O vale do Jequitinhonha me atiçava havia tempos. E a
oportunidade de explorá-lo apareceu no início de dezembro.
O ônibus da monopolista Gontijo partiu do terminal
rodoviário do Tietê com menos de dez passageiros. Anoiteceu em meio às curvas
perigosas da BR-262.
Após Itaobim, o ônibus saiu da BR-116, pegou estrada local
margeada por campos, povoados paupérrimos aqui e ali, montanhas de pedra, pelo
rio Jequitinhonha, ora largo e preguiçoso, ora estreito e com corredeiras.
Acampamentos de trabalhadores rurais na beira da rodovia denunciavam a
indecente concentração de terras do Brasil. Anos antes, ali perto, em
Felisburgo, lavradores foram assassinados pelos senhores do latifúndio e do
agronegócio. Ninguém havia sido preso.
Coloquei a mochila nas costas ao desembarcar na estação
rodoviária de Almenara e caminhei à pousada.
Almenara não oferecia nada de especial em arquitetura ou
urbanismo. A paisagem natural, composta pelo Jequitinhonha e pelas montanhas de
pedra em ambos os lados do vale, é que se destacava. O rio conquistava pelo
traçado sinuoso, as praias, os bancos de areia, de onde canoeiros retiravam
material para construções. Avistei trilhas serpenteando as encostas, me
convidando a explorá-las nos dias seguintes. O sol abrasador e o horário do
almoço fecharam o comércio afastando os moradores das ruas.
Comi bastante o farto café da manhã, sozinho, à vontade.
Os demais hóspedes, a trabalho, já haviam saído à luta. Além das delícias,
tinha um montão de coisas que nem experimentei, como a improvável panela de
salsicha mergulhada em molho avermelhado, uma verdadeira tara regional,
conforme já constatara em outras viagens.
Atravessei a ponte sobre o Jequitinhonha, cruzei o bairro
pobre da margem direita, peguei a forte subida de terra e logo me vi fora da
zona urbana de Almenara. A rampa íngreme não arrefecia, o sol esquentava.
Retomava o fôlego enquanto me virava para apreciar a visão do vale, da cidade,
de mais montanhas ao norte. Ao me aproximar dos ninhos alongados e pendurados
nos galhos das árvores, a ave mãe se agitava, se afastava um pouco, mantendo
sempre a vigilância dos filhotes. No final da estrada, camisinhas usadas, copos
e garrafas, apontavam lugar preferido dos casais. À medida que caminhava pela
crista, eu pude ver a paisagem do outro lado da serra. Casebres isolados,
estradinhas e caminhos de terra, mais colinas e morros. A vegetação oscilava
entre o cerrado e, principalmente, a caatinga.
Atingi o topo duas horas depois. Antenas e torres se
espalhavam em área cercada, protegida pelo vigia solitário e calado com quem
tentei em vão conversar. Apreciei a vista ampla do vale, pequenas lagoas, mais
serras ao norte, Almenara, pequenina, no fundo do vale. Dava para acompanhar o
traçado das estradas a outras paragens, como Itaobim, Jacinto, Pedra Azul. No fundo
do horizonte, o domo da Pedra Grande, vizinha ao povoado de mesmo nome.
Aproximava-se do meio-dia e o sol rachava o coco. Respirei
fundo e comecei a descer.
Em Almenara entrei no primeiro restaurante decente que apareceu.
Entornei diversas garrafas de água antes de me decidir pelo prato feito bem
servido.
No final da tarde, com o sol já bem inclinado, me
desembestei a subir o morro ao norte da cidade. Passei por ruas de terra cheias
de erosão e buracos, ao longo das quais se erguiam barracos de aspecto
desolador, abrigando gente pobre e miserável. Bem na ponta da rua mais alta, a
favela terminava e permanecia apenas a estreita estrada de terra.
Fotos incríveis do rio Jequitinhonha, bem estreito,
afunilado por paredões de rocha, corredeiras, minúsculas enseadas, águas
azuladas, enfeitavam as paredes da recepção da pousada. Mas aquelas imagens
faziam parte do passado. Não existiam mais. Anos antes, aquele paraíso tinha
sido alagado pela construção da barragem do Salto da Divisa.
