada de chão.
Deixaria saudades a saborosa comida mineira do almoço.
Salada, abobrinha refogada, arroz, tutu, leitão a pururuca, mandioca frita,
seguidas de sobremesas e do café, milagrosamente em Minas Gerais, sem açúcar.
Servidos em jarras grandes, os sucos matavam a sede de qualquer cidadão.
Sensação de estômago cheio, bem alimentado, feliz da vida.
O ônibus partiu no meio da tarde depois de boa prosa com
um trabalhador rural de Chapada do Norte. Durante o percurso, o diretor de
escola rural descreveu os perigos à noite pelas ruas de Araçuaí, principalmente
na parte baixa e próxima ao rio. Em processo inexplicável de demolição, aquele
pedaço abrigava por entre os escombros viciados dos mais variados tipos, elevando
os índices de criminalidade. Claro, ao lado da miséria alarmante, mansões
muradas e com cerca elétrica abrigavam a classe dominante local viciada em
ostentar.
Depois de Virgem da Lapa o percurso em via estreita emocionou,
com direito a tudo que uma estrada de terra legítima podia oferecer. Buracos,
bicos de pedra, poeira na seca, lama nas chuvas, abismos de ambos os lados,
aclives e declives acentuados, curvas fechadas, altas pontes de madeira que
estalavam e trepidavam durante a passagem do ônibus, enquanto o rio corria mais
de cem metros abaixo, travessias de riachos sem ponte ou destruídas pelas
correntezas. O rio Araçuaí e os afluentes exibiam incríveis imagens, sobretudo
nos trechos mais acidentados, de vales estreitos e profundos. O ônibus chacoalhou
bastante, principalmente entre Berilo e Chapada do Norte, o trecho mais alto do
trajeto. Cruzou estreita e frágil ponte de madeira sobre o rio Araçuaí, ali
espremido pelas encostas. Berilo estava literalmente encravada no topo da montanha,
entre becos e ruas, ladeiras íngremes calçadas de pedra, a praça da matriz,
composta de patamares em desnível, em frente à igreja. A cidade de Francisco
Badaró, próxima dali, era ainda mais acidentada. A estrada seguiu com muitas
curvas e subidas até chegar em Chapada do Norte, dotada de construções
vistosas. Ao anoitecer entramos em Minas Novas, cidade repleta de casarões
antigos, ruas estreitas e, claro, ladeiras bem mineiras.
Fiquei em pousada ao lado de casario barroco disposto ao
redor de pequeno largo, no centro do qual reinava absoluta a igrejinha de São
José. A lâmpada do ventilador acima do quarto estava instalada entre as lâminas
e o teto, de modo que, com ela acesa e ele ligado, o quarto iluminava-se na
base do pisca-pisca.
Muitas construções históricas da cidade estavam
abandonadas, condenadas a ruir, como o casarão ao lado da pousada. Como se não
bastasse o descaso com a restauração dos prédios históricos, imagens e objetos
valiosos das igrejas e museus haviam sido roubados e negociados com os
estrangeiros do assim chamado primeiro mundo. Provavelmente muitas dessas peças
fariam sucesso, inclusive entre brasileiros, em exposições caríssimas naqueles
países. Minas Novas, a passos largos, era subtraída em tenebrosas transações.
A população do vale do Jequitinhonha se entristecia e
lamentava profundamente o prolongamento da seca. Durante as manhãs, tardes e
noites, olhavam o céu e reclamavam da falta de chuvas. E eu, no meio deles,
passando os dias ao lado deles, não deixava de me comover também.
continua...
texto maravilhoso!
ResponderExcluirEstou indo conhecer o Vale nesse final de semana, por conta de um projeto social do qual estou participando e por acaso encontrei o blog, estou realmente instigado... =)
Obrigado pelo comentário!
ResponderExcluirEstes relatos ao vale do Jequitinhonha correspondem à primeira de uma série de viagens que fiz pela região.
Já estão aqui neste blog os relatos referentes às explorações seguintes, sob os nomes de “Sertões de Minas e Bahia”, publicado em abril de 2011, e “Norte de Minas-5”, publicado em novembro de 2011. Confira...
Minha mais recente viagem à região, incluindo também o vale do Jequitinhonha, contará com relatos chamados “Norte de Minas-6”, a serem publicados em breve. Aguarde...
Boas leituras e boa viagem!!!
Abraços.