O centro comercial de Almenara se agitava com o movimento
dos fregueses nas calçadas e lojas. Um artista popular, misto de vendedor de
remédios milagrosos, acrobata e mágico, se instalou na calçada, atraindo
curiosos com palavras e movimentos sedutores. Logo se formou grande roda para
assisti-lo e, eventualmente, comprar os produtos oferecidos. O carro de som
circulava pelas ruas convocando a população para a apresentação musical do
grupo Anjo Azul. E o grande chamariz seria o vocalista do grupo, ex-integrante
do inebriante Calcinha Preta.
Com sotaque estadunidense, dois jovens acompanhados de
três brasileiros se hospedaram na pousada. Certamente não eram turistas. E notei
durante o almoço duas jovens, uma delas aloirada e exageradamente produzida,
vestindo roupas novíssimas e provocantes. Não paravam de falar entre si, aos
telefones celulares, abusando dos trejeitos, se mostrando superiores a tudo e a
todos. Certamente não faziam sexo por prazer.
O ônibus à tarde a Pedra Azul abarrotou de passageiros e
carga ainda nas ruas centrais de Almenara. Os novos passageiros levavam tanta
tralha, sobretudo comida comprada no mercado, que o corredor interno e os
exíguos bagageiros inferiores entupiram rapidamente. Os derradeiros passageiros
embarcaram sem a carga, largada na calçada, pedindo para alguém guardar, que
mais tarde buscariam. Mas aquele era o ultimo ônibus do dia!
O percurso de terra correu entre trechos com poças d’água,
outros enlameados, com muitos buracos em chão arenoso. Ao trafegar sobre
valetas e irregularidades, os passageiros em pé se seguravam como podiam para
não cair uns sobre os outros. A vegetação esverdeada da caatinga denunciava
chuvas recentes. Enormes latifúndios improdutivos, mas muito bem cercados, não
produziam nada além de minguadas cabeças de gado. As poucas casas, ou casebres,
fora das grandes propriedades, exibiam miséria e abandono, mas tinham roças de
subsistência. Montanhas de pedra escarpada se erguiam nas imediações de Pedra
Grande, nos formatos mais variados. Enorme domo brotava do fundo do vale,
íngreme, com paredes rochosas verticais, formando beleza esquisita e intrusa no
cenário. O rio guardava traçado acidentado em meio a pedras, corredeiras,
pequenas quedas d’água. Apareciam estreitas e alongadas quedas d’água,
refletidas pela claridade, do topo dos paredões.
Povoado pequeno, espremido entre o vale e as imensidões de
pedra, Pedra Grande guardava casario simples, pobre e antigo, típico vilarejo
dos confins brasileiros. Mais da metade da lotação do ônibus desembarcou ali. A
retirada das cargas dos reduzidos bagageiros demorou e exigiu muita paciência
para descobrir o que era de quem. Um senhor ficou sem parte da bagagem,
extraviada nas paradas anteriores ou sequer carregada em Almenara. De nada
adiantou espernear. O motorista e o cobrador repetiram o que a empresa lhes
ordenou a responder:
“o senhor faça uma reclamação à empresa e ela tentará
resolver o problema”.
A partir de Pedra Grande, a estrada se afastou do vale,
subindo serra gradual. Começou a chover até as imediações de Pedra Azul, cidade
pequena, cheia de ladeiras de paralelepípedos, casas antigas e bem conservadas,
em ruas e praças arborizadas, rodeada de impressionantes paredes rochosas.
Instalada em sobrado antigo, com piso de madeira e quartos
amplos, a pousada fazia jus ao conjunto arquitetônico da cidade. Escolhi quarto
com duas janelas grandes, de frente para rua e o casario.
Jantei em churrascaria velha, muita velha, mal cuidada,
sem qualquer preocupação com a aparência, mais parecendo mercearia de
antigamente caindo aos pedaços. Ambiente sombrio, com pé direito alto, telhas
sem forro. As imagens transmitidas pelo televisor de tela plana fizeram a
maioria cravar o olhar bovino nas besteiras que o proprietário escolhia. A
simpatia discreta do atendimento, a qualidade da carne, o preço baixo, contudo,
compensaram os senões.
Circulei pela cidade tranquila, por entre casarões
dispostos em ruas arborizadas com canteiro central. Tudo bem conservado e
extremamente charmoso. O vigia da pousada lamentou que as tais bandas de forró,
para lá de comerciais e descartáveis, faziam sucesso na terra natal de artistas
populares do naipe de Paulinho Pedra Azul e Saulo Laranjeira. Afirmou que a
maioria dos moradores não reconhecia artisticamente os dois compositores,
preferindo se render às garras do lixo vomitado pela indústria cultural.
Amanheceu com chuva fina no feriado da padroeira da
cidade. Tomei sem pressa o café da manhã enquanto olhava a chuva caindo nas
ruas de pedra. Depois do almoço o céu clareou, estiando de vez.
Dezenas de casarões do início do século XX, em bom estado
de conservação, se dispunham principalmente ao longo da avenida principal e das
transversais. As datas de construção apareciam estampadas acima da entrada
principal. Pintadas de cores leves, repletas de janelas lado a lado, guardavam detalhes
rebuscados na linha superior, próxima à calha, e nas arestas externas. O
canteiro central da avenida calçada de pedras se alargava à medida que se
afastava do centro da cidade, sempre arborizado e enfeitado para as festas com
as inventivas figuras de garrafas pet, arredondadas e azuladas, ou no formato
de estrela de cinco pontas e avermelhadas, internamente iluminadas. No trecho
mais largo do canteiro se posicionava pequena igreja de Nossa Senhora da
Conceição.
Conversei com a senhora mulata, magra e idosa, falante,
lúcida, divertida. Não parou de meter o pau no prefeito. Rogou-lhe pragas e
pediu a todos os santos para que não se reelegesse. Acusou o sujeito de olhar
apenas a fachada do casario do centro e esquecer a população pobre que morava
nos morros.
Andei bastante por vias calçadas de paralelepípedo ou
pé-de-moleque, solução mais que genial, charmosa, ecológica. Tangenciei os
imensos rochedos que circundam a cidade. Mesmo os trechos sem o casario antigo,
mostravam classe e aconchego.
Ao anoitecer, buzinas e rojões anunciavam a passagem do
ônibus preto da banda Mulheres Perdidas a caminho do local da apresentação
noturna. Depois da procissão organizada em duas filas silenciosas, cruzando as
principais ruas da cidade, a missa ocorreu na pequena igreja da avenida. A
igreja matriz de Pedra Azul, grande e moderna, sofria reformas sem fim. No
mais, noite quieta, com pouco movimento, naquele feriado.
Pela manhã me mandei à pedra da Conceição. Atingi a
estradinha que margeia o pé do paredão até a escadaria de concreto. Os
moradores garantiram setecentos degraus de subida. Lá em cima peguei trilhas
fechadas, me obrigando a proteger o rosto com as mãos e avançar forçando o
corpo pelos galhos e capim. A visão do lado oposto à cidade compensou o
esforço. Mais formações rochosas gigantescas, de diferentes formatos, se
estendiam ao horizonte. Não havia mais ninguém no topo. Pedra Azul dormia
profundamente naquela manhã.
continua...
oi! que bom poder ler um blog bastante informativo e singelo... voce entende de arquitetura , nao ? ja vi reportagem do vale do jequitinhonha, mas sei que a tv manipula e edita muito. muito bom oseu trabalho e o blog. abraço ! fernando gonçalves, e-mail:ferghuma@yahoo.com.br
ResponderExcluirOi Fernando, obrigado pelos comentários.
ResponderExcluirEu desenvolvi o gosto pela arquitetura junto com o gosto pelas demais manifestações culturais durante minhas viagens.
Creio que essa é uma maneira de se contrapor ao turismo predatório e também de ter mais prazer viajando.
Comente sempre...
Abraços!
Olá!
ResponderExcluirObrigado pela visita, pelos comentários e pelos questionamentos.
Escrevo no dia a dia da viagem, como um diário, no calor dos acontecimentos, sob o impacto do que vejo e sinto. Creio ser mais autêntico assim.
Você acha que passei o sentimentos?
Comente sempre